Pedro Giovannetti Moura [1]
É a partir da resolução da disputa interna do Partido Comunista da China (PCCh) após a morte de Mao Zedong, em 1976, com o apontamento de Deng Xiaoping como seu sucessor e principal liderança da República Popular da China (RPC), que é possível demarcar um conjunto de transformações econômicas significativas no país – como fiz em artigo recentemente publicado na Revista Princípios, “Deng Xiaoping na Vila Euclides. As reformas chinesas de 1978 e o Partido dos Trabalhadores”. Nele, argumento que tais reformas representam um impacto, simultaneamente, no desenvolvimento chinês, na geopolítica global e na própria trajetória do pensamento socialista mundial.
Evidentemente, o tema inspirou diferentes interpretações. Mais do que um conjunto de diferentes narrativas sobre uma realidade concreta – a chinesa -, essas interpretações são decorrentes de postulados distintos dentro do debate sobre o “modo de produção socialista”, que ganhou espaço sobretudo dentro dos partidos de esquerda. Para os que advogam a tese da capitulação chinesa ao capitalismo a partir de 1978, as insuficiências da Revolução Cultural se explicam pelas reminiscências de relações sociais de produção capitalistas mesmo com o processo revolucionário chinês. Por outro lado, aos que seguem a linha proposta por Deng Xiaoping, fica evidente a noção de que a construção de um modo de produção capitalista prescinde de um avanço nas forças produtivas. Embora ambos os lados não excluam a importância do desenvolvimento material ou a importância do combate às relações capitalistas de suas análises, sua diferenciação reside na prioridade conferida a cada aspecto. Voltaremos adiante nessa discussão.
Deng, China e o socialismo
“Governo chinês anuncia o fim da economia centralizada. Os produtos liberados do controle estatal obedecerão às forças do mercado: a oferta ditada pela demanda, de acordo com os princípios da economia capitalista, e não pelas metas estabelecidas pelo governo”. (Folha de S. Paulo, 10/10/1984)
O objetivo da nossa luta partidária no novo período histórico é tornar a China, passo a passo, um poderoso país socialista com uma moderna agricultura, indústria, defesa nacional e ciência e tecnologia e com um alto nível de democracia e cultura (CHINESE COMMUNIST PARTY, 1981, p. 27, tradução do autor).
O jornal “Folha de São Paulo” e o PCCh, acima, não concordam entre si. O tradicional periódico brasileiro, representativo de uma visão bastante hegemônica na grande mídia, interpretou as reformas de Deng enquanto uma subversão dos preceitos socialistas, marcada pelo fim da economia centralizada e o predomínio do mercado enquanto entidade reguladora da economia chinesa. Já a importante resolução do partido de 1981 – uma das primeiras a não só estabelecer um balanço sobre o significado das reformas de Deng, como consolidar uma visão sobre o processo histórico revolucionário chinês – aponta para um outro caminho. Embora a defesa das quatro modernizações – agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia – como um caminho constituinte de um novo período histórico, essas transformações se dariam sob a liderança do PCCh e com o objetivo da criação de um “poderoso país socialista”.
Tal “discordância” não é um aspecto menor. Já presente em 1984, a interpretação de que, a partir das reformas econômicas de Deng Xiaoping, a China abandonara seu caráter socialista e se convertera em um país capitalista, ganhou força nas últimas décadas. Cada vez mais a China se demonstra um elefante na sala: com a adoção de uma política econômica em que, até 2017, havia retirado 850 milhões de pessoas da pobreza (redução de pobreza sem precedentes na história); transformado um IDH de 0,410 em 1978 para 0,761 pontos em 2021; atingido uma taxa de 88% da população rural com acesso à escola primária, além de um acesso a clínicas de saúde na ordem de 92,2% dessa mesma população, o caso chinês inspira curiosidade crescente (MAIA, 2021).
