Bernardo Ferreira[1]
Este texto é o segundo de uma série especial do Boletim Lua Nova sobre o centenário da obra de Friedrich Meinecke. Para ler o primeiro, clique aqui.
02 de dezembro de 2024
Publicado em 1924, Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte (A ideia de razão de Estado na história moderna), do historiador alemão Friedrich Meinecke, é um livro profundamente marcado pelo impacto da Primeira Guerra Mundial. No projeto inicial, em princípio intitulado Staatskunst und Geschichtsauffassung, Meinecke imaginava abordar as conexões entre as novas artes de governar surgidas a partir do Renascimento e a moderna concepção da história característica do historicismo[2]. Para o historiador, a associação entre as artes do governo e o historicismo moderno decorreria de uma espécie de afinidade eletiva: em ambos os casos o pensamento seria levado a concentrar-se na individualidade da experiência e das situações, seja na reflexão sobre a particularidade dos interesses de cada Estado, seja na atenção dirigida à singularidade irredutível das vivências históricas.
Esse plano, cujas linhas gerais o historiador já expunha em 1915 (cf. Krol, 2021, p. 81), foi modificado sob o impacto da guerra. O conflito, como Meinecke admitiu posteriormente, havia lhe revelado o “caráter demoníaco do poder” (Meinecke apud Iggers, 1988, p. 207). Com isso, ainda que as preocupações originais do historiador não tenham saído de cena, elas retrocederam a uma posição francamente secundária e até mesmo lateral na composição do livro. O tema da razão de Estado tomou conta da obra e tornou-se o eixo em torno do qual ela gira. Os desastres da guerra e a derrocada do Reich alemão, nos diz Meinecke no final do capítulo introdutório do livro, teriam tido o efeito de colocar “cada vez mais diante dos olhos a especificidade do problema fundamental da razão de Estado no que ele tem de assustador” (Meinecke 1960 [1924], p. 26)[3].
Uma pessoa acostumada com o tom normalmente contido da escrita da historiografia contemporânea talvez se surpreenda com o pathos da descrição de Meinecke a respeito da mudança de rumo do seu projeto. A dramaticidade da caracterização do “problema fundamental” da razão de Estado como “assustador” não resulta, porém, apenas de um traço estilístico do autor, ela está diretamente ligada ao conteúdo da “ideia de razão de Estado” tal como delineada no livro. Cabe então perguntar: o que haveria de fundamental nesta ideia e o que a tornaria assustadora? Essa pergunta nos leva à questão de fundo que ocupa o livro, em face da qual a noção de razão de Estado se apresenta como uma espécie de epítome, no duplo sentido de síntese e símbolo: as tensões trágicas que seriam constitutivas das relações entre política e moralidade, poder estatal e normas morais e jurídicas, kratos e ethos na história moderna.
O capítulo inicial do livro, no qual Meinecke procura introduzir o objeto da pesquisa, tem o título sintomático de “A essência da razão de Estado”. A leitura desse texto de abertura nos permite entender em que sentido, para o historiador, o problema da razão de Estado deve ser considerado “fundamental”. A definição que ele nos apresenta sobre a ideia de razão de Estado tem um caráter eminentemente abstrato e especulativo, pretende ter um alcance universal e uma validade intemporal e, sob muitos aspectos, está desligada das formulações sobre o tema contidas nos textos do passado. Como ele próprio observa, seria possível separar “o núcleo intemporal das artes de governar (Staatskunst) e da razão de Estado e suas repercussões cambiantes no curso da história” (IS, p. 20). Com efeito, embora Meinecke em seu livro busque contar o percurso histórico da razão de Estado, ele não concebe esta última como um fenômeno temporalmente localizado, mas sim como um traço universal e permanente do exercício do poder político e, nessa perspectiva, definidor da essência deste último.
Para compreender, portanto, as implicações e os desdobramentos do retrato que o livro nos apresenta sobre o problema da razão de Estado, é preciso ter em vista uma série de reduções conceituais que este retrato pressupõe. Em primeiro lugar, a política é pensada por Meinecke a partir dos fenômenos do poder. Este último, por sua vez, será concebido à imagem e semelhança do poder estatal. Por fim, o Estado e seu poder serão enquadrados à luz dos móveis da ação estatal tal como compreendida no horizonte da noção de Machtpolitik (política de poder) característica do século XIX. Nessa perspectiva, “faz parte da essência do Estado, em primeiríssimo lugar, o poder, ou seja, a capacidade de autoafirmação em face dos demais Estados” (IS, 415).
