Monica Stival[1]
9 de dezembro de 2024
A ideia de que o Brasil está em disputa é o eixo condutor da nova história da economia brasileira nos últimos vinte anos proposta por Pedro Rossi. A obra não é nova porque traz elementos obscurecidos nas análises que foram produzidas ao longo dos anos, nem porque surpreende com uma tese inesperada. É nova porque organiza o que está em disputa – e essa é a atitude política mais importante que podemos ter ao nos colocarmos no amplo debate social atualmente. Afinal, vivemos tempos em que a noção de disputa está cada vez mais fora do jogo.
Quero dizer: o mérito maior do livro está no eixo de análise. Não é uma tese mágica ou um elemento despercebido que organiza uma nova história da economia – e seria o mesmo para uma nova história da política nacional –, mas o próprio fato de explicitar tanto que há uma grande disputa de política econômica quanto que a história é disputa.
Toda historiografia sabe dos riscos de sequenciar períodos e defini-los a partir de conceitos centrais que deles emergem, destacando assim sua singularidade. O modo pelo qual é possível separar um momento de outro é, logicamente, por sua diferença. O tema que fornece a distinção histórica, nesse caso, é a ênfase da política econômica.
Rossi organiza a história recente da economia brasileira, a contar de 2002 em diante, a partir de duas chaves-gerais: uma agenda econômica distributiva e uma agenda econômica neoliberal. Elas distinguem dois grandes períodos, um deles orientado pelos princípios da Constituição de 1988 e o outro orientado pela política econômica hegemônica no mundo do século XXI. Claro que esta última não chegou por aqui de repente, na carona do golpe de 2016, atrasada, mas ao contrário. É pelo menos tão antiga quanto a Constituição Cidadã. O que Rossi fez em seu livro é explicitar dois momentos distintos na hegemonia de uma e outra nas políticas econômicas do governo nacional. E se há hegemonia ou pelo menos uma ênfase muito distintiva é porque essa disputa move internamente a história recente do Brasil – a disputa, e não alguma posição exclusiva que repousasse confortavelmente em berço esplêndido.
Pedro Rossi procura mostrar como o crescimento do país nos dois primeiros governos Lula (2003-2010) resulta de uma política econômica baseada nos princípios constitucionais de distribuição e implementam assim uma parte da agenda desenvolvimentista de Celso Furtado – a inclusão dos marginalizados no mercado de trabalho formal, porém para modernizar padrões individuais de consumo e não o perfil tecnológico da produção ou, pelo menos no mesmo ritmo, a infraestrutura de serviços públicos, comuns, universais e gratuitos. O efeito nos padrões de consumo da população de baixa renda é significativo, como mostra Rossi, inclusive porque interage com a integração dessa população no mercado de trabalho, que reduziu o desemprego e o subemprego.
A modernização da estrutura produtiva, necessária para sedimentar essa cadeia virtuosa de consumo e trabalho, era esperada para o governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Contudo, as políticas necessárias para uma industrialização capaz de efetuar essa sedimentação não se realizaram quando confrontadas aos interesses do capital financeiro e à inflação gerada pela depreciação cambial e pelo conflito distributivo. Este, afinal, é gerado pela dinâmica daquela cadeia virtuosa face a contradição entre a expectativa de lucro dos empresários – que sempre clamaram pela redução do “custo-Brasil”, principalmente de sua “mão de obra” – e a expectativa salarial de quem gera de fato a riqueza.
Além disso, os efeitos da crise internacional de 2008 fomentaram importações manufatureiras crescentes, enterrando de vez a possibilidade de uma política de industrialização caseira. Os empresários clamam, assim, que a solução do conflito distributivo pese uma vez mais sobre o trabalho e renda via ajuste fiscal. O ajuste fiscal começou no primeiro governo Dilma, mas foi o choque recessivo do segundo governo Dilma que esgotou a tentativa de conciliação entre expectativas sociais diferentes e desiguais, criando condições para o golpe que se seguiu.
É preciso notar neste momento a armadilha gerada pela perspectiva econômica convencional, entendida como fundamento das relações de causa e efeito no campo político, e que obscurece o sentido de disputas concretas como junho de 2013. Rossi menciona o adiamento do reajuste da tarifa de transporte em São Paulo, das férias de janeiro para junho, como uma oportunidade (econômica) para uma “consequência inusitada” da política de preços monitorados.
Ainda que o autor, por prudência, não quisesse entrar nas teias pegajosas das análises de 2013, esta ausência fala muito a respeito do papel dos sujeitos sociais, reconhecidos em uma dinâmica de classes ou em um aglomerado disperso (“multidão”), em meio a essa nova história da economia. De fato, ele propõe uma história nova da economia: é como se o Brasil estivesse sendo disputado pela economia, enquanto os sujeitos concretos aparecem como resultado, causa ou elementos desse jogo econômico. As escolhas e narrativas econômicas são alçadas a verdadeiros atores da disputa.
Na grande mídia, a narrativa difundida sobre a crise econômica brasileira se assemelhava à fábula da cigarra e da formiga. Como a cigarra, a economia brasileira teria vivido de excessos cujas consequências foram anos de privação. E, como ensina a formiga, o caminho a seguir é a austeridade, a abstinência e o sacrifício” (p. 48).
Aqui Rossi dá voz ao neoliberalismo que se fortalecia como prioritário em meio à disputa com o modelo distributivo e suas consequências nem sempre alvissareiras (para alguns). Na verdade, quem dá voz ao neoliberalismo são aqueles que sempre foram os personagens principais desse ethos, sujeitos desse modo de ser (segundo Foucault, Hayek dizia ser necessário um liberalismo que fosse um pensamento vivo). Essa narrativa se fortaleceu no cenário de 2015 e início de 2016.
