Pedro Cazes[1] e Victor Vasconcellos[2]
Tá na hora, vamos lá
Carnaval é pra valer
Nossa turma é da verdade
E a verdade vai vencer
Gilberto Gil
Os versos de Gilberto Gil em Ensaio Geral, cantados originalmente por Elis Regina no 2o Festival da Música Popular Brasileira de 1966, soam como uma convocação. O Rancho do Novo Dia, o Cordão da Liberdade e o Bloco da Mocidade vão sair no carnaval. É preciso ir a rua e ver com os próprios olhos, é preciso fazer parte. A fantasia (coletiva) é colorida de ousadia e costurada de amizade.
Seria um equívoco reducionista só enxergar “política” no Carnaval quando as letras dos sambas-enredo tematizam diretamente personagens da política oficial ou grandes acontecimentos históricos, mandando um recado explícito aos donos do poder. O carnaval, ainda mais gigante do jeito que está, é múltiplo. Sua inscrição social se manifesta de formas contraditórias, com sentidos e possibilidades diversas. Ele deve nos lembrar que a política não está apenas nos slogans e palavras de ordens, mas também nos corpos, nas fantasias, na festa, na construção comunitária, na entrega ao coletivo.
Dito isso, a repetição anual da festa não pode se desligar dos ciclos históricos que o país atravessa. A conjuntura, assim, pode calibrar a nossa percepção da política no carnaval. Quem nunca sentiu um arrepio ao ver as cenas do desfile do Império Serrano em fevereiro de 1969, dois meses após o decreto do AI-5, cantando “Heróis da Liberdade”, samba antológico de Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira? Mais recentemente, em 2018, a G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti se consagrou na Avenida com um enredo sobre os 130 anos da abolição da escravidão em que, seguindo a pergunta do magistral samba enredo da Mangueira de 1988 (“será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão?”), fazia referências à reforma trabalhista, à perda de direitos sociais e trazia no seu último carro um vampiro com faixa presidencial. A escola, que até então só havia desfilado no Grupo Especial (“primeira divisão” do carnaval carioca) por duas vezes em 66 anos de história, ficou com o vice-campeonato apenas 0,1 ponto atrás da gigante Beija-flor de Nilópolis, mas foi para muitos a campeã moral do carnaval.
No Rio de Janeiro, o “carnaval de rua” e o “carnaval da Avenida” já possuem certa autonomia um do outro, cada um com as suas questões e contradições. Nas últimas duas décadas os blocos de rua cresceram num ritmo frenético, escalando a cada ano as cifras relativas à multidão que arrastam pela cidade. Reacenderam-se, assim, polêmicas em torno da configuração dos blocos: auto-organização popular x modelo empresarial de negócios; blocos de “marchinha” x blocos de funk/sertanejo/rock/etc; bagunça baseada na informalidade x choque de ordem legalista da prefeitura; dentre outras. Essas polarizações eram alimentadas também pela rivalidade com o carnaval da Bahia, visto pelos cariocas como o carnaval dos abadás, dos blocos com corda separando o público que pagou uma fortuna para ter exclusividade e a pipoca, turba geral dos que curtem o carnaval nas margens. É claro que nem todo o carnaval de Salvador é assim, o que fica evidente na longevidade dos blocos afro e dos afoxés, só para dar um exemplo dos mais relevantes. Ou no fenômeno recente do “Navio Pirata” do Baiana System. Para o que nos interessa nesse texto, vale dizer que tanto a subversão dos blocos “não-oficiais” como a longevidade dos blocos tradicionais comportam formas diferentes de politização. Mais ainda, no momento atual elas podem e tendem a se misturar. Afinal, o carnaval de rua de todo país registrou cânticos bem ritmados de protesto contra o presidente Jair Bolsonaro (que por sua vez tentou propagar factóides sobre a festa para semear o “pânico moral” com o qual pretende manter fiel o seu eleitorado). Não há dúvida, portanto, que o carnaval permite a liberação do grito entravado na garganta e que daí venha muito da sua força, especialmente numa conjuntura de reforço do autoritarismo e da criminalização dos movimentos sociais.