Essa imagem da política como Machtpolitik e do Estado como Machtstaat (Estado de poder) está na base das análises de Meinecke sobre o papel da razão de Estado na história moderna. Na narrativa que o livro nos propõe, os desastres da Primeira Guerra Mundial são o ponto de chegada de um processo secular, em que tendências e dilemas constitutivos da política de poder dos Estados modernos alcançam uma espécie de ápice catastrófico. Assim, a inclinação a “hipostasiar o Estado como categoria eterna” (Stolleis, 1994, p. 23), por um lado, e a propensão a conceber a atuação deste último como essencialmente motivada pela manutenção e pelo acréscimo do próprio poder, por outro, serão fatores conceitualmente decisivos da imagem que o livro nos apresenta do problema da razão de Estado.
Para Meinecke, o problema da razão de Estado está associado às tensões insolúveis que decorreriam da propensão essencial e elementar de todo Estado a buscar a manutenção e o incremento do seu próprio poder. Isso porque a admissão de que “o poder faz parte de modo permanente e contínuo da essência do Estado” não significa afirmar que “ele constitui sozinho a sua essência” (IS, p. 468). Seria preciso reconhecer que “o direito, a vida ética, a religião também são parte integrante dessa essência; demandam, pelo menos, fazer parte dela, tão logo o Estado tenha alcançado o seu pressuposto primeiro e elementar, tornar-se poderoso” (IS, p. 468). O Estado nessa perspectiva seria um “anfíbio” (IS, p. 19), com uma face voltada para o kratos e outra para o ethos. No campo da política, portanto, a concretização de qualquer finalidade ética não poderia ignorar o fato universal de que cada Estado luta pela afirmação da sua própria independência e que as exigências da preservação e da expansão do poder desempenham, nesse terreno, um papel incontornável.
Segundo Meinecke, “a razão de Estado torna-se, com isso, o profundo e difícil conceito da necessidade de Estado” (IS, p. 2). As condições da ação estatal não seriam inteiramente livres, mas, sim, condicionadas por imperativos inescapáveis, resultantes da tentativa de conservar e ampliar a independência do Estado em circunstâncias concretas de luta pelo poder. Todo homem público, portanto, seria obrigado a reconhecer que sua margem de escolha está sempre limitada por fatores que lhe escapam ao controle e independem da sua vontade. Estes fatores seriam o resultado das exigências inevitáveis do exercício do poder estatal e das escolhas necessárias à sua preservação em situações específicas. Desse modo, a ação do Estado, nos diz Meinecke, se daria sempre sob o governo de uma “conexão causal inflexível e sem lacunas” (IS, p. 2).
Ao definir, em cada circunstância concreta, o que cada Estado individual deve fazer para garantir a sua autonomia política e a manutenção de seu poder, a razão de Estado estipularia, simultaneamente, as condições da realização de fins morais na vida política. Na vida do Estado, não seria possível dissociar a idealidade da ação moralmente orientada daquela guiada pelo realismo das considerações de poder. Qualquer tentativa de depurar normativamente a ação estatal do papel que nela desempenha a busca pelo poder estaria condenada ao fracasso. Por isso, na vida política seria preciso admitir que a “necessidade estatal” é um fator que condiciona a liberdade exigida por toda autêntica escolha moral. O problema da razão de Estado seria o resultado do reconhecimento de que, mais cedo ou mais tarde, queira-se ou não, a salvação do poder político exigirá a violação de normas morais e jurídicas. Segundo Meinecke, “faz parte do espírito e da essência da razão de Estado que ela tenha que, repetidamente, se conspurcar, violando a ética e o direito (…) O Estado, ao que parece, tem que pecar” (IS, p. 14).
Assim, como observei acima, para o historiador alemão, a ideia de razão de Estado torna-se bem mais do que um fato da história intelectual, localizado no tempo e no espaço e passível de ser rastreado pela pesquisa documental. Trata-se, antes, de um problema de caráter trans-histórico, que se refere à própria constituição do mundo da política e à natureza dos seus protagonistas, os Estados. Se é verdade que o problema da razão de Estado tem um sentido intemporal e trans-histórico, por que, afinal, contar uma “história da ideia de razão de Estado na época moderna”?