Um conjunto de atores como grandes conglomerados comunicacionais, partidos políticos e intelectuais identificados com postulados liberais cada vez mais veem nas reformas chinesas uma comprovação do triunfo capitalista. Interpretação essa compartilhada até mesmo entre os que se referenciam sob paradigmas socialistas. Evidentemente, no lugar da exaltação, as reformas são vistas sob um viés negativo. Antes de nos debruçarmos sobre esse debate, no entanto, uma breve explicação sobre o que foram essas reformas se faz necessária.
A resolução de 1981 do PCCh considera o ano de 1976 um “turning point” da Revolução Chinesa. A conotação positiva do ano, naturalmente, não faz alusão a morte de Mao Zedong. Apesar da crítica ao líder pelo alcance que tomaram as perseguições impostas durante a Revolução Cultural – chegando, inclusive a membros da burocracia partidária (CHINESE COMMUNIST PARTY, 1981, p. 13) -, o legado de Mao é enaltecido ao longo de todo documento, sendo seu conjunto de ideias eixo basilar a guiar a própria Revolução Chinesa. O ponto de virada, portanto, estaria na derrota do “movimento contrarrevolucionário” dos quatro[2], responsável por um verdadeiro “desastre nacional” (CHINESE COMMUNIST PARTY, 1981, p. 18) [3].
É a partir dessa vitória, manifesta essencialmente pela alçada de Deng – representante do grupo partidário que visualizava a realização de modernizações econômicas como imprescindíveis para a continuidade da revolução, liderados por Zhou Enlai – à liderança do partido, que identificamos esse conjunto de reformas. Foi nesse momento que o PCCh muda seu foco para o que chama de modernização socialista”. No documento do Partido temos que:
[o PCCh] tomou a estratégica decisão de mudar o foco do trabalho para a modernização socialista. Isso significa que a atenção deve se voltar para solucionar o problema dos graves desequilíbrios entre os grandes polos de desenvolvimento econômico e a aceleração do desenvolvimento agrícola (CHINESE COMMUNIST PARTY, 1981, p. 19, tradução do autor).
Podemos sintetizar essa “modernização socialista”, resumidamente, sob a alcunha de quatro grandes mudanças empreendidas: a reforma agrícola; a reforma administrativa; a reorganização do trabalho; e por fim, e mais impactante do ponto de vista da geopolítica internacional, temos a abertura das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) de Shenzhen, Zhuhai, Shantou (Guangdong) e Xiamen (Fujian) – que seriam aprofundadas em 1984 com a abertura de 14 cidades costeiras (entre elas Xangai).
Se, do ponto de vista econômico, as reformas suscitam debates entre ortodoxos e heterodoxos, do ponto de vista político, também, a guinada da planificação chinesa tem uma grande representação para o movimento socialista internacional. Em um cenário de enfraquecimento da URSS e reorganização da acumulação capitalista sob a égide neoliberal, a China passava a se constituir enquanto um importante farol para o pensamento socialista global. É nesse sentido que, mais do que o próprio debate técnico das reformas, sua natureza política passou por um verdadeiro escrutínio.
O economista e historiador francês Charles Bettelheim é um importante ponto de partida no debate da recepção internacional das reformas chinesas nos meios socialistas. Consultor econômico em países em desenvolvimento durante o processo de descolonização, Bettelheim foi um dos grandes entusiastas ocidentais da Revolução Cultural chinesa. Em 1973, escreve Revolución Cultural y organización industrial en China. No livro, que conta com uma série de entrevistas com trabalhadores em postos de comando nas indústrias chinesas, Bettelheim manifesta grande entusiasmo pelo processo aberto com a Revolução Cultural e argumenta como esse evento representara a derrocada da linha burguesa no partido – expressa por Liu Shao-Chi – e o início da construção de uma nova moral, a revolucionária. O modelo de gestão de fábricas de Xangai, exercido pelos próprios trabalhadores, representara uma nova forma de produção que se estendera para outras esferas da vida dos trabalhadores (BETTELHEIM, 1974).
