Ulysses Ferraz[1]
Introdução
No cerne da democracia repousa um ideal de igualdade política. Num regime democrático, espera-se que todos devam ter a mesma oportunidade de influenciar as decisões políticas. De acordo com Robert Dahl (2016, pp. 44-45), ainda que a palavra democracia seja usada de vários modos diferentes, é possível afirmar que as decisões de associação no âmbito de uma sociedade democrática devem estar de acordo com o seguinte princípio elementar: “todos os membros deverão ser tratados (sob uma constituição) como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de tomar decisões sobre as políticas que a associação seguirá”. Mas podemos realmente esperar que as pessoas possam ter poder político igual enquanto a desigualdade econômica cresce? É fato que a maioria dos países está ficando cada vez mais desigual[2]. E a desigualdade econômica entre ricos e pobres na sociedade é apenas um tipo de desigualdade. Também existem desigualdades entre gêneros ou entre grupos raciais. Mas, embora a desigualdade econômica não seja o único desafio que as democracias enfrentam hoje, certamente é um dos mais importantes.
A igualdade política se traduz formalmente na regra “uma pessoa, um voto”. Não obstante, para o economista Joseph Stiglitz (2020, p. 222), o sistema político norte-americano poderia ser mais bem descrito como “cada dólar, um voto”. Mas é preciso também considerar as etapas anteriores à votação. Nesta fase, as pessoas decidem em quem votar, absorvendo informações, discutindo, refletindo sobre o que sabem e formando sua opinião política. Esse processo corresponde ao aspecto deliberativo da democracia. Em uma democracia, o processo de deliberação deve ser livre e igual. Os cidadãos devem ter liberdade de expressão e imprensa livre para que possam trocar ideias umas com as outras. Também deveriam ter a liberdade de criar associações, como partidos políticos. Isso os ajuda a desenvolver e canalizar ideias. Se algumas pessoas são silenciadas, o processo de deliberação não é igual. De acordo com Dahl (2016, p. 197)
devido às desigualdades nos recursos políticos [tudo o que uma pessoa ou um grupo tem acesso, que pode utilizar para influenciar direta ou indiretamente a conduta de outras pessoas], alguns cidadãos, significativamente, adquirem mais influência do que outros nas políticas, nas decisões e nas ações do governo […] Consequentemente, os cidadãos não são iguais políticos – longe disso, e assim a igualdade política entre os cidadãos, fundamento moral da democracia, é seriamente violada.
Como observa Dahl (2016, p. 195), a maioria dos recursos políticos está distribuída de “maneira muitíssimo desigual”. E mesmo que não seja a única causa para essa distribuição desigualitária, “o capitalismo de mercado é importante para causar uma distribuição desigual de muitos recursos essenciais: riqueza, rendimentos, status, prestígio, informação, organização, educação, conhecimento…” (2016, p. 195).
No artigo intitulado Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens, os cientistas políticos Martin Gilens e Benjamin Page (2014, p. 581) concluíram que a maioria dos eleitores norte-americanos exercem uma influência bastante reduzida sobre as políticas públicas adotadas pelos governos eleitos. Segundo esses autores, os norte-americanos desfrutam de muitas das características centrais de uma governança democrática, tais como eleições regulares, liberdade de expressão e associação, e uma franquia política generalizada (ainda que contestada), mas se a formulação das políticas públicas é dominada por poderosas organizações empresariais, então a alegação de que os Estados Unidos são uma sociedade democrática está seriamente ameaçada. A conclusão é que a voz do cidadão comum praticamente não conta.
Se a desigualdade, em alguma medida, coloca a democracia em risco, um dos modos possíveis de protegê-la seria “insular” a política do poder econômico. As chamadas estratégias de “insulamento” buscam limitar os efeitos da riqueza privada e corporativa na política, mediante reformas relativas à financiamento de campanha, financiamento público de partidos políticos, garantia pública de fóruns para debate político, e outras medidas para bloquear a influência da riqueza na política (incluindo eleições financiadas por fundos públicos). O objetivo desse ensaio é discutir a regulação do financiamento de campanha como estratégia de insulamento, e em que medida o papel dos monopólios/oligopólios midiáticos podem tornar esse tipo de regulação menos eficaz.