Antes de tudo porque a história da razão de Estado nos mostra as diferentes ocasiões em que o espírito humano teria alcançado uma “apreensão consciente como ideia” (IS, p. 24) do problema universal da razão de Estado. Trata-se, portanto, de “investigar a apreensão e assimilação intelectual da razão de Estado no curso do tempo” (IS, p. 24). Para Meinecke, tal história só faz sentido, na medida em que essas diferentes ocasiões de “apreensão intelectual” sejam capazes de fazer jus ao problema a que elas se dirigem. Os diferentes momentos que interessam a uma história da razão de Estado serão, antes de tudo, aqueles em que se alcança “o reflexo da essência do acontecer em espíritos que estão dirigidos ao essencial da vida” (IS, p. 24). Essa narrativa, portanto, se voltará para os pontos culminantes da elaboração intelectual dos dilemas da razão de Estado, deixando deliberadamente de lado as formulações “menores” sobre o tema[4].
Por outro lado, para Meinecke, esta elaboração intelectual do problema da razão de Estado seria um traço característico da história moderna a partir do Renascimento. Antes disso, o sentimento das exigências da razão de Estado se faria presente, assim como algum nível de compreensão sobre os impasses dela decorrentes, mas não uma “apreensão consciente como ideia”. Haveria, portanto, um momento inaugural, a partir do qual caberia contar a história da ideia de razão de Estado, um momento que teria determinado tudo o que veio depois: o pensamento político de Maquiavel. Com Maquiavel, a percepção sobre os conflitos entre política e moralidade contidos no seio da vida estatal teria alcançado um grau de intensidade e de penetração até então desconhecidos, colocando “o leitor (…) diante do problema universal da razão de Estado e, em particular, da inevitabilidade, da necessidade na ação estatal” (IS, 447).
Maquiavel, segundo Meinecke, teria sido o “primeiro descobridor da essência da razão de Estado” (IS, p. 49), um autor cuja obra teria significado “um ponto de inflexão na história do espírito europeu (IS, p. 46). A partir da “descoberta” do italiano, a narrativa de Meinecke apresenta-se como uma história das diferentes tentativas de elaborar, no plano das ideias, a cisão entre poder e moralidade, suscitada pela razão de Estado. Para Meinecke, portanto, esta história contará a trajetória do maquiavelismo e das reações por ele suscitadas. No livro, porém, a noção de maquiavelismo não se esgota nas múltiplas e, não raro, incoerentes apropriações, usos e representações de Maquiavel nos debates em torno da razão de Estado[5].
Concebido à imagem e semelhança do problema da razão de Estado, o maquiavelismo será, em primeiro lugar, uma ideia. Como observa Meinecke, “só por meio de sua apreensão como princípio, as tendências históricas adquirem todo o seu poder de impacto e se elevam ao que se pode denominar de ideia” (IS, p. 46). Assim, o maquiavelismo adquire em Meinecke unidade e permanência, tornando-se expressão de um problema que atua como uma espécie de força motriz de uma crise característica da história moderna. Com Maquiavel, portanto, a “maldição da necessità, da necessidade de Estado” (IS, p. 44) ingressaria de uma vez por todas na vida política e imprimiria uma marca decisiva e fatal na trajetória do mundo moderno.
Segundo o historiador, ao elaborar intelectualmente a questão da necessidade de Estado e de seus imperativos no âmbito da ação estatal, Maquiavel teria desencadeado tendências históricas que, até então, permaneciam ignoradas ou latentes. A partir de sua “descoberta”, política e moralidade, kratos e ethos, realidade e ideal passam a estar definitivamente cindidos. Com efeito, uma coisa seria que “na política a lei ética fosse violada somente nos fatos”, outra que “se pudesse justificá-lo com base em uma ‘necessidade’ inevitável” (IS, p. 46). Isso porque,
“no primeiro caso, a lei moral permanecia incólume na sacralidade absoluta que lhe é própria, como uma espécie de necessidade supraempírica. Agora, porém, esta necessidade supraempírica era rompida por uma necessidade empírica e o mal se apoderava de um lugar ao lado do bem, onde, então, portava-se como um bem, ou, no mínimo, como um meio indispensável para manutenção de um bem. As potências do pecado, fundamentalmente domadas pela ética cristã, conquistavam uma fundamental vitória parcial e o demônio invadia o reino de Deus. Tinha início toda a ambiguidade da cultura moderna, o dualismo de critérios de valor empíricos e supraempíricos, absolutos e relativos de que ela padece” (p. 46).
