Nicole Herscovici[1]
Quando pensamos em setores da sociedade que atuam politicamente em geral nos vêm à mente movimentos sociais como o feminista, ambientalista, de moradia, sindicatos, entre outros. Mas, por mais que tentem evitar ao máximo serem vistos como atores políticos, os empresários constituem um setor da sociedade que trabalha de maneira constante em busca de vitórias políticas. A atuação política empresarial tem sido objeto de estudo da ciência política há muitas décadas. Enquanto uns argumentam que o empresariado brasileiro é fraco politicamente, já que não consegue se organizar e unir em torno de uma pauta, outros defendem que ele consegue tudo o que quer — afinal, o empresariado tem um poder de barganha altíssimo devido ao poder econômico que concentra.
Mas a ciência política vem mostrando uma interpretação intermediária: nem sempre os empresários conseguem o que querem, o que não significa que sejam fracos politicamente. Em outras palavras, por mais que tenham vantagens na defesa de seus pleitos, seu sucesso político não é garantido. Daí surge a questão: como o empresariado obtêm vitórias políticas? Quais condições favorecem ou dificultam o sucesso político empresarial?
Para contribuir para esse campo de estudos, analisei a atuação política empresarial no processo decisório do Projeto de Resolução do Senado n° 72, de 2010 (PRS 72/10), cuja aprovação ficou conhecida como o “fim da guerra dos portos”. O projeto propunha zerar a alíquota do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) sobre mercadorias importadas, que não passaram por processo de industrialização no país, com o objetivo de barrar a guerra fiscal interestadual – conhecida como guerra dos portos – para proteger, assim, a indústria nacional do avanço dos produtos importados no Brasil (BRASIL, 2010).
Se, por um lado, a aprovação dessa matéria tornaria a concorrência industrial mais equilibrada em termos de carga tributária, por outro, prejudicaria os estados que ofereciam esses incentivos, já que as indústrias estrangeiras podem deixar de priorizar seus portos. Em geral, as unidades federativas que recorrem a esse tipo de incentivo fazem-no por serem mais distantes dos grandes mercados consumidores. A lógica por trás disso é que esses incentivos fiscais compensam os maiores custos de logística que a distância acarretaria. O impedimento dessa barganha, ao fim e ao cabo, faz com que os produtos voltem a passar pelos portos de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro – retrocedendo o processo de descentralização que vinha ocorrendo até então. O embate, portanto, se dá entre o empresariado industrial e os governadores dos estados que oferecem esses incentivos, sendo os principais deles Espírito Santo, Goiás e Santa Catarina.
Antes de mais nada, é preciso definir o que podemos considerar um sucesso político. Devemos tomar cuidado para não confundi-lo com influência política: diferentemente da influência política, o sucesso político não pressupõe um mecanismo de causalidade direta. Isto é, não estamos dizendo que determinada medida foi aprovada porque os empresários atuaram politicamente. Nesse sentido, sigo Mancuso e Gozetto (2018) e considero sucesso político a convergência entre a decisão tomada e a posição defendida pelo setor. Afinal, dificilmente se poderia argumentar – e comprovar – que uma decisão é feita devido apenas à atuação política de algum grupo. Na verdade, o processo decisório legislativo envolve muito mais do que isso: a escolha dos tomadores de decisão, o contexto econômico e político, o nível de conflito de interesses envolvido, o grau de cobertura midiática, a compatibilidade com os valores da sociedade, a prioridade dada pelos atores políticos para sua aprovação, a adaptação a restrições orçamentárias, dentre tantos outros fatores.
