Sérgio