Ao conceber a razão de Estado como ideia dotada de unidade e permanência, como síntese ideológica e força motriz de uma crise epocal, a história contada por Meinecke amplia significativamente o universo de autores e obras discutidos. De fato, uma vez que o maquiavelismo é antes de tudo uma expressão dos dilemas da história moderna resultantes do dualismo entre kratos e ethos, no fim das contas torna-se possível postular a presença da questão da razão de Estado, como ideia e como problema, mesmo quando o texto analisado, à primeira vista, não trata explicitamente do assunto. Assim, a ampla gama de obras e personagens que desfila pelos diversos capítulos do volume cobre diferentes séculos de história – do Renascimento italiano ao final do século XIX – e se estende para muito além do período que concentra o grosso dos tratados em torno da noção de ratio status (séculos XVI e XVII).
Esse percurso longo e extremamente erudito padece, entretanto, de uma certa frouxidão estrutural e de alguns desequilíbrios na sua construção. Em 1926, numa resenha sobre o livro de Meinecke, Carl Schmitt assinalava que a amplitude do quadro proposto e o caráter genérico e demasiadamente inclusivo da definição de razão de Estado resultariam na “renúncia a uma arquitetura rigorosa” (Schmitt, 1988 [1940], p. 52)[6]. Felix Gilbert, ex-aluno de Meinecke, partilha da mesma opinião: para ele, o livro “é uma coleção de ensaios em torno de um problema mais do que um todo firmemente articulado” (Gilbert, 1977a, p. 78)[7]. Além disso, como observa Michael Stolleis, há um desequilíbrio entre os capítulos do livro, sendo a parte dedicada a Frederico o Grande o que mais chama a atenção: o capítulo é desproporcionalmente longo, tendo em vista o tamanho dos demais e a relevância limitada da contribuição do príncipe prussiano ao universo do antimaquiavelismo[8].
A despeito das deficiências estruturais do livro e de sua falta de unidade, é possível reconhecer eixos temáticos que o percorrem, servindo como uma espécie de fio condutor do seu enredo. Tais eixos dizem respeito, antes de tudo, às concepções políticas de fundo e às premissas histórico-filosóficas que presidem a construção da narrativa. Para finalizar, gostaria de discutir brevemente esses dois pontos.
Em primeiro lugar, como já sabemos, Meinecke concebe o problema da razão de Estado à luz das noções de Machtpolitik e Machtstaat. Nesse sentido, a história da razão de Estado se confunde com a trajetória da Machtpolitik moderna a partir da “descoberta” de Maquiavel e dos dualismos por ela desencadeados. Para o historiador, estudar os rumos da Machtpolitik seria uma exigência decorrente dos desastres da Primeira Guerra Mundial. Meinecke considera a guerra como a tradução catastrófica de uma “política de poder” desenfreada e se pergunta como tal calamidade se tornou possível. Sua resposta passa pela convicção de que, a partir do século XIX, ocorreria uma “hipertrofia da moderna razão de Estado” (IS, p. 499), resultante do enfraquecimento e da supressão dos limites impostos à “política de poder”.
Diferentes personagens da narrativa de Meinecke sobre o itinerário da ideia de razão de Estado estão marcados por uma percepção aguda dos dilemas e antinomias da política de poder. Frederico o Grande, a quem, como já mencionado, Meinecke dedica o capítulo mais longo do livro, constitui nele a expressão mais acabada da consciência desses impasses. Philosophe e rei, Frederico teria sentido na própria carne a dupla exigência e a dilaceração decorrentes do serviço simultâneo à moralidade e ao poder. Com isso, ele é um dos principais heróis do livro, senão o principal, alguém que busca, de forma admirável e trágica, equilibrar-se entre esses dois polos potencialmente antagônicos. Para Meinecke, Frederico soube reconhecer que a dedicação ao Estado cobra o preço da culpa moral, mas, ao mesmo tempo, que o poder, quando não se eleva a uma causa superior, acaba por se reduzir à brutalidade cega das relações de força.
