Carla Vreche
Ludmila Murta
Paulo Endo
O Boletim Lua Nova compartilha a apresentação do número 136 dos Cadernos CEDEC, uma publicação seriada e trimestral que apresenta resultados de estudos e pesquisas sobre temas de interesse do Centro. O número 136 tem como tema “Construção e Desmonte das Políticas de Combate à Tortura”, e se refere a eventos realizados em 2022.
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O presente número dos Cadernos Cedec encerra as atividades do “Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos” do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). Fruto do evento “Construção e Desmonte das Políticas de Combate à Tortura”[1], realizado virtualmente no dia 09 de setembro de 2022, este Caderno reúne os registros das falas de cada um dos convidados e convidadas presentes na ocasião. A organização dos textos busca expor as apresentações em uma lógica temática. De início, Belisário dos Santos Júnior apresenta uma visão geral sobre os direitos dos sobreviventes e das vítimas do crime de tortura no Brasil. Isso prepara a recepção das falas de Amelinha Teles e Janaína Teles, que trazem a perspectiva das vítimas de tortura e familiares de mortos e desaparecidos políticos. Na sequência, Jamil Chade aborda a visão internacional do país no que diz respeito ao combate à tortura, seguido da abordagem de Luciano Mariz Maia sobre o controle judicial da tortura no Brasil e da análise Wilder Tayler sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção à Tortura e da relevância do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Esse quadro permite completar o cenário da árdua construção da política de prevenção e combate à prática, conduzindo ao fechamento com Gabrielle de Abreu e José de Ribamar de Araújo e Silva, que destacam a importância do MNPCT e a gravidade dos ataques a ele desferidos no movimento de desmonte das políticas de direitos humanos no âmbito federal.
O objetivo deste Caderno, assim, consiste em reforçar e ressoar a mensagem transmitida durante o encontro, qual seja: a tortura, prática presente em grande parte da história brasileira, deve ser enfrentada e absolutamente erradicada. Mais do que isso, devem ser retomados, continuados e aperfeiçoados instrumentos de prevenção e combate à tortura que foram fortemente desmantelados durante os últimos anos de ataques intensos às políticas de direitos humanos no país. Gentilmente, a profa. Janaina Teles, uma das convidadas, também colaborou com um artigo sobre testemunhos da tortura no Brasil, o qual está apresentado na seção de contribuições adicionais.
Consagrado em documentos internacionais assinados e ratificados pelo Estado brasileiro, como a própria Declaração Universal e, posteriormente, a Convenção contra a Tortura da ONU e a Convenção Interamericana sobre o mesmo assunto, o direito a não ser torturado é considerado um direito negativo, ou seja, garantia fundamental cujo objetivo é a abstenção do Estado ou de terceiros de violá-lo. Ele é ainda, e isso importa destacar, parte do “seleto” grupo de violações que, sob a perspectiva do direito internacional, é enquadrado como crime contra a humanidade. No âmbito interno, desde a Constituição de 1988, uma série de medidas internalizaram a proibição da prática. A Lei 9.455 de 1997, por exemplo, definiu o crime no país. Três anos depois, pela primeira vez, o Brasil recebeu o Relator Especial das Nações Unidas para o assunto e, na sequência, a partir da apreciação do Relatório apresentado pelo Estado brasileiro ao Comitê contra a Tortura da ONU, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou a “Campanha Permanente Contra a Tortura”, levantando dados sobre a prática, capacitando operadores jurídicos, fortalecendo Corregedorias de polícias, fomentando atuação judicial garantista. Em 2013, após a assinatura do Protocolo Facultativo da Convenção da ONU, através da Lei 12.847/2013, foi instituído o “Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura” e criados o “Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura” e o “Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Esse quadro institucional deu base à criação de um aparato de prevenção e combate à prática que deve ser valorizado por seu avanço regulatório.
Todas essas conquistas, porém, foram duramente atacadas durante o governo de Jair Bolsonaro (2018-2022). E isso, em si, não foi uma surpresa para defensores e defensoras de direitos humanos. Bolsonaro sempre foi conhecido por ser um amante da ditadura militar. Antes mesmo de homenagear um torturador condenado por seus crimes – o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – durante a sessão que conduziu o processo do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), ele já havia feito diversas falas de admiração pelos agentes do Estado que mataram sob tortura e desapareceram forçosamente com muitos opositores do regime, mas igualmente indígenas e camponeses, como registrado na análise da Comissão Nacional da Verdade. Assim, quando se tornou presidente, a exaltação de Bolsonaro aos torturadores teve efeito prático devastador, tendo ele atuado de forma deliberada para destruir as instituições e políticas públicas de prevenção e combate à tortura e maus tratos, com ataques sistemáticos aos órgãos de monitoramento criados anteriormente no Brasil.
Em junho de 2019, então presidente, Bolsonaro assinou o Decreto 9.831/2019 exonerando todos os peritos e peritas do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, os quais passaram a ter suas funções consideradas de caráter voluntário e deixaram de contar com qualquer apoio governamental logístico, financeiro ou administrativo para a realização de suas atividades. Essa medida enfraqueceu o Mecanismo e prejudicou o essencial monitoramento de lugares de privação da liberdade, impedindo efetivo combate e prevenção da prática da tortura. Além disso, o governo Bolsonaro paralisou a análise dos pedidos de reparação de familiares de mortos e desaparecidos políticos e a Comissão de Anistia, principal órgão de recepção, análise e encaminhamento dos casos, teve sua composição alterada, passando inclusive a contar, entre seus membros, com apoiadores do golpe de estado e da ditadura civil-militar iniciada em 1964. Como última cartada em seu jogo de ameaças ao direito à reparação e memória, a 15 dias de terminar seu governo, Bolsonaro extinguiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Indiferente às vítimas passadas, presentes e futuras, ainda durante seu governo, os depoimentos de tortura de presos a juízes em audiências de custódia aumentaram vertiginosamente. Entre 2019 e junho de 2022, pelo menos 44,2 mil denúncias foram colhidas pelo Conselho Nacional de Justiça. Outros dados ainda indicam que, no último ano de seu mandato, as denúncias de tortura e maus tratos aumentaram em 37%. Temos um novo Brasil para construir. Nele, deve ser considerado como uma das pautas prioritárias a prevenção e o combate à tortura.
Temos que enfrentar os problemas do passado e do presente. O governo atual deve se engajar na reconstrução e fortalecimento do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, enquanto política pública necessária para a fiscalização e monitoramento da prática, e sua política deve encarar a situação problemática dos lugares de privação da liberdade no país. Igualmente, deve-se promover a educação em direitos humanos, para que, por fim, se torne inadmissível no Brasil que qualquer tipo de apologia a essa prática abominável seja merecedora de descrédito e que seu enunciador seja sumariamente condenado. Citamos, por fim, trecho do “Manifesto contra o Desmonte das Políticas de Combate à Tortura no Brasil”, apresentado ao fim deste Caderno:
“A incitação à tortura é a mais vexatória demonstração de desprezo pelos seres humanos. Revela a impossibilidade do incitador em empatizar, solidarizar e reconhecer o sofrimento alheio de modo profundo e radical. Atesta a indiferença à sofrimentos insuperáveis, à devastação de famílias inteiras e à corrosão das possibilidades de construção de uma sociedade pacificada. Demonstra a mais absoluta incapacidade para o exercício público de qualquer função, cargo ou relação entre pessoas e indica tendências nefastas e criminosas quando no exercício do poder.”
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Fonte Imagética: Capa do número 136 dos Cadernos CEDEC.
[1] Assista em: https://youtu.be/CtJFRN6OTEk.