Aqui, situando a questão não apenas na disputa de política econômica, como faz o autor, mas na dinâmica de classe dos sujeitos sociais, podemos dizer que a narrativa que requer austeridade está – como sempre – na contramão da perspectiva da formiga, para quem o trabalho diário de acúmulo e disciplina é a possibilidade material de sobrevivência. Afinal, a austeridade elimina vagas de emprego para quem quer – e precisa – trabalhar, enquanto os juros elevados garantem vida mansa para as cigarras do mercado financeiro que pedem por essa austeridade.
Além da narrativa, é claro, Pedro Rossi apresenta os dados econômicos específicos desse movimento de transição – ou melhor, de ruptura, consolidados pelo golpe de 2016. É então que a política econômica da agenda 2016 pôde ser plenamente (ou hegemonicamente) neoliberal ao longo dos governos Temer e Bolsonaro, ainda que certa distribuição eleitoralmente interessada tenha tido sobrevida.
O autor explica, então, como o choque recessivo abriu espaço a essa agenda propriamente neoliberal, mas que só se realizou mediante um golpe. Afinal, era preciso ultrapassar (quer dizer, restringir) os limites dispostos na Constituição para ajeitá-la dentro do orçamento. Vieram a reforma trabalhista e o terrorismo fiscal, que fez com que o fiasco do governo Temer em relação ao crescimento, com altas taxas de desemprego e uma precarização dos serviços públicos, criassem ambiente para… a retomada da distribuição? Não, já que a disputa não apareceu nesse sentido, ou ao menos apenas em parte.
A implementação neoliberal cria as péssimas condições sociais que, aliadas a uma crise política enorme, requer uma espécie de solução desesperada – e desamparada. “Como subproduto do golpe e das políticas neoliberais que corroeram a democracia e suscitaram reações autoritárias, surge Bolsonaro” (p. 73). Talvez uma descrição clara como essa que Pedro Rossi propõe a respeito da disputa pelo Brasil pudesse ter auxiliado a politização do debate que redundou em descrença. Ou seja, a própria história da disputa econômica estaria assim inserida como temática social na disposição política dos sujeitos concretos.
No entanto, como Rossi mostra, a narrativa que defende as políticas neoliberais, aprofundadas com a autonomia do Banco Central e processos de privatização durante o governo Bolsonaro, não aparecem como elementos de um modelo econômico a ser descartado no jogo da disputa política nacional. A imagem do Brasil como uma cigarra perdulária, capaz de justificar a política de austeridade, mantém-se na narrativa geral de analistas e gestores. Porém, as formigas, trabalhadoras, tendem a recuperar o interesse político na agenda distributiva.
Mais uma prova de que, aquém das narrativas da cigarra, as formigas sabem bem o que se deu. A tentativa de dissociação entre economia e política faz com que as interpretações mais comuns se percam na análise das disposições que permitiram a volta de Lula em 2023. No mundo concreto, como o próprio autor ressalta, “o discurso exaustivo ao longo de oito anos de que o corte de gastos e as reformas gerariam confiança, crescimento e emprego perdeu credibilidade e habilitou eleitoralmente a volta da agenda distributiva, que dominou o programa de Lula vencedor nas urnas” (p. 91). Ou seja, a economia foi mais determinada pela disputa política entre classes sociais do que esta foi resultante da primeira.
Rossi continua: “As eleições de 2022 não se resumiram a um plebiscito pela democracia; elas também rechaçaram um modelo econômico trágico que condenou parte da população à fome, à pobreza e ao desemprego” (p. 91). Acredito que a questão será saber se: 1) o terceiro governo Lula tem força para recuperar a hegemonia de uma política econômica distributiva – embora ela esteja evidentemente presente nas políticas de governo –; 2) uma economia neoliberal se enraizou de maneira a exigir muito mais tempo (isto é, mais disputa); ou se 3) a própria forma de disputa se tornou o modo atual da política nacional.
Não é por acaso, afinal, que já se diz por aí que o presidencialismo (de coalizão) perdeu lugar – de fato, não de direito – para um semiparlamentarismo. Leitura esta que tende a neutralizar a disputa em uma acomodação artificial, já que elementos econômicos contraditórios borbulham em seu interior, sem a possibilidade de hegemonia de uma ou outra no curto prazo. Entretanto, é difícil imaginar que a disputa foi engolida nessa panela de pressão da política nacional deste período; período de hegemonia mundial de uma política de extrema-direita, que aceita o neoliberalismo enquanto não produz um modelo econômico para chamar de seu.
Para evitar essa nova disputa, entre um ornitorrinco distributivo-neoliberal e uma economia de extrema-direita nascente, que tomará as feições de uma guerra final, é fundamental que o Brasil se perceba em disputa – entre os dois modelos destacados por Rossi – e assuma ser o espaço de um conflito, de uma diferença, de uma opção. Para isso, livros como o de Pedro Rossi são fundamentais para a política nacional, uma vez que ele explicita o que está em jogo atualmente a partir das posições que orientaram prioritariamente os dois momentos políticos mais importantes de nossa história recente.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
[1] Professora de Filosofia na UFSCar e pesquisadora da Unicamp. Agradeço a leitura generosa e as sugestões de Pedro Paulo Zahluth Bastos.
Fonte imagética: Planeta de Livros. Brasil em disputa: uma nova história econômica do Brasil – Pedro Rossi. Disponível <aqui>. Acesso em: 1 dez. 2024.