Já a interpretação de Deng Xiaoping para o processo é distinta. Em primeiro lugar, convém destacar que a retórica do líder comunista ainda é a da valorização do socialismo e do pensamento de Mao Zedong enquanto um pilar de construção da sociedade chinesa. Na central resolução de 1981, o PCCh afirma que: “O socialismo, e apenas ele, pode salvar a China. Esta é a conclusão inalterável[4]” (CHINESE COMMUNIST PARTY, 1981, p. 27). Não só: Deng Xiaoping atesta que os quatro princípios elementares a guiarem essa nova era chinesa seriam: o caminho socialista; a defesa da ditadura do proletariado; a liderança do PCCh; e a defesa do pensamento de Mao Zedong e do Marxismo Leninismo (XIAOPING, 1979)[5].
Para além da defesa do caminho socialista, interessante notar a centralidade conferida ao exercício da ditadura do proletariado e a importância da liderança do PCCh como condicionantes para a realização das modernizações. Sob uma base nacional frágil, “esfacelada pelas forças do feudalismo, imperialismo e do capitalismo-burocrático”, de uma grande população não acompanhada de suficiente terra arável (XIAOPING, 1979), o desenvolvimento das forças produtivas é central para não fazer da revolução um conjunto de palavras vazias (XIAOPING, 1979). Assim, argumenta o autor, “para desenvolver o socialismo devemos primeiro desenvolver as forças produtivas” (XIAOPING, 1980).
É sob essa alcunha que situamos as reformas econômicas empreendidas por Deng. Ora, mas independente da vontade política expressa pelo PCCh, na prática, essas reformas não poderiam implicar na recondução objetiva do projeto burguês na China? Wladmir Pomar (w2015, p. 112) argumenta que os dirigentes não tinham ilusão sobre a natureza da colaboração que se estabeleceria a partir da adoção das reformas de Deng. A burguesia, enquanto classe, tentaria ganhar o predomínio econômico e político, mas, a partir da atuação do Partido Comunista, foi “obrigada a curvar-se ao poderio popular e, mesmo contra a vontade, a colocar seus conhecimentos e capitais a serviço da construção do novo regime.” Essa interpretação é compartilhada por Blackburn (2006, p. 17), para quem “o reconhecimento da força do mercado mundial não significa capitulação à dinâmica capitalista ”.
PT, China e o socialismo
A primeira e, talvez, mais fundamental característica do entrelaçamento proposto nessa seção – a visão do PT frente às reformas chinesas de 1978 – pode ser resumida em uma palavra: (quase) ausência. Ao analisarmos o documento de fundação do Partido, suas teses para atuação e mesmo a carta de princípios, anterior ao próprio documento de fundação (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1980, 1984, 1979 respectivamente)[6] a palavra China não aparece. Mais especificamente: até 1989 (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1989) não há um documento em congresso ou encontros partidários que aprofunde a análise sobre a experiência chinesa de construção socialista por parte do PT.
Em um cenário nacional de lutas pela redemocratização contra a ditadura militar e adensamento das organizações do trabalho – como os movimentos camponeses e o novo sindicalismo -, o partido nascia fora da órbita do comunismo soviético; distanciava-se do “populismo latino-americano”, e negava oficialmente a herança social-democrata (SECCO, 2012, p. 36). Mesmo sua organização política enquanto um partido de tendências – e sem o predomínio do centralismo democrático marxista-leninista – é indicativo dessa diferenciação frente aos comunistas (SECCO, 2012, p. 31).
Dentro dessa pluralidade – que também contou com quadros políticos da oposição democrática ao regime militar – não foram poucos os episódios de antagonismo entre o partido que representava um novo segmento da classe trabalhadora brasileira e a tradição comunista internacional. Essas divergências se expressavam sobretudo em dois pontos. O primeiro é o sindical: por trás de expressões como “independência” e “liberdade” sindical, corriqueiras nos documentos de fundação do partido (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1979, 1980) se escondia uma crítica ao sindicalismo hegemonizado pelas forças comunistas nacionais, taxado de sindicalismo “pelego”.