Regulação do financiamento de campanha
Para atingir seus objetivos eleitorais, políticos precisam de dinheiro para suas campanhas, tanto de cidadãos ricos como das grandes corporações, que também podem pagar lobistas para que seus interesses sejam traduzidos em políticas públicas. Segundo Yascha Mounk (2019, p. 93), as contribuições financeiras nas campanhas eleitorais são um grave problema em países como os Estados Unidos, “em que os limites vigentes sobre gastos políticos são muito frouxos. Como consequência, o gasto total nas eleições americanas cresceu continuamente nas últimas décadas e hoje está em níveis sem precedentes”. Segundo Pipa Norris (2014, p. 5) as campanhas políticas norte-americanas são dominadas pelo dinheiro. De acordo com a autora, os gastos eleitorais nos Estados Unidos vêm aumentando aproximadamente US$ 1 bilhão a cada ciclo eleitoral presidencial, muito mais do que a taxa de inflação. E apesar disso, a Suprema Corte do país, com a decisão do caso Citizens United v. Federal Election Commission, apoiou a desregulamentação do financiamento de campanha, potencialmente abrindo as comportas para gastos ainda maiores, o que permitiu às empresas gastarem quantias ilimitadas em eleições, além de fortalecer os grupos que pressionavam a Corte para que anulasse leis estaduais de finanças públicas, e abolisse restrições de soft money e os limites de contribuições individuais (NORRIS, 2014, p. 5).
No livro Citizens divided: campaign finance reform and the constitution, Robert Post (2014) se propõe a criticar os fundamentos constitucionais dessa decisão que, segundo ele, estariam equivocados. Segundo Post, com base na proteção à liberdade de expressão prevista na Primeira Emenda à Constituição, a Suprema Corte estabeleceu a inconstitucionalidade da proibição de gastos independentes no financiamento de campanhas eleitorais por parte das corporações e sindicatos. Ao formular sua crítica, Post sustenta que as noções de “legitimidade democrática” e “integridade da representação” deveriam ser reconciliadas para que se chegue a um quadro teórico menos controverso que oriente a Suprema Corte em suas decisões acerca da regulação do financiamento público de campanha. Para Post, os votos vencedores no caso Citizens United deram ênfase unicamente à legitimidade democrática em detrimento da integridade da representação[3] e, consequentemente, da “integridade eleitoral”.
Ao longo de sua exposição, Post faz um breve relato histórico dos aspectos representativos e deliberativos nos Estados Unidos para construir uma linha argumentativa que busca conciliar a regulação do financiamento de campanha eleitoral com os imperativos da liberdade de expressão contidos na Primeira Emenda e, assim, oferecer uma base teórica unificada para superar as profundas divisões doutrinárias atualmente existentes nesse campo. Post afirma que a democracia dos Estados Unidos foi construída com base na “premissa do autogoverno”, e que a crença nesse valor da autodeterminação tem se manifestado historicamente de duas formas distintas: a “representação republicana” e a “deliberação democrática” (POST, 2014, p. 5). Segundo Post, a primeira relaciona-se diretamente ao conceito de integridade representativa, enquanto a segunda conecta-se com a ideia de legitimidade democrática. Mas qual seria a importância dessas duas noções para a solução de questões relativas ao financiamento de campanha?
Conforme explica Post, “a dimensão mais importante da alteração do universo político no século XX foi a desilusão com os partidos políticos como meio de autogoverno” (2014, p. 21). Desse modo, prossegue Post, a lealdade partidária arrefeceu e deu lugar a um período de desconfiança no sistema representativo em razão da perda de credibilidade dos partidos. Daí em diante, os chamados progressistas começaram a enxergar os partidos como um obstáculo ao autogoverno. A percepção era a de que os partidos haviam se transformado em um meio para que políticos inescrupulosos favorecessem a riqueza das grandes corporações. O diagnóstico, segundo Post, era de que as “corporações buscavam prosperar em mercados brutalmente competitivos usando partidos políticos para produzir leis que lhes dariam vantagem econômica” (2014, p. 28). Com o objetivo de preservar a integridade representativa, os progressistas lançaram mão de múltiplas estratégias que, em linhas gerais, buscavam proteger a política do poder das grandes corporações mediante leis que, na interpretação de Post, poderiam ser consideradas como ancestrais diretos da legislação considerada inconstitucional no caso Citizens United um século depois.