Mas por que analisar o caso da guerra dos portos? Porque é um caso raro: trata-se de um sucesso de ganho em uma questão tributária, resultante de um processo decisório altamente conflituoso e intenso. Segundo Mancuso e Gozetto (2018), em geral, o lobbydo tipo defensivo, a saber, o que visa evitar os custos de determinado grupo, é mais comum e tem maior probabilidade de obtenção de sucesso do que o do tipo ofensivo, que é caracterizado pelo ganho efetivo. Mais especificamente, no caso do empresariado, a hipótese se mantém: em seu estudo sobre o sucesso político empresarial nos anos 1990 a 2000, Mancuso (2007, p. 157) encontra que os tipos de sucesso político empresarial mais comuns são os que mantêm o status quo, isto é, um sucesso de alívio. Ao desagregar por tema da decisão, o autor encontra que 100% dos sucessos obtidos pelo empresariado em políticas tributárias com origem no Poder Legislativo são sucessos de alívio (MANCUSO, 2007, p. 187). Ademais, os opositores da matéria estavam em pé de igualdade: eles também tinham recursos financeiros, fácil acesso aos decisores políticos, argumentos técnicos e legitimidade na opinião pública.
Assim, o processo decisório foi altamente conflituoso, o que geralmente resulta em um impasse. Não obstante, o empresariado conseguiu a aprovação da matéria. O caso aqui analisado torna-se bastante interessante, portanto, já que pode indicar quais as condições que foram mais decisivas para garantir esse sucesso. Quais fatores do contexto decisório foram favoráveis? Quais foram as estratégias adotadas pelo empresariado para garantir que a balança tenha pesado mais a seu favor em um caso de sucesso tão incomum?
Em primeiro lugar, é necessário considerar os contextos político e econômico. Os efeitos da crise internacional de 2008 passaram a atingir mais fortemente os países exportadores de commodities, como o Brasil, a partir de 2011. Os mercados consumidores tradicionais dos produtos brasileiros reduziram drasticamente a demanda em decorrência da recessão econômica. Isso não apenas afetou as exportações das empresas nacionais, como fez com que a China buscasse nos países emergentes novos mercados para compensar a recessão estadunidense e europeia. O avanço dos produtos importados a partir de então intensificou-se drasticamente, prejudicando a indústria nacional e acelerando o processo de desindustrialização. É nesse contexto que Dilma Rousseff (PT) é eleita no fim de 2010. Seu primeiro mandato foi caracterizado pela tentativa de promover uma “virada desenvolvimentista” (SINGER, 2018), com uma aposta na reindustrialização para a sustentação do crescimento econômico do país. Naquele momento, portanto, o governo estava disposto a atender demandas industriais – mesmo que isso significasse comprar uma briga com outros setores da sociedade.
Geralmente temas complexos tendem a não atrair tanta atenção midiática e pública – o que pode favorecer a atuação empresarial. Esse não foi o caso, contudo, do PRS 72. A matéria se manteve nas manchetes dos principais jornais do país durante todo seu processo decisório. O que poderia prejudicar o empresariado, entretanto, foi usado como um instrumento de pressão por eles: além de declarações à imprensa em que apresentam suas demandas, os industriais formaram uma coalizão com os trabalhadores pela aprovação do PRS 72 e publicaram, em conjunto, um manifesto em jornais como Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, Valor Econômico e Correio Braziliense (DINIZ FILHO, 2012). Aliados aos trabalhadores, foi possível criar um discurso em que a defesa do fim da guerra dos portos não se tratava simplesmente de um interesse empresarial, mas de um interesse público. Nas palavras do ex-presidente da Braskem, Carlos Fadigas Filho (2016), tratava-se de um
pleito bem geral. Porque a mobilização era muito grande. […] Houve mobilização grande, inclusive de sociedade, de sindicatos dos trabalhadores, associações de indústria, o próprio governo federal […] Como o assunto afetava toda a […] indústria brasileira, o Poder Executivo se envolveu. Os ministros, e a própria Presidente da República se envolveram para fazer esse assunto andar [no Senado]. O próprio governo estava perdendo arrecadação. As indústrias produzindo menos, estava perdendo arrecadação.
O argumento era que o avanço das importações estava acelerando o processo de desindustrialização, e consequentemente gerando perda de empregos de qualidade e de crescimento econômico: o dinheiro que deveria ser usado pelos estados para saúde, educação e o bem da população estaria sendo usado “para incentivar os empregos e a competitividade dos produtos do exterior, da China ou de qualquer outro país”,[2] nas palavras de Paulo Skaf, então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A “Coalizão Capital Trabalho pelo fim da Guerra Fiscal nos Portos” realizou também diversas manifestações nas grandes cidades e mobilizou seus setores para reuniões formais e informais com parlamentares, ministros e a própria presidente da República para convencê-los da urgência da aprovação da matéria.