No século XIX, o idealismo e o historicismo alemães teriam embotado essa consciência, tão intensa em Frederico, das antinomias insolúveis da razão de Estado. O ponto de chegada seria uma desastrosa “idealização da Machtpolitik” (IS, p. 502), fruto de uma tentativa de identificação entre poder e moralidade, entre kratos e ethos, entre real e ideal. Com isso, perde-se a noção dos freios e das restrições que precisariam ser impostos ao Machtstaat, visando, dentro do possível, conter sua pulsão de poder no interior de fins moralmente aceitáveis. No mundo moderno, herdeiro do abismo aberto por Maquiavel, estes freios só seriam possíveis pelo reconhecimento e pela aceitação do dualismo insanável entre o plano das relações de poder e o das normas morais e jurídicas. Ao desconhecer ou, o que é pior, deliberadamente ignorar a natureza intrinsecamente violenta e potencialmente maligna do poder, o pensamento alemão do século XIX, especialmente Hegel e o historicismo, teria aberto o caminho para uma razão de Estado desprovida de limites.
Para Meinecke, um dos sintomas da perda de sensibilidade para os impasses da razão de Estado seria o fato de que, a partir do século XIX, a expressão teria praticamente caído em desuso, sendo “muito raramente empregada” (IS, 481). Dessa forma, a disciplina que mais precisaria reconhecer o conceito de razão de Estado, a Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), acabaria por ignorá-lo (cf. IS, p. 481). Assim, a tentativa de resgatar alguma consciência sobre os dilemas e os perigos inerentes ao problema da razão de Estado é, sem dúvida, uma das tarefas a que se propõe o livro. Tal resgate pretende ser um contraponto à “idealização da Machtpolitik” ocorrida no século XIX. Com isso, o enredo do livro não narra apenas como a tentativa de etificação do Estado promovida pelo do pensamento histórico e filosófico alemão levou ao seu oposto, à violência sem controles da Machtpolitik. Este será também o enredo de um “processo trágico” (IS, p. 25): a tentativa de resolver ou superar a polaridade entre kratos e ethos estava, para Meinecke, inevitavelmente condenada ao fracasso e destinada a produzir o seu oposto, “a hipertrofia da razão de Estado”. Isso nos leva aos pressupostos histórico-filosóficos da história contada por Meinecke.
O problema da razão de Estado em Meinecke não tem um alcance exclusivamente historiográfico, ele possui também um sentido meta-histórico, ou seja, ele diz respeito às condições de possibilidade da própria história. A história humana, segundo Meinecke, seria o palco permanente de um confronto entre forças tendencialmente contrapostas e, no limite, mutuamente excludentes: de um lado, o encadeamento causal dos processos factuais, cujo desenrolar é necessário e indiferente ao bem e o ao mal; de outro, a autonomia do espírito humano, em sua tentativa contínua de livremente imprimir uma direção axiológica ao acontecer. O interesse não apenas histórico, mas histórico-filosófico da ideia de razão de Estado resulta, nessa perspectiva, do fato de que, no Estado, essa contraposição entre a necessidade natural de processos causais e a liberdade das exigências axiológicas do espírito humano se mostraria de forma concentrada e em toda sua amplitude trágica. A razão de Estado, nessa perspectiva, seria a expressão de uma ambiguidade constitutiva do poder estatal: ele seria o meio por excelência de realização de finalidades éticas na vida política e a força que conduz à inevitável violação dos princípios morais e jurídicos; o instrumento a que, na política, o espírito tem de recorrer para levar adiante a edificação da cultura e a potência que conduz os avanços da civilização rumo ao estado de natureza.