Na medida em que o carnaval de rua se torna gigantesco e atrai milhões, ele vai atravessando dilemas semelhantes ao do carnaval das Escolas de Samba. Sobretudo no que diz respeito ao seguinte problema: até que ponto a liberdade de criação e de crítica que deveria estar inscrita na configuração popular da festa é comprometida pelas estruturas de financiamento, de fiscalização e regulação estatal/empresarial? No caso do carnaval dos blocos de rua, pelo menos no Rio de Janeiro, a polêmica costuma estar com a fusão entre os interesses da cervejaria AMBEV e da Prefeitura da Cidade, que passaram a ditar como os blocos oficiais podem desfilar. Já no caso da Sapucaí, a briga é com a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), que controla o desfile, a disputa e os critérios de avaliação das escolas. A Liga possui tradicionais e conhecidos vínculos com a contravenção, especialmente o jogo do bicho, que está historicamente ligado à direção das escolas. Além disso, a dimensão midiática dos desfiles exigiu orçamentos cada vez mais vultosos, muitas vezes financiados por patrocinadores que conseguem bancar enredos tão esdrúxulos como a história do iogurte, ou a de Beto Carrero, dentre outros.
Assumimos aqui, para dar conta desse problema, a visão do historiador, pesquisador e amante do carnaval carioca Luiz Antonio Simas, para quem o carnaval é a subversão na brecha, na fresta. O prefeito Marcelo Crivella, quadro político oriundo da Igreja Universal, já sinalizou, em diversas ocasiões, sua resistência à festa. Há, nos últimos anos, uma diminuição expressiva do dinheiro repassado pela prefeitura às agremiações, gerando uma ruptura entre atores anteriormente unidos: LIESA e Crivella. Nessa ruptura, nessa fresta, um desfile histórico surgiu e foi consagrado campeão do carnaval. Por isso, cabe aqui uma análise um pouco detida do desfile da Estação Primeira de Mangueira.
Um desfile é uma obra múltipla, por articular diversas formas de arte. Portanto, por mais que este enredo e a concepção estética do desfile sejam responsabilidade fundamental do carnavalesco Leandro Vieira, é inegável que o desfile da Mangueira é uma obra coletiva. O samba-enredo, por exemplo, composto normalmente por um grupo, foi criado por 6 compositores. A canção, uma obra-prima, se relaciona com o enredo proposto pelo carnavalesco, mas não é tutelada por ele. A execução das fantasias, das alegorias e dos adereços é também realizada coletivamente. Há ainda os coreógrafos que atuam na comissão de frente e em algumas alas. Além disso, a performance dos componentes no dia do desfile é parte fundamental do sentido construído.
Por isso, um dado que chama atenção no desfile da Mangueira é a coerência do projeto apresentado em uma obra coletiva. Há um programa que se explicita a partir de uma dialética de construção e desconstrução em função de uma história popular acima de tudo coletiva. Esse projeto apresentado no carnaval pode servir como um norte para um campo progressista desarticulado. O samba-enredo é construído em forma de diálogo com um “Brasil” que aparece como vocativo quatro vezes na letra. Inicia-se, então, um movimento dialético de oposições que desmontam e remontam a historiografia brasileira por um viés coletivo que vai se repetir na execução do enredo na Sapucaí. Há a afirmação, para esse Brasil interlocutor, de uma história não contada que está em oposição à história oficial. O verso “o avesso do mesmo lugar” serve como exemplo desse jogo de oposições. Não é por acaso que a metáfora crítica a Duque de Caxias “Tem sangue retinto pisado/Atrás do herói emoldurado” é substituída posteriormente pela afirmação coletiva de um povo que “não está no retrato”: “Mulheres, tamoios, mulatos”. O herói dos livros é desconstruído semanticamente e substituído por uma coletividade.