As entidades empresariais que mais se mobilizaram pela aprovação do PRS 72 foram a Fiesp, Confederação Nacional da Indústria (CNI), Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) e o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo (Sinditêxtil-SP). Lideranças empresariais como Jorge Gerdau, Paulo Skaf, Marcelo Odebrecht, Alfredo Bonduki, Aguinaldo Diniz Filho, Luiz Aubert Neto e Flávio Castelo Branco foram a face pública dessa campanha. Contudo, como se deu e qual foi a articulação entre eles ainda é obscuro. O que foi possível observar até então é a articulação interna de cada uma dessas entidades – como campanhas de mobilização de suas bases, estudos técnicos, reuniões para debater a pauta, contato com os principais tomadores de decisão, entre outros.
Apesar de ser retratada publicamente como uma pauta empresarial unitária – inclusive em manifestações das próprias entidades empresariais -, o pleito não era consensual. Em matéria do Diário do Nordeste (2013) é possível notar que uma fração do setor era contra a aprovação do projeto: “As lideranças nordestinas, em especial, defendem o modelo atual, preocupados com uma possível desindustrialização da região, que perderia um dos principais atrativos para a prospecção de indústrias e atração de novos empreendimentos”. Não obstante, não foi possível encontrar entidades empresariais que se posicionaram publicamente contra a aprovação do PRS 72, muito menos que se mobilizaram na mídia, nas ruas e nos corredores de Brasília para isso.
Por haver grande resistência à aprovação da matéria por parte dos governadores, o processo decisório foi longo e custoso. Apesar dos empresários quererem que a aprovação ocorresse no início de 2011, a deliberação se prorrogou até 2012 – a oposição garantiu que a matéria tramitasse em duas comissões parlamentares, nas quais foram realizadas quatro audiências públicas no total. O processo decisório exigiu diversas estratégias do empresariado, como formulação de estudos técnicos, mobilização empresarial para a organização de protestos em conjunto com os trabalhadores, presença na mídia, além de contatos formais e informais com os decisores políticos. Diante do conflito intenso e equilibrado, os dois lados tiveram que ceder: a oposição, ao invés de exigir que a matéria não fosse à votação, passou a requisitar um período de transição (as propostas variaram de 3 a 12 anos) para a implementação da nova regra, e que houvessem compensações financeiras aos estados mais afetados; já os empresários cederam, aceitando uma alíquota maior que 0, de 4%. A matéria finalmente foi aprovada em abril de 2012, com prazo de transição de 3 anos e alíquota de 4% (BRASIL, 2012). Assim, por mais que tenha sido um caso de sucesso de ganho significativo, ainda foi parcial.
Devido ao prolongado processo decisório, a tarefa de manter a matéria enquanto prioridade do governo federal era central. E, ao fim e ao cabo, foi a ele que coube resolver o impasse que estava colocado, reforçando a tese da centralidade do Poder Executivo no processo legislativo (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2000; MANCUSO, 2003, 2007). O interesse na aprovação fez com que o governo se reunisse diversas vezes com os defensores e opositores do projeto, para garantir a priorização da votação e negociar compensações aos perdedores, a fim de também evitar constrangimentos políticos e eleitorais aos parlamentares. Foi apenas após essa garantia que parte da base governista no Senado aceitou votar a favor dessa política. Deve-se ressaltar, porém, que isso teve um custo político ao Poder Executivo: alguns parlamentares dos estados afetados anunciaram a saída da base governamental após a aprovação do PRS 72/10.[3]
Diante disso, o caso analisado joga luz sobre algumas questões. A vitória política em questão, propositiva, e não defensiva, do empresariado, foi bastante custosa. Não apenas financeiramente, mas em termos de grau de mobilização e variedade de estratégias necessárias por um longo período para que a aprovação fosse conquistada. Não obstante, o empresariado conseguiu se organizar em torno dessa pauta, inclusive se aliando aos sindicatos dos trabalhadores para tal.