O segundo ponto de antagonismo e, para o meu propósito o mais significativo, operava na leitura de política externa do partido. Nos pontos para elaboração do seu programa, ao fazer menção à solidariedade ativa aos movimentos de libertação dos povos oprimidos, há críticas diretas à “farsa dos direitos humanos de Carter”; às “sangrentas ditaduras na América Latina”; e “aos gulags, na União Soviética como em qualquer outra parte” (PARTIDOS DOS TRABALHADORES, 1980, p. 117). Ou seja, nota-se uma quase equalização dos acontecimentos na URSS com as ditaduras latino-americanas e a política estadunidense.
Ora, mas se há antagonismos e descontinuidades, há também continuidades. Conforme apontado por Valter Pomar, comunistas, nacionalistas, sociais-democratas e demais forças progressistas lidavam com uma tendência de ofensiva neoliberal mundial expressa nas vitórias de Reagan e Thatcher (V. POMAR, 2014, p. 55). E a principal continuidade expressa pelo PT foi a manutenção da reinvindicação do socialismo enquanto ideologia responsável pela transformação social, apesar da negação explícita da estratégia etapista adotada pelo movimento comunista (V. POMAR, 2014, p. 110).
O primeiro documento oficial do partido afirma que:
O PT afirma seu compromisso com a democracia plena, exercida diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia nem democracia sem socialismo. Um partido que almeja uma sociedade socialista e democrática tem de ser, ele próprio, democrático nas relações que se estabelecem em seu interior (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1979, p. 4).
Assim, o socialismo se fundiria, na visão expressa pelos documentos do partido, em luta pela democracia. Mas que tipo de democracia? Primeiramente, entende-se aqui democracia do ponto de vista organizativo-partidário: as bases partidárias seriam vistas elas próprias enquanto capazes de ditar os rumos da organização política, em um modelo que se pretendia distinto dos partidos de vanguarda socialistas. Mas, sob o ponto de vista da organização social como um todo, será em 1987 que um documento oficial do partido abordará o tema de forma mais detalhada.
Nas “Resoluções Políticas de 1987”, há uma seção toda destinada para as elaborações do partido sobre o socialismo. Ali afirma-se que a luta pela democracia, portanto, não deveria ser vista enquanto antagônica, mas um elemento constitutivo do acúmulo de forças para a revolução socialista. Assim, movimentos como a condenação aos gulags ou de apoio à luta do movimento polonês solidariedade, para além de interpretações sobre a política internacional influenciadas fortemente pela visão trotskysta – relevante no partido -, representariam uma convergência com o próprio caráter “democrático” estipulado pelo socialismo petista (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1987, p. 10).
É tendo em vista esse cenário que posso me debruçar sobre o primeiro documento oficial do partido que, ainda que não diretamente, aborda a conjuntura chinesa do pós-reformas, a moção “Não ao massacre do povo chinês”, de 1989. Nesse ano, os protestos estudantis chineses atingiam seu auge com um conjunto de manifestações que se concentravam em Pequim, a partir de abril daquele ano, após a morte por infarto de Hu Yaobang, membro do alto escalão do PCCh. A natureza desses protestos é alvo de uma constante disputa política: enquanto para Hui (2006), os estudantes e trabalhadores ali presentes protestavam contra a mudança de rumo empreendida pelo governo Xiaoping, para o próprio Xiaoping (1987, 1989) as mobilizações representavam o exato oposto, isto é, a articulação de forças capitalistas que buscavam a derrocada do regime socialista. Fato é que, no dia 4 de junho, o Exército Popular de Libertação é chamado para pôr fim a manifestação, gerando cenas que rodaram o mundo, como a fotografia tirada por Jeff Widener, retratando um jovem chinês postado à frente dos tanques de guerra. A imagem rapidamente ganhou contornos de uma suposta e difusa luta contra o “autoritarismo” e a “opressão” comunista nos grandes centros de notícias internacionais.
