João Paulo de Castro Bernardes
I.
Acredito não ser impreciso, ou ousado, afirmar que, desde a publicação da clássica obra de Richard H. Popkin, em 1960, os estudos sobre o ceticismo desfrutaram de um importante revigoramento. Isso se deu, sobretudo, com a recuperação historiográfica e filosófica do pensamento cético moderno que tal obra promoveu, o qual teria sido bastante negligenciado nos anos subsequentes ao Iluminismo (NETO et alli, 2009, p. 1).
Ainda assim, mesmo diante da considerável atenção depositada pela literatura contemporânea em torno de diversas facetas do assunto, seja em sua matriz clássica ou moderna, alguns autores têm notado e destacado uma curiosa realidade: considerações sobre as implicações e os desdobramentos políticos do pensamento cético são um tanto quanto raras, para não dizer quase inexistentes.
Ainda que eu reconheça que essa dificuldade – da falta do que poderíamos chamar de “fontes expressas” de um “ceticismo político” – não se trata de um desafio qualquer, a ser fácil e prontamente superado. Tampouco acredito que a melhor solução para a questão envolva algum tipo de alinhamento com aquelas posturas que negligenciam possíveis conexões entre o pensamento cético e a teoria política, ou que as tratam de uma forma que, conforme procurarei salientar adiante, me parece muito apressada e pouco imaginativa.
Desse modo, no presente texto, minha intenção principal é desenvolver uma breve reflexão para (tentar!) contribuir com aqueles autores que, de modo conjectural e exploratório, procuraram de alguma forma salientar correlações mais sofisticadas entre uma e outra dessas duas tradições da especulação filosófica, almejando assim reforçar um discurso (ainda incipiente, me parece) de que, entre as posturas cética e política, pode existir muito mais do que se supõe nas mais “ortodoxas (e escassas) interpretações” que foram produzidas em torno do assunto.
Antes de prosseguir, porém, acho importante fazer duas ressalvas.
Primeiro, devo deixar claro que, tendo-se em vista a já mencionada falta de considerações expressamente políticas nas textos de muitos dos autores da tradição cética, toda reflexão subsequente terá, conforme salientado por Cícero Romão de Araújo, um caráter essencialmente prospectivo (ARAÚJO, 2007, p. 271) – não se trata, pois, da afirmação de que, dentro do pensamento deste ou daquele escritor, neste ou naquele período histórico, já estariam presentes (nem mesmo em caráter embrionário) as sugestões ou ponderações mais propositivas que desejo sugestionar.
Segundo, e reconhecendo que, dentro dessa mesma tradição, existem inúmeras divergências interpretativas sobre os mais diversos aspectos e elementos do pensamento dos seus grandes expoentes, destaco que tampouco constitui meu interesse a elaboração de um argumento acabado sobre o assunto, que já se pretenda sólido o suficiente para evitar muitas dificuldades conceituais e exegéticas que uma empreitada do gênero suscitaria.
Dessa forma, destaco que, mais uma vez, dados os limites de espaço e tempo, pretendo apenas apresentar o esboço de um argumento a favor de certa “política cética”, no intuito mais singelo de testar sua plausibilidade geral.
II.
Sexto Empírico, como é sabido, foi um autor da Antiguidade, possivelmente dos séculos segundo ou terceiro d.C., que é o grande responsável por fazer chegar até nós o pensamento daquele que é considerado o patrono do “ceticismo filosófico”, Pirro de Élis, este um habitante do século IV a.C. que, todavia, nada escreveu (BOLZANI FILHO, 1998, p. 58).
Em Contra os Éticos, Sexto Empírico nos apresenta uma interessante reflexão que, por sua natureza facilmente associável ao universo da política, pode ser de grande valia para que eu leve adiante a tarefa proposta, de especular sobre possíveis correlações entre a tradição cética e a teoria política. Refiro-me, aqui, a uma de suas tentativas de responder a uma crítica usual formulada contra o ceticismo, a qual postula que o indivíduo cético não pode levar adiante uma vida coerente com as ideias que professa.
De modo mais específico, Sexto Empírico procura contestar o argumento de que o cético é condenado a uma vida de inconsistência, porque, por exemplo, se ele vivesse sob um regime tirânico e fosse ordenado por seu governante a realizar certo “ato impraticável”, ou ele acataria a ordem, para fugir da tortura, ou ele escolheria voluntariamente a morte, para evitar submeter-se a um governante ilegítimo e a um comando absurdo, mas em qualquer hipótese ele abandonaria sua posição de suspensão de julgamento e agiria como “aqueles que apreenderam com confiança que há coisas a serem evitadas e coisas a serem escolhidas” (LAURSEN, 2004, p. 209).