O jogo de oposições apresenta um país que se formou a partir da destruição e que pode ser reconstruído com o caminho inverso. Se da beleza surgiu a invasão, o massacre e a história oficial, sua contrapartida discursiva, é da destruição do discurso oficial e de seus heróis que surgirá a beleza de um projeto coletivo: “Não veio do céu/Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão do mar de Aracati”. Esse projeto coletivo popular no plano das oposições não é realizado inconscientemente, por acidente. Ele aparece afirmado explicitamente no plano do conteúdo: “Na luta é que a gente se encontra”. Os nomes de personagens históricos positivados na letra, sejam os da história da Brasil ou os da história da Mangueira, são colocados no plural, o que ajuda a demonstrar o caráter coletivo dessa nova história popular: Lecis, Jamelões, Marielles, Mahins. Tampouco é correto afirmar que esse samba-enredo é conservador no plano formal, visto que há certa subversão da fórmula mais comum de sambas atualmente. Há apenas um refrão na letra, enquanto normalmente o samba-enredo contemporâneo apresenta dois. Esse único refrão não se apresenta como um clímax explosivo do samba, em função, dentre outros elementos, das preposições que não permitem a aceleração do trecho. Isso afasta esse samba do que ficou conhecido como “Marcha-enredo”[3] em função da velocidade discrepante.
A performance na Avenida reafirmou grande parte dessa estrutura e desse projeto dialético de uma história popular e coletiva. A comissão de frente explicita isso de maneira didática ao primeiro apresentar os “heróis” tradicionais emoldurados, desconstruí-los ao mostrá-los em tamanho menor do que o esperado e substituí-los por negros, indígenas, pobres, sem necessariamente uma identidade rastreável. Já o carro abre-alas, chamado “Mais invasão do que descobrimento”, traz o verde da Mangueira representando a natureza de um território originalmente rico e uma fantasia destaque “Exuberância indígena”. As alas iniciais apresentaram as cerâmicas dos povos originários como símbolo de opulência. Assim, ao mesmo tempo em que a riqueza desses povos é postulada, faz-se a crítica da história oficial.
Esse primeiro carro ganha especial sentido se oposto ao segundo, provavelmente o mais icônico e importante do desfile, porque incorpora internamente o movimento dialético proposto em toda a obra. Ele foi chamado de “Sangue retinto por trás do herói emoldurado”, uma referência ao samba, o que mostra a integração já citada entre as partes do desfile. Esse carro é composto por uma réplica dourada de parte do “Monumento às bandeiras”, erguido nos arredores do Parque do Ibirapuera em São Paulo. Mas aqui o monumento aparece pichado ostensivamente em vermelho com dizeres como “assassinos”. Reconhecemos, portanto, o ponto de vista dos povos originários sobre as Bandeiras. O carro apresenta ainda cruzes, simulando um cemitério em volta da réplica do monumento com dizeres como “Funai”, “memória”, “índios”, “mulheres”, indicando a atualidade brutal daquele extermínio. O movimento de desestabilização discursiva e reformulação histórica popular se afirma, então, internamente na alegoria e linearmente no desfile com o diálogo entre os carros alegóricos.
Começa então o segundo bloco do desfile, esse dedicado aos negros, que desenvolve ainda mais a concepção do enredo. É particularmente significativo o movimento empreendido pela escola nesse momento, porque importantes artistas da agremiação ocupam a representação de figuras históricas populares. Leci Brandão, compositora e cantora citada no samba, representa Luísa Mahin, negra participante da revolta dos Malês, figura muito importante para o movimento negro e feminista. Nelson Sargento como Zumbi do Palmares e Alcione como Dandara também reforçam a identidade da escola ao mesmo tempo em que ajudam a compor a reescrita da história pela ótica popular. Ainda cabe destaque, nesse bloco, ao carro que pode ser lido tanto como o navio negreiro ressignificado pela riqueza, como o barco da libertação de Chico da Matilde, o “dragão do mar de Aracati”, jangadeiro que ajudou a impedir o embarque e desembarque de negros nos portos do Ceará.