Dez dias após o ocorrido, o PT organiza um evento para debater exclusivamente a questão chinesa na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo. É a partir desse encontro que é escrito, no VI Encontro de 1989, a moção “Não ao massacre do povo chinês” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1989). Embora não aborde as reformas chinesas de forma direta, o documento carrega consigo concepções que dialogam com visões interpretativas sobre esse fenômeno histórico. Visto enquanto uma manifestação em prol da “democratização”, afirma o documento que:
A China conta seus mortos, e os trabalhadores de todo o mundo olham estarrecidos a barbárie cometida, em nome do socialismo, pelos dirigentes chineses. O PT, que defende o socialismo com liberdade, não poderia se calar neste momento trágico, que obscurece a imagem do socialismo aos olhos dos trabalhadores de todo o mundo. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1989)
Para além da interpretação do evento em si, o trecho em questão vai além ao afirmar a necessidade dos partidos progressistas “não se calarem nesse momento trágico”. E o não se calar nesse momento trágico significaria, na visão do partido, apontar para a “barbárie cometida em nome do socialismo”. Assim sendo, o dever dos partidos socialistas deveria ser, justamente, se distanciar do ocorrido e defender um “socialismo com liberdade”. A narrativa aqui dialoga de forma direta com o documento de 1987 e os pressupostos do socialismo petista: um modo de organização político que deve ser indissociável da democracia, sendo que, quem não partilha dessa concepção “obscurece[m] a imagem do socialismo aos olhos dos trabalhadores do mundo”.
Ora, mas qual seria a razão para um partido comunista, filiado à tradição socialista, abandonar os preceitos democráticos e, por extensão, deixar de representar os interesses de suas classes trabalhadoras? Um pequeno trecho adiante e, por fim, o fragmento da conclusão da moção nos oferecem respostas:
Um comunicado oficial do governo, transmitido pela TV, dizia que o Exército acabou com uma tentativa de golpe contra-revolucionário, comandada por bandidos. A mais sórdida mentira estava sendo contada pelos burocratas assassinos para esconder a verdade que as telas da TV mostraram a todo o mundo. (…) (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1989)
Aqui, a visão defendida por Deng – a saber, de que os eventos de Tiananmen representariam uma tentativa de golpe antirrevolucionário -, é contrariada, sendo interpretada como uma “mentira” contada por “burocratas assassinos”. A palavra mais importante para interpretarmos a visão petista sobre o que ocorria no país está na noção de “burocratas”. Adiante, na mesma moção, afirma-se que um conjunto de famílias de “burocratas privilegiados” manchavam de sangue a ideia do socialismo.
Ora, mais do que uma análise sobre o evento histórico, o documento aqui expressa um alinhamento do partido frente às interpretações esmiuçadas na primeira sessão que enxergam na China pós-1978 uma guinada nas ideias socialistas, com o fortalecimento de um conjunto de burocratas partidários que se afastariam dos propósitos socialistas e privilegiariam concepções tecnicistas. Portanto, não é só o autoritarismo que alvo de análise como também o descolamento entre lideranças e base partidária, o que representaria, em última instância, uma subversão ao propósito socialista.
A questão chinesa foi impactante a ponto do partido, um ano depois, produzir o documento “Socialismo Petista” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1990). Ali se encontram, sistematizados, os principais elementos até então debatidos sobre o tema. O compromisso estratégico com a democracia leva o partido a refutar e se distanciar dos modelos do socialismo real. Tal negação não significaria um não apoio à luta pela libertação dos trabalhadores mas, pelo contrário, uma defesa dos “autênticos processos revolucionários”. O caso chinês, assim, seria paradigmático de um modelo com “profunda carência democrática”, marcado por um monopólio partidário comandado por uma “burocracia enquanto casta privilegiada” preocupada em reprimir o pluralismo ideológico e a democracia de base (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 1990, p. 3- 4).