Para deixar mais claro o dilema, deixe-me criar uma suposição mais concreta: imagine que um cidadão qualquer, de nome Tício, habitante de uma comunidade política governada pelo tirano Caio, receba deste último o cruel comando de matar seu filho. Qual deveria ser a linha de ação adotada pelo primeiro, no caso de ser ele um cético professo? Deveria ele matar seu rebento e acatar o comando do tirano, ou deveria ele desobedecer ao governante e preservar a vida de seu descendente? No primeiro caso, deveria fazê-lo por uma questão de dever, de obediência (política), ou porque, caso descumprisse com o que lhe fora ordenado, e dado que o ordenante é um tirano, muito provavelmente sua própria vida estaria ameaçada, e ninguém deve sacrificar-se por outrem, nem mesmo por sua prole? E no segundo deslinde, deveria Tício agir salvando o filho em nome do amor, ou do dever de cuidado e proteção, que deve a ele? Ou deveria assim se comportar, porque na verdade o problema está em seguir os comandos de um governante tirânico, portanto ilegítimo?
Como se pode ver, muitas são as possibilidades não só de reação do cidadão que recebe a ordem, mas também de motivações que sustentam o seu comportamento final. Pois bem, Sexto Empírico, no desenvolvimento de seus argumentos, termina por nos apresentar a seguinte solução como aquela mais afeita ao comportamento de um cético, como seria o caso do nosso personagem Tício: dado que ele não poderá saber qual das posturas (matar ou não? Por dever ou por autopreservação? Por amor ou por justiça?) é aquela verdadeiramente correta, ele deve suspender seu julgamento sobre o assunto e apenas se comportar como determinam os hábitos e costumes de sua comunidade política e de seu tempo histórico. Esse tipo de postura, por sua vez, não seria incompatível com seu próprio ceticismo, uma vez que não implicaria uma escolha motivada com base na ideia de que “há coisas a serem evitadas e coisas a serem escolhidas”.
Essa solução, naturalmente, é apresentada aqui de forma extremamente resumida; Sexto Empírico a sustenta com base em argumentos e ponderações que desenvolve ao longo de toda sua obra, mas não tenho como reproduzi-los aqui. Isso, porém, não deve ser um obstáculo aos propósitos que almejo alcançar, penso eu, pois uma análise detida do ceticismo de Sexto Empírico, de sua coerência ou até de valor normativo, não é o objetivo deste texto.
O que me interessa, por ora, é destacar que essa sua forma de resolver o dilema que ele próprio postulou deu margem ao que antes chamei de uma “interpretação ortodoxa” dos vínculos entre ceticismo filosófico e teoria política: aquela que defende a ideia de que toda postura cética, justamente por empregar o mesmo tipo de raciocínio reproduzido acima, implicaria uma política excessivamente conservadora, quietista e conformista (LAURSEN, 1992, pp. 24/ss.).
De fato, se o cético, por não conseguir conhecer a verdade sobre fatos ou questões políticas diversas – e, portanto, por não ser capaz de fazer uma escolha baseada num critério consistente e universal entre as opções políticas que se lhe apresentam –, deve apenas seguir o fluxo de seu tempo e de contexto social, reproduzindo as práticas e decisões já existentes, parece que, ao menos num primeiro momento, toda sugestão que o ceticismo pode oferecer à teoria política é uma rejeição peremptória da possibilidade de mudança social e uma defesa passiva da tradição e da manutenção das estruturas e normas existentes – algo próximo ao conservadorismo, por conseguinte.
Ocorre que, como dito antes, essa me parece ser uma conclusão demasiadamente apressada e muito pouco imaginativa. Ela não percebe, ou simplesmente parece ignorar, que a própria ideia de ceticismo comporta variadas acepções e, a depender de como operamos estas, também serão diferentes as repercussões da filosofia cética para o universo das questões e desafios característicos da teoria política.