A história da razão de Estado moderna adquire, assim, um forte sentido do trágico, que está associado à imagem do Estado como uma organização humana que, por sua própria natureza, jamais poderia ser inteiramente etificada e estaria condenada a violar em sua ação as normas do direito e da moralidade. Nos termos de Meinecke, isso significa afirmar que o Estado e, por extensão, o conjunto do acontecer histórico se confrontam permanentemente com “um destino imposto a nós de forma elementar e imutável” (p. 491); um destino resultante das conexões causais atuantes no processo de construção da vida histórica e da cultura. A liberdade e a espontaneidade criativa da ação humana estariam em tensão contínua com o princípio da necessidade reinante na esfera dos processos causais, tornando impossível a afirmação plena e definitiva das formas decorrentes da atividade do espírito. Estas últimas se veriam a cada momento ameaçadas pela irrupção de uma necessidade culturalmente cega e potencialmente destrutiva.
Como observei no começo deste texto, a polaridade entre ética e política no âmbito da vida estatal seria uma espécie de epítome de uma condição geral do acontecer histórico: “a assustadora antinomia entre, por um lado, os ideais da razão ética e, por outro, os processos fáticos e as conexões causais da história” (IS, p. 509). A condenação do Estado ao pecado seria, portanto, o resultado do fato de que no seu seio atuariam de forma inescapável tendências antitéticas que seriam constitutivas do próprio acontecer histórico. Essas polaridades, uma vez despertadas pela descoberta da ideia de razão de Estado, imprimiriam uma feição trágica à história moderna, fruto do desatar, no seio da própria cultura, de forças elementares, regidas por uma necessidade incontornável e, no fim das contas, indiferentes ao mundo dos valores. Nesse contexto, os meios postos pela própria cultura moderna a serviço da sua autoconstrução se emancipariam dessa tutela e, deixando de ser governados pelos processos culturais, lhes imporiam uma direção destrutiva.
Para Meinecke, a grandeza de Frederico II estaria no heroísmo de chamar para si essas contradições e de buscar equilibrá-las num duplo compromisso com condição de rei e a de homem, com as exigências da necessidade estatal e as de uma moralidade humanitária. Por outro lado, o desastre do pensamento histórico alemão residiria na sua crença na possibilidade de superar os impasses resultantes desses imperativos contrapostos, produzindo uma falsa e ilusória identidade entre poder e moralidade. Aos olhos de Meinecke, esse otimismo, sob todos os aspectos antitrágico, estava, por princípio, condenado a se tornar refém das forças elementares abrigadas no seio da razão de Estado. Para o historiador, não haveria como separar as catástrofes da guerra de um autoengano da Machtpolitik.
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Passados cem anos da sua publicação, é difícil discordar do juízo de Michael Stolleis: A ideia de razão de Estado na época moderna envelheceu (Stolleis, 1994, pp. 17 e 37). Suas preocupações não são mais as nossas, sua concepção de história e sua filosofia da história tampouco. Isso sem falar do trabalho de pesquisa documental realizado nas décadas recentes, que vem traçando um quadro historicamente mais situado e menos genérico, mais nuançado e menos monolítico da literatura sobre a razão de Estado[9]. Sob diversos aspectos, o texto tornou-se um objeto – certamente, um desses objetos monumentais – da história da historiografia e da história intelectual.
Apesar disso, ainda há o que se ganhar com a leitura do livro. Se é verdade suas perguntas não são mais as nossas, o fôlego e a ambição com que elas são formuladas continua surpreendente. No ambiente intelectual das ciências humanas de hoje em dia, A ideia de razão de Estado na época moderna é, em grande medida, um livro excessivo: excessivo na amplitude do seu panorama, excessivo em seu esforço de erudição histórica, excessivo em sua tentativa de enquadrar filosoficamente os problemas, excessivo no pathos com que busca em confrontar os dilemas da época. Em tempos de especialização disciplinar, ainda não haveria algo a se aprender com esse excesso?
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Bibliografia
BALDINI. E. “Maquiavelismo e maquiavelismos”. In: Bagno, Sandra; Monteiro, Rodrigo Bentes (orgs.). Maquiavel no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015a.
____. “Review article: Historical and theoretical aspects of machiavellism”. History of Political Thought, vo. 36, nº 4, 2015b.
BORRELLI, G. “Gli studi di Ragion di Stato negli ultimi due decenni del ventesimo secolo: motivazioni e considerazioni critiche”. Politics. Rivista di Studi Politici. Vol. 4, nº 2, 2015.