Assim, com o objetivo de recuperar a integridade representativa, abalada pela perda de confiança nos partidos, a solução encontrada foi buscar associar o valor do autogoverno ao fortalecimento da opinião pública. Nesse momento de considerável desprestígio partidário, a integridade representativa deveria ser definida com base na responsividade dos representantes à opinião pública (POST, 2014, p. 31). Entretanto, com a emergência dos regimes fascistas e totalitários na primeira metade do século XX, que, ao reivindicarem autoridade sobre os anseios populares, corromperam os próprios processos comunicativos necessários para criar a opinião pública, esse ideal de integridade representativa com base na identificação da representação com a opinião pública foi abalado. As práticas de censura e propaganda revelaram a “vulnerabilidade da opinião pública em face da manipulação oficial” (POST, 2014, p. 31). Nesse contexto, a garantia constitucional dos direitos comunicativos ganhou relevância, pois os defensores da opinião pública como fonte de legitimidade dos processos democráticos concluíram que “a autoridade da opinião pública depende menos da sua expressão imediata mas sobretudo da integridade dos processos pelos quais ela é formada” (POST, 2014, p. 31). Esse foco nos direitos para proteger os processos de formação da opinião pública significou uma mudança de paradigma que deu luz à “democracia discursiva”.
Conforme o entendimento de Post, a opinião pública não é algo que possa ser apreendido em definitivo porque é um processo dinâmico, sempre em continuidade (2014, p. 36). Por essa razão, a democracia discursiva requer instituições destinadas a tornar o governo continuamente responsivo à opinião pública de modo que as pessoas desenvolvam uma percepção de que são “proprietárias” de “seu” governo e exercem, para além dos resultados eleitorais, influência efetiva sobre seus representantes, tanto no poder Executivo quanto no Legislativo. Post vai chamar esse processo contínuo de legitimidade democrática. Para se entender a doutrina da Primeira Emenda, e especialmente o tipo de argumentação relevante para uma decisão como a do caso Citizens United, é preciso “conceber os direitos da Primeira Emenda como projetados para proteger os processos de legitimação democrática necessários para a democracia discursiva” (POST, 2014, p. 40).
Segundo Post, em uma decisão como a Citizens United, ao ter de escolher se o compromisso da nação com o autogoverno seria mais bem realizado por meio de instituições de representação ou por meio da democracia discursiva estabelecida pelos direitos da Primeira Emenda, a Corte selecionou o último caminho (POST, 2014, p. 42). Mas para Post, a decisão não deveria ter colocado os valores da democracia discursiva em oposição aos da integridade representativa uma vez que tais valores podem e devem ser reconciliados. Além disso, em vez de adotar metodologicamente um deontologismo rigorista, baseado em princípios abstratos, Post parece sugerir que a Suprema Corte deveria ser mais sensível às consequências de suas decisões, cujo critério último deveria ser o de preservar os valores políticos construídos ao longo da história política do país.
O segundo passo da argumentação desenvolvida por Post (2014, p. 60) em defesa da regulação das campanhas eleitorais apoia-se na noção de “integridade eleitoral”. Seu argumento pode ser resumido da seguinte forma:
(1) eleições são essenciais para a democracia discursiva porque inspiram a confiança de que os representantes serão responsivos à opinião pública;
(2) os direitos relativos à Primeira Emenda protegem a possibilidade de participação na formação da opinião pública;
(3) eleições são essenciais para a Primeira Emenda porque são o principal mecanismo pelo qual o governo responde à opinião pública;
(4) se o público não acredita que as eleições escolhem representantes que atendem à opinião pública, o vínculo entre o discurso público e o autogoverno é quebrado; e
(5) a menos que haja confiança pública de que as eleições selecionam atores políticos responsivos à opinião pública, os direitos da Primeira Emenda não podem produzir legitimação democrática porque não serão capazes de conectar comunicação com o autogoverno.
Isso sugere, sustenta Post, “que os direitos da Primeira Emenda pressupõem que as eleições devem ser estruturadas para selecionar pessoas que possuam ‘comunhão de interesses e simpatia de sentimentos’ para permanecerem responsivas à opinião pública” (POST, 2014, p. 60). Desse modo, a “integridade eleitoral” é realizada quando eleições possuem a propriedade de escolher candidatos confiáveis que possuam essa “simpatia e conexão”. Como sustenta o autor, sem integridade eleitoral, os direitos da Primeira Emenda falham em atingir seu propósito constitucional; e se as pessoas não acreditam que os representantes eleitos respondem à opinião pública, a participação no discurso público, por mais livre que seja, não pode criar a experiência de autogoverno, valor fundamental para a democracia (POST, 2014, p. 60).