Vejamos, por exemplo, o que nos diz Laursen sobre o assunto. Ele destaca que, mesmo na hipótese de concordarmos que o ceticismo fatalmente implica a obediência ao hábito e ao costume, pode ser que o “ambiente habitual e costumeiro” em que o cético está inserido seja um de exaltação à mudança, de inovação e de revolução, o que faria dele um cidadão não comprometido com uma política conformista, muito pelo contrário (LAURSEN, 1992, pp. 48/49) – pense, por exemplo, se nosso personagem Tício fosse um habitante da França de 1789, em que a efervescência política e revolucionária apontavam para uma sociedade mais reformadora do que tradicionalista. De modo mais claro, e mencionando o exemplo do tirano que reproduzi anteriormente, o autor indica que, como a recomendação de Sexto Empírico é de que o cético deve seguir os costumes de sua comunidade, e como os costumes evoluem e se alteram com o tempo,
“então o cético pode muito bem se engajar numa política ativista, contra o tirano, por exemplo, ainda que ele assim o fizesse sem reivindicar que age por algum comprometimento com teorias sobre o bem e o mal naturais” (LAURSEN, 2004, p. 226 – tradução livre).
Mas seria esse o único caminho plausível para afastarmos a “interpretação ortodoxa” e tentarmos esboçar um tipo de política cética que não fosse essencialmente conservadora? Minha sugestão é de que não. Como disse anteriormente, tudo depende do modelo de ceticismo que assumimos como fundamento da teoria política que pretendemos elaborar e, para deixar isso mais claro, gostaria de retomar agora uma das principais distinções que marcaram a tradição do pensamento cético com que venho dialogando.
III.
De forma bastante tradicional, desde a Antiguidade, a “filosofia cética” sempre foi separada em duas correntes distintas, o ceticismo pirrônico e o ceticismo acadêmico. Pois bem, Sexto Empírico seria um expoente importante da corrente pirrônica do ceticismo; ele teria sido, como já mencionei, o indivíduo responsável por fazer chegar até nós os ensinamentos de Pirro de Élis, pensador da Antiguidade cujas ideias são tão basilares na tradição, ao ponto de ter sido a partir de seu nome que uma das “escolas céticas” foi nomeada.
As considerações feitas anteriormente, que indicam a leitura alternativa de Laursen para o caráter não conservador da “política cética’, ao se basear numa interpretação do que afirmava Sexto Empírico, pode ser compreendida, portanto, como uma tentativa de extrair do ceticismo pirrônico uma “exegese heterodoxa” para o dilema do tirano. Mas se tomarmos por base o ceticismo acadêmico, nossas conclusões podem ser diferentes.
De forma sucinta, o que diferencia essas duas correntes está relacionado com a postura de cada qual com relação à possibilidade da descoberta da verdade: enquanto acadêmicos indicam que o verdadeiro nunca pode ser conhecido, os pirrônicos se eximiram de fazer até mesmo essa afirmação, sustentando que o cético é aquele que permanece sempre em aporia, no intuito constante de “abalar, duvidar e investigar, não garantir nada, nada responder” (MONTAIGNE, 2006 apud SMITH, 2015, p. 44).
Seria, aliás, por assumir a impossibilidade de superar a investigação e chegar a uma conclusão final que o cético pirrônico deveria suspender o seu julgamento e, ao buscar razões que motivem sua ação, encontrá-las apenas nos costumes ou hábitos de onde se vê inserido. Mas e o cético acadêmico? Diante da afirmação de que a verdade não pode ser descoberta, ficaria ele carente de critérios para a ação, devendo também recorrer ao “subterfúgio” da obediência às normas consuetudinárias?
A filosofia cética acadêmica, embora tenha destacado a falibilidade do nosso conhecimento, não deixou de buscar tal critério prático de forma mais elaborada. Trabalhando com a ideia de que, muito embora não possamos conhecer as coisas como de fato elas são, os acadêmicos desenvolveram importantes conceitos como “o provável” e “o razoável” para indicar que podemos orientar nosso agir em função de “como as coisas aparentam ser”, tomando por base nossa razão – o que traz consequências fundamentais para a argumentação política:
“o “razoável” consiste naquilo que apresenta boas razões e que, embora não possa ser tomado como expressão da realidade em si mesma, parece estar fundado na prudência (daí a sua relação com a felicidade). Por isso, o “razoável”, adotado como critério para a ação política, exigiria que os agentes políticos buscassem argumentos plausíveis para justificarem perante outros o que querem e o que fazem” (MACIEL, 2012, p. 133).
O que isso poderia, enfim, implicar diante da situação do tirano, mencionada anteriormente? Qual seria, para o cético acadêmico, a “postura adequada” que ele deveria ter, diante da ordem absurda que recebesse de tal governante ilegítimo?