FRIEDRICH, C. J. “Review: Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte by Friedrich Meinecke”. American Political Science Review, vol. 25, nº 4, 1931.
GILBERT, F. “Friedrich Meinecke”. In: History: choice and commitment. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1977a.
____. “Machivellism”. In: History: choice and commitment. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1977b.
IGGERS, G. I. The German conception of history. Hanover: Wesleyan University Press, 1988, 2ª ed.
MEINECKE, F. Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte. Munique: R. Oldenbourg, 1960.
____. La Idea de la Razón de Estado en la Edad Moderna. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, 2ª ed.
____. Machiavellism. The doctrine of raison d’État and its place in modern history. Nova York: Frederick A. Praeger, 1965, 2ª ed.
SCHMITT, C. “Zu Friedrich Meineckes Idee der Staatsräson” (1926). In:Positionen und Begriffe. Berlin, Duncker & Humblot, 1988, 2ª ed. (1ª ed. 1940).
SENELLART, M. “La raison d’État antimachiavélienne”. In: Lazzeri, Christian; Reynié, Dominique (orgs.). La raison d’État: politique et rationalité, Paris, PUF, 1992.
STOLLEIS, M. “L’Idée de la raison d’État de Friedrich Meinecke et la recherche actuelle”. In: ZARKA, Y. C. (org.). Raison et déraison d’État, Paris, PUF, 1994.
[1] Professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: bernardofsilva@gmail.com
Este texto retoma ideias e formulações anteriormente apresentadas no meu artigo “Entre kratos e ethos: ética, política e história em Friedrich Meinecke” (Lua Nova, nº 100, 2017, pp. 225-282)
[2] Para essas informações, ver Krol (2021), pp. 81-82. A palavra Staatskunst não possui um equivalente exato em português e pode ser literalmente traduzida por “arte do Estado”. Uma versão livre do título imaginado por Meinecke poderia ser Artes de governar e concepção de história.
[3] Daqui em diante, por razões de conveniência, as citações do livro Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte serão seguidas de parêntese contendo a abreviação IS e a página da citação.
[4] Para uma crítica dessa perspectiva, ver o artigo de Michael Stolleis (1994)
[5] Existe uma ampla bibliografia em torno do “maquiavelismo”, sobre o tema veja-se Baldini, 2015a, 2015b; Senellart, 1992; Gilbert, 1977b
[6] Ainda segundo Schmitt, “o resultado é que a estrutura da obra se afrouxa e, no fim das contas, temos a apresentação de uma sequência de ensaios e retratos sobre uma sequência de autores que, do século XVI ao XIX, trataram do tema da razão de Estado e da política de poder com múltiplas variações” (Schmitt, 1994, p. 52). Carl J. Friedrich, numa resenha de 1931 que explicitamente se alinha com a crítica de Schmitt, apresenta um juízo semelhante: “ao operar com um conceito vago, Meinecke consegue discutir uma vasta rede de ideias heterogêneas, mas essa discussão, pelo mesmo motivo, carece de clareza estrutural” (Friedrich, 1931, p. 1066).
[7] Vale reproduzir o juízo de Gilbert por inteiro: “o livro não constitui um relato unificado, em razão das mudanças de interesse que Meinecke vivenciou enquanto trabalhava nele. Ele esperou até o último momento para decidir se alguns capítulos deveriam ser incluídos ou deixados de fora. O texto é uma coleção de ensaios em torno de um problema mais do que um todo firmemente articulado” (Gilbert, 1977a, p. 78).
[8] Segundo Stolleis, “o simples equilíbrio entre os diferentes capítulos parece obedecer a critérios subjetivos. Assim, o capítulo sobre Rohan constitui uma espécie de monografia intercalada no conjunto e associada ao tema de maneira muito frouxa; da mesma forma, o capítulo sobre Frederico o Grande, quando comparado com os outros, é de uma extensão surpreendente e isso diz mais do prussianismo de Meinecke do que do insignificante Antimaquiavel escrito pelo príncipe” (Stolleis, 1994, p. 16).
[9] Para um quadro sobre a produção recente em torno da razão de Estado ver Borrelli (2015).
Referência imagética: Wikimedia Commons. Friedrich Meinecke. 2019. Autoria de Csapika. Disponível <aqui>. Acesso em: 24 nov. 2024.