Entretanto, segundo a exposição de Post, embora a integridade eleitoral seja um elemento necessário para a efetivação dos direitos da Primeira Emenda, a Suprema Corte não reconheceu em sua decisão a importância fundamental da integridade eleitoral como justificativa para a regulação estatal dos gastos de campanha. Em vez disso, a Corte discutiu a questão como se o financiamento de campanha fosse meramente um problema de corrupção, e não de integridade eleitoral, e considerou que os gastos independentes mencionados pela legislação em análise não representavam perigo suficiente (de corrupção) para justificar a sua regulamentação. Para o autor, enquadrar a discussão em termos de combate à corrupção desloca o problema do financiamento de campanha para um tema controverso e sujeito a muitas disputas interpretativas. Por outro lado, reformular a questão com base no princípio da integridade eleitoral teria o mérito de ser algo que potencialmente todos os lados poderiam concordar, de modo a oferecer uma base comum para a construção de uma jurisprudência constitucional do financiamento de campanha mais sólida (POST, 2014, p. 61). Mas seria a integridade eleitoral suficiente para proteger a democracia?
De acordo com Pamela S. Karlan (2014, p. 145), o conceito de integridade eleitoral, tal como formulado por Post, não oferece respostas para se lidar com os gastos corporativos direcionados a mudar a opinião pública em seu favor ou sobre atividades de lobby. Além disso, para Karlan, mesmo se admitirmos que os gastos em campanhas políticas são um problema, não existem muitas evidências de que a regulação de seu financiamento possa melhorar a integridade eleitoral. E ainda que as reformas de financiamento de campanha de fato melhorem a eficácia política ou alguma outra medida do funcionamento democrático, elas não serão capazes de assegurar a integridade eleitoral a menos que os cidadãos percebam essa melhora (KARLAN, p. 145). Segundo Karlan, problemas com o dinheiro político podem ser um subproduto, e não a fonte, da quebra de vínculo entre o eleitor e seus representantes. E o que dizer da influência da mídia corporativa na formação da opinião pública e, por conseguinte, nos resultados eleitorais? Em sua discussão sobre a integridade eleitoral, Post não faz nenhuma menção acerca de um possível papel abusivo da mídia na formação da opinião pública de modo a distorcê-la em favor de interesses privados.
A influência dos grupos midiáticos
De acordo com Stiglitz, os componentes da ligação entre política e dinheiro são conhecidos: lobistas, contribuições de campanha, dança das cadeiras em relação aos cargos e uma mídia controlada pelos ricos. Assim, “os indivíduos e corporações ricos usam seu poder financeiro para comprar poder político e propagar suas ideias, algumas vezes com verdadeiras fake news. A Fox News se tornou emblemática nesse sentido, e seu poder está bem documentado” (STIGLTIZ, 2020, p. 222). Esse problema se agrava quando alguns grupos detêm praticamente um monopólio dos meios de comunicação. Eles podem distorcer a opinião pública divulgando apenas a informação que lhes interessa enquanto grupo econômico. É o que acontece no Brasil, cuja mídia corporativa é controlada por apenas cinco famílias. Um exemplo clássico de oligopólio.
No livro Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil, David J. Samuels e Cesar Zucco também atribuem pouca relevância ao papel da mídia na formação das atitudes positivas e negativas em relação aos partidos. Se o partidarismo importa nas escolhas eleitorais, não levar em conta a importância dos meios de comunicação na formação da percepção dos eleitores em relação aos partidos políticos é, de certa forma, sustentar que a mídia é irrelevante para fins eleitorais, o que parece não ser o caso. Embora os autores mencionem que “os escândalos do mensalão e da Lava Jato forneceram infindáveis coberturas para TV, jornal e redes sociais” (SAMUELS; ZUCCO, 2018, p. 107), não há nenhuma referência no texto que discuta o papel dos meios de comunicação de massa na formação ou consolidação das atitudes e opiniões que lastreiam o partidarismo no Brasil, sobretudo no que se refere ao antipetismo.