Para solucionar a questão, diferentemente das sugestões pirrônicas anteriores, que apelam à obediência aos costumes e hábitos do contexto em que se insere, o acadêmico poderia desenvolver uma argumentação que demonstrasse que, como a ordem dada teria partido de um tirano, classicamente definido como aquele governante que governa em prol de seus próprios interesses, menosprezando o bem-comum, existem mais motivos convincentes e consistentes indicando que ele deva resistir ao comando e não obedecer ao tirano.
Elaborando um pouco mais a ideia – de modo meramente especulativo, porém –, o cético acadêmico poderia, por exemplo, coadunar-se com a interpretação de Skinner (2004) sobre o pensamento de Milton e argumentar que o direito de resistência à tirania e seus comandos justificar-se-ia em decorrência de certa “teoria do estado livre”, que estipula que um poder ilimitado do soberano é ilegítimo, como ocorre no caso dos regimes tirânicos.
Postulando, tal como Milton pontuara, que as evidências históricas de que dispomos nos levam a crer que “o mais razoável” é supormos que todo ser humano nasce livre, só pode ser por meio de um contrato, ou de um acordo, que dispomos de parte dela para que uma autoridade nos governe; mas se fizemos isso, “o mais razoável” é supor que foi porque vimos aí algum tipo de benefício para nós, ou melhor, porque imaginamos que apenas com a proteção de uma autoridade nosso bem-comum e nossa segurança seriam melhor preservados; mas partindo dessa qualificação, por sua vez, “o mais razoável” seria supor que o pacto celebrado com nosso governante é condicional e só se mantém válido na medida em que ele cumpre com sua parte, inexistindo nele qualquer poder absoluto; um tirano – como visto, alguém que governa em prol de seus interesses pessoais – certamente falha no cumprimento dessa sua parte do acordo, motivo pelo qual, vez mais, “o mais razoável” seria reconhecer que temos o direito de resistir a suas ordens e de não obedecer aos seus comandos (SKINNER, 2004, p. 298).
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova, ou do Cedec.
Referências bibliográficas:
ARAÚJO, Cícero Romão de. “Política e Ceticismo”. In: SMITH, Plínio Junqueira; SILVA FILHO, Waldomiro José da (Org.). Ensaios sobre o ceticismo. São Paulo: Alameda, 2007.
BOLZANI FILHO, Roberto. “Acadêmicos versus Pirrônicos: ceticismo antigo e filosofia moderna”. In: Discurso, nº 29, 1998, pp. 57/110.
LAURSEN, John Christian. The Politics of Skepticism in the Ancients, Montaigne, Hume, and Kant. Leiden: E. J. Brill, 1992.
______________________. “Yes, Skeptics can live their Skepticism and cope with Tyranny as well as Anyone”. In: NETO, José R. Maia Neto; POPKIN, Richard H. (Eds.). Skepticism in Renaissance and Post-Renaissance Thought. Nova Iorque: HB, 2004, pp. 201/234.
LAURSEN, John Christian; PAGANINI, Gianni (Eds.). Skepticism and Political Thought in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. Toronto: Toronto University Press, 2015.
MACIEL, Marcelo da Costa. “Ética e política nos céticos antigos”. In: Revista Estudos Filosóficos, nº 9, 2012, pp. 120/135.
NETO, José R. Maia; PAGANINI, Gianni; LAURSEN, John Christian (Eds.). Skepticism in the Modern Age: building on the work of Richard Popkin. Leiden: Brill, 2009.
POPKIN, Richard H. The History of Skepticism: from Savonarola to Bayle. Oxford: Oxford University Press, 2003.
SEXTO, EMPÍRICO. Against the Ethicist. Oxford: Clarendon Press, 1997.
SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
SKINNER, Quentin. “John Milton and the politics of slavery”. In: SKINNER, Quentin. Visions of Politics. Vol. II: Renaissance Virtues. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
SMITH, Plínio Junqueira. O método cético de oposição na filosofia moderna. São Paulo: Alameda, 2015.
Fonte imagética: Marble head of a philosopher, early Roman copy (2nd century BCE) of a bronze
Greek original from the 4th century BCE. Archaeological Museum of Corfu. Disponível
em https://www.worldhistory.org/image/15339/marble-head-of-a-greek-philosopher/>. Acesso em 17 abr 2023.