Por mais que tenha sido possível – com alguma dificuldade – identificar oposição interna à pauta, o quadro que era pintado pelas principais lideranças empresariais era de que a aprovação do PRS 72 era consensual na indústria – tanto por empresários quanto pelos trabalhadores. A vitória empresarial, contudo, quase foi impedida pelos opositores da matéria. Os governadores e parlamentares que seriam afetados pelo fim da guerra dos portos prolongaram o processo decisório e quase conseguiram que toda a mobilização empresarial fosse em vão. O impasse só foi resolvido porque o empresariado conseguiu garantir um apoio decisivo, do governo federal. O interesse dos ministérios da Fazenda e da Indústria e Comércio Exterior e da própria presidência da República assegurou que a aprovação do projeto tivesse maioria no Senado por meio da garantia de compensações financeiras aos estados afetados.
A pesquisa feita até então elucidou como e quando as lideranças empresariais mobilizaram suas bases, a opinião pública, os sindicatos e os poderes Executivo e Legislativo para garantir essa vitória política. Ainda resta, entretanto, desvendar como a articulação interna da categoria se deu e como a oposição interna ao projeto foi silenciada. Ademais, é possível também explorar a atuação empresarial pós-aprovação da matéria no Senado, no momento de implementação do projeto.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Resolução n. 72, de 2010. Estabelece alíquotas do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4543563&ts=1594033664256&disposition=inline. Acesso em: 08 jul. 2021.
BRASIL. Senado Federal. Resolução do Senado n. 13, de 2012. Estabelece alíquotas do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-13-2012.htm. Acesso em: 01 jul. 2021.
DINIZ FILHO, Aguinaldo. Guerra dos Portos. TextileIndustry, 01 mar. 2012. Disponível em: http://textileindustry.ning.com/forum/topics/guerra-dos-portos. Acesso em: 02 jul. 2021.
DÉFICIT da balança têxtil triplica no Ceará em um ano. Diário do Nordeste, 18 abr. 2013. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/negocios/deficit-da-balanca-textil-triplica-no-ceara-em-um-ano-1.271387. Acesso em: 07 mar. 2022.
FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Presidential Power, Legislative Organization, and Party Behavior in Brazil. Comparative Politics, v. 32, n. 2, 2000.
FILHO, Carlos José Fadigas de Souza. Depoimento prestado à Procuradoria da República do Estado de Goiás, 15 dez. 2016. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/video-delacao-de-carlos-fadigas.ghtml. Acesso em: 12 jul. 2021.
MANCUSO, Wagner; GOZETTO, Andréa C. O. Lobby e políticas públicas. São Paulo: Editora da FGV, 2018.
MANCUSO, Wagner. O lobby da indústria no Congresso Nacional: empresariado e política no Brasil contemporâneo. São Paulo: Edusp, 2007.
MARIANO, Marcia. Setor enfrenta problemas e avalia soluções. Textilia, 03 jul. 2012. Disponível em: http://www.textilia.net/materias/ler/textil/conjuntura/setor_enfrenta_problemas_e_avalia_solucoes. Acesso em: 08 jul. 2021.
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[1] Mestranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (bolsista CAPES) e bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. Membra do grupo de pesquisa Pensamento e Política no Brasil, associado ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC). E-mail: nicoleherscovici@gmail.com. Este texto sintetiza os argumentos construídos no artigo Guerra dos portos: Um caso de sucesso da atuação política empresarial, apresentado e premiado no VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, no Grupo de Trabalho Elites Políticas, Sociais e Burocráticas, em fevereiro de 2022.
[2] Manifestação feita em audiência pública no dia 20 de março de 2012.
[3] Durante o processo decisório, foram feitas ameaças de saída da base governamental, mas foi apenas no dia da votação da matéria no Plenário, 24 de abril de 2012, que isso se concretizou.
Fonte Imagética: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Skaf obtém apoio de senadores para votar proposta que acaba com incentivos a importados. Agência Indusnet Fiesp, 28 fev. 2012. Disponível em: <https://www.fiesp.com.br/noticias/skaf-obtem-apoio-de-senadores-para-votar-proposta-que-acaba-com-incentivos-a-importados/>. Acesso em: 15 abr. 2022.