O último carro confirma e explicita o caráter pedagógico do desfile, contendo ainda uma provocação à academia. Com um dizer “Ditadura assassina” na frente e Hildegard Angel como destaque, o carro apresenta enormes livros abertos onde podemos ler textos críticos às figuras icônicas da história oficial, como Duque de Caxias, Princesa Isabel e Marechal Floriano. Os textos reproduzidos no carro foram produzidos por quatro professores e professoras de ensino básico do Rio de Janeiro. Em tempos de fortalecimento do “Escola sem Partido”, a Mangueira acerta mais uma vez com essa escolha e demonstra o seu compromisso com uma história popular vinda de baixo, dos índios, negros e pobres, inscrição da bandeira nacional verde e rosa que fecha o desfile.
A contestação presente no enredo não anula, entretanto, as contradições oriundas do carnaval espetáculo, que o desfile da Mangueira não conseguiu superar. Concessões aos critérios de julgamento da LIESA ajudaram a conceber fantasias não tão confortáveis para os integrantes da escola no momento do desfile, o que comprometeu o caráter espontâneo da performance. Esse desconforto foi amenizado por uma identidade forte com a agremiação, mas o preço do carnaval espetáculo foi pago. Mais problemático, porém, foi a grande presença de componentes brancos em alas e destaques que deveriam ser protagonizadas por indígenas e negros. Isso mostra a contradição das grandes escolas que têm comunidade forte, mas também dificuldades de se manter fundamentalmente negra e popular.
Por tudo isso, mesmo com todas as tensões que o atravessam, o carnaval segue sendo capaz de atualizar a potência crítica e emancipatória que subsiste nas brechas. A comoção vivida na cidade em torno do desfile da Mangueira desde a divulgação do samba-enredo em outubro do ano passado e a explosão de alegria na quarta-feira de cinzas, quando a escola ganhou o campeonato com a nota máxima dos jurados, mostraram que o carnaval ainda pode construir laços, vínculos, modos de elaborar uma experiência coletiva. Os traumas da conjuntura recente passavam, através do samba, a nos transformar, na medida em que cantamos uma outra história na qual podemos nos reconhecer no retrato de algo maior, que resiste e luta.
Dentre as muitas coisas que o samba nos ensina, em sua pedagogia lúdica, é que a fantasia de carnaval pode ativar a nossa imaginação histórica e política. Se após a quarta-feira tudo parece ilusão, é porque não existe vitória que não dependa dessa miragem que nos dá ânimo pra seguir sem esmorecer nem sucumbir. Como dizem os versos de Vitória da Ilusão, de Moacyr Luz e Aldir Blanc, prestando homenagem aos artistas que sabem reconhecer, como Leandro Vieira[4], que a maior riqueza do carnaval vem do chão da escola:
“O carnavalesco é um deus maldito
E isso é que é bonito
Recriar a criação
Pamplona, Julinho, Joãozinho Trinta dão a pinta
Que nada se acaba quando é feito por paixão
Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto isso é lindo!
– Das cinzas à Ressurreição!”
[1] Professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II e doutorando em Sociologia pelo IESP/UERJ.
[2] Professor do Departamento de Português e Literaturas de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II e doutor em Literatura Comparada (Ciência da Literatura) pela UFRJ.
[3] SOUZA, Yuri Prado Brandão de. Estruturas musicais do samba-enredo. 2018. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
[4] Pensamos aqui especialmente no discurso de comemoração do título dado pelo carnavalesco dentro da quadra da Mangueira, sem luz, no dia 06/03/2019, disponível em http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/videos/v/carnavalesco-leandro-vieira-fala-da-conquista-do-titulo-da-mangueira/7435062/
Referência imagética:
Fatpress. Disponível em: http://www.galeriadosamba.com.br/V41/GI.asp?tipo=1&galeria=3056&titulo=desfile-2019-da-mangueira (Acesso em 14 mar. 2019)