Do ponto de vista regulatório, quando se trata do papel da mídia, a preocupação central tem sido mais no sentido de considerar a intimidação ou prisão de repórteres e restrições à independência de jornais e emissoras, por meio de censura estatal, como violação dos direitos humanos fundamentais (NORRIS, 2014, p. 30). De acordo com Norris (2014, p. 31), embora as mídias de massa e redes sociais desempenhem claramente papéis vitais nas eleições contemporâneas, quando se trata de normas internacionais para se assegurar a integridade eleitoral, não há nenhuma convenção internacionalmente aprovada que especifique princípios mais positivos para a cobertura da mídia, tais como, exigir que as notícias de campanha divulgadas por emissoras de serviço público forneçam uma cobertura equilibrada, inclusiva, imparcial e equitativa de todos os partidos e candidatos, ou que regulamente a publicidade política paga na TV e no rádio.
Nadia Urbinati, por sua vez, em suas considerações críticas à posição de Post, considera que, embora dificilmente sejamos capazes de provar, além de qualquer dúvida razoável, que existe uma relação causal entre conteúdo da mídia, opinião pública e resultados ou decisões políticas, as barreiras para igualdade de oportunidade de participação na formação de opiniões políticas devem ser reduzidas ao máximo possível e seu nível permanentemente monitorado (URBINATI, 2014, p 139).
Para a autora, a igualdade política deve ser entendida como proteção da liberdade e devemos estar atentos para o fato de que o dinheiro é uma razão poderosa para a exclusão, mesmo quando isso não implica uma forma radical de suprimir o direito de voto. O raciocínio que vale para o voto também vale para a opinião: embora dificilmente possamos provar que o voto se traduza em algum resultado desejável, disso não se segue que distribuir igualmente o voto não tenha sentido (URBINATI, 2014, p 139). E para se distribuir igualmente o voto, Urbinati parece sugerir que a regulação da mídia importa.
As grandes corporações da mídia, sobretudo em países como o Brasil, em que a regulamentação do setor é deficiente, desfrutam de uma posição privilegiada para defender seus interesses econômicos (e de seus anunciantes), pois podem esconder suas intenções engenhosamente sob o disfarce da objetividade e da neutralidade jornalística. O impacto da grande mídia sobre a formação da opinião pública em assuntos econômicos não é nada desprezível. Os grupos midiáticos são empresas como quaisquer outras, que buscam o lucro e a maximização do valor de suas ações (quando se trata de empresas de capital aberto). Mas o seu produto, a informação jornalística, tem a peculiaridade de ter o poder de influenciar positivamente o resultado de suas operações empresariais. É mais ou menos como se a indústria do tabaco tivesse o poder de ser uma voz autorizada na formação da opinião sobre os efeitos do vício de fumar.
Os exemplos no caso da mídia brasileira são incontáveis. A defesa intransigente da chamada “economia do gotejamento” (trickle down economics) por parte dos grupos midiáticos, a despeito das evidências em contrário, tem sido uma tarefa quase cotidiana, sempre com um respaldo supostamente técnico de algum economista de plantão associado ao mercado financeiro, em geral economistas-chefe de grandes bancos de investimento. Segundo essa teoria, utilizada como fundamento para políticas econômicas de governos conservadores como os de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, o enriquecimento das classes superiores “goteja” em benefício de toda a sociedade.
De acordo com a hipótese do “gotejamento”, políticas como redução de impostos corporativos, desregulamentação das leis trabalhistas e sociais etc. estimulariam a atividade econômica e, portanto, aumentariam o nível de riqueza total da sociedade, com benefícios para todos, inclusive para os menos favorecidos, seja via aumento de empregos, seja via financiamento de possíveis programas sociais. Isso porque, além de favorecer a atividade econômica e, portanto, a geração de empregos, com o corte de impostos e encargos sociais as empresas se tornariam mais produtivas, mais lucrativas e, consequentemente, o Estado seria beneficiado com um aumento na arrecadação de modo a ter maior capacidade fiscal para gastos públicos em favor da sociedade com um todo. Assim, não importaria se tais políticas aumentassem a distância entre ricos e pobres, pois todos sairiam ganhando.