Dessa forma, observa-se como, a partir da análise das principais formulações partidárias, embora não tenha existido um debate pormenorizado sobre as reformas da planificação de Deng Xiaoping dentro do PT, podemos notar que as consequências políticas da experiência chinesa foram objeto de análise interna. Mais do que isso, o teor das visões do partido expressas nas resoluções nos indica uma visão global do chamado “socialismo petista”, sendo, portanto, de suma importância não só pelo estudo da assimilação das reformas chinesas por parte de grupos progressistas, como um elemento fundamental para compreensão da identidade do próprio partido.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
BETTELHEIM, Charles. Revolución Cultural y organización industrial en China. México: Siglo veitiuno editores, 1974.
BLACKBURN, Robin. Prefácio. In: SADER, Emir. O muro depois da queda. Tradução Jamary França. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
HUI, Wang. Depoliticized politics, multiple components of hegemony, and the eclipse of the sixties. In: Inter-Asia Cultural Studies, VIII, n.4, 2006, p.683-700.
MAIA, Isis. Pesquisadora revela China ignorada pela mídia onde 850 milhões deixaram a pobreza. Brasil de Fato. Ayrton Centeno. Brasil de Fato, Porto Alegre, 27 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/27/pesquisadora-revela-china-ignorada-pela-midia-onde-850-milhoes-deixaram-a-pobreza. Acesso em 24/12/2021.
POMAR, Valter. A metamorfose. São Paulo: Editora Página 13, 2014
POMAR, Wladmir. O enigma chinês. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015.
SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
Discursos de Deng Xiaoping e intervenções disponíveis em: https://dengxiaopingworks.wordpress.com/ Acesso em 30/12/2021
Documentos do Partido dos Trabalhadores (PT) disponibilizados pelo Centro de memória Sérgio Buarque de Holanda (CSBH) da Fundação Perseu Abramo. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/ Acesso em 30/12/2021.
[1] O artigo aqui apresentado é uma versão sintetizada de outro publicado pela Revista Princípios. Moura, P. G. (2022). Deng Xiaoping na Vila Euclides: As reformas chinesas de 1978 e o Partido dos Trabalhadores. Princípios, 41(164), 287 – 309. Disponível em https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/184. Acesso em 11/07/2022. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPHR/UFRRJ) e bolsista da CAPES. É mestre pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Bacharel e licenciado em História na FFLCH/USP. E-mail: pedrogimoura@hotmail.com.
[2] Os quatro que o documento menciona são Jiang Qing, Zhang Chungiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan que, juntos, formavam a Gangue dos Quatro, grupo de extrema esquerda que se opunha às reformas de Deng e buscava um aprofundamento da Revolução Cultural e do combate às relações de produção capitalistas.
[3] CHINESE COMMUNIST PARTY. “Resolution on Certain Questions in the History of Our Party since the Founding of the People’s Republic of China,” June 27, 1981, History and Public Policy Program Digital Archive, Translation from the Beijing Review 24, no. 27 (July 6, 1981): 10-39. http://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/121344. Acesso em 30/12/2021
[4] Tradução livre de: “Socialism and socialism alone can save China. This is the unalterable conclusion”.
[5] O conjunto de discursos de Deng Xiaoping está disponível na página <https://dengxiaopingworks.wordpress.com/>. Acesso em 30/12/2021
[6] O conjunto de documentos utilizados nesse texto está disponibilizado pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo na página <https://fpabramo.org.br/csbh/> Acesso em 30/12/2021.
Fonte Imagética: Encyclopedia Britannica. Deng Xiaoping – Chinese Leader (1904-1997). s. d. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Deng-Xiaoping>. Acesso em: 8 jul. 2022.