Mas o que se vê na realidade é que quando a economia do gotejamento prevalece, “os benefícios do crescimento simplesmente não gotejam” (STIGLITZ, 2020, p. 23). De acordo com Stiglitz, uma grande parcela da população, nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo desenvolvido, vivem “em meio à raiva e ao desespero após décadas de quase estagnação de sua renda causada por políticas pelo lado da oferta, mesmo com crescimento do PIB” (STIGLITZ, 2020, p. 23). A consequência é que, mesmo quando os grandes grupos de mídia não são capazes de exercer influência suficiente para que candidatos convergentes com seus interesses ganhem a eleição, eles são bem-sucedidos em pressionar os políticos eleitos a vetar políticas públicas com o potencial de promover uma sociedade cuja prosperidade seja partilhada de modo mais justo e igualitário. E como a grande mídia tem a capacidade de influenciar a opinião pública nesses assuntos, um dos efeitos mais perversos dessa influência é fazer com que os grupos prejudicados pela “economia do gotejamento” considerem seus fundamentos como algo natural, inevitável e necessário, ou seja, acabam por se conformar com a máxima thatcheriana de que “não há alternativa”. Isso pode levar a uma atitude política cética e cínica e, no limite, a um comprometimento da integridade eleitoral.
Considerações finais
A contribuição de Post (2014) parece ter o mérito de formular uma argumentação consistente e reformular a discussão do financiamento público de campanha para um campo potencialmente menos controverso, qual seja, a da integridade eleitoral. É razoável supor que a tentativa de conciliar teoricamente os valores da democracia discursiva e da integridade eleitoral, como propõe Post, seja um avanço teórico para lidar com um dos problemas mais espinhosos da relação entre o poder político pelo poder econômico, a saber, o financiamento de campanha. Contudo, a regulação de financiamento de campanha sem a regulação da mídia pode ser inócua.
Sob a influência dos grandes grupos midiáticos, cidadãos podem se convencer da inevitabilidade das forças econômicas e simplesmente se tornarem cínicos e céticos em relação à política, deixando o caminho livre para que o poder econômico capture de vez o sistema político. Assim, as discussões acerca das estratégias de “insulamento” do poder político em face do poder econômico deveriam incluir o problema do papel deletério dos grupos midiáticos na formação da opinião pública. Em realidade, o que estamos testemunhando, com o apoio estridente da grande mídia, é muito mais o “insulamento” das práticas de mercado contra as demandas democráticas do que o oposto. A independência dos bancos centrais e as exigências drásticas de austeridade fiscal talvez sejam os exemplos mais emblemáticos desse estado de coisas. Se a mídia não tem sido capaz de determinar o voto, tem sido muito eficaz em influenciar o veto. Embora a regulação do financiamento de campanha e da mídia não sejam suficientes para assegurar a integridade eleitoral, ambas parecem ser necessárias para reduzir a influência do dinheiro na política e, assim, tornar a democracia mais próxima de seu ideal igualitário.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2016.
GILENS, Martin; PAGE, Benjamin I. “Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens” – Perspective on Politics, Volume 12, issue 3, 2014, pp. 564-581.
KAPLAN, S. Karlan. “Citizens Deflected: Electoral Integrity and Political Reform”. In POST, Robert. Citizens divided: campaign finance reform and the constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
NORRIS, Pippa. Why Electoral Integrity Matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
POST, Robert. Citizens divided: campaign finance reform and the constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014.
SAMUELS, David J. ZUCCO, Cesar. Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.
STIGLITZ, Joseph E. Povo, poder e lucro: Capitalismo progressista para uma era de descontentamento. Rio de Janeiro: Editora Record, 2020.
URBINATI, Nadia. “Free Speech as the Citizen’s Right. In POST, Robert. Citizens divided: campaign finance reform and the constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2014.
[1] Doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ) e bolsista CAPES-PROEX.
[2] Cf. World Inequality Report 2022. Disponível em https://wir2022.wid.world/download/. Acesso em: 07/2022
[3] De acordo com Post (2014, p. 15), no período de consolidação da democracia norte-americana, formou-se um consenso de que o governo representativo não poderia incorporar o valor do autogoverno sem que houvesse uma relação de confiança entre representantes e eleitores, em que os últimos acreditassem que são de fato “representados” pelos primeiros. Post chama esse relacionamento de “integridade representativa”.
Fonte Imagética: Foto de Markus Spiske na Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/pt-br/fotografias/RX-BevgxSXs>. Acesso em 15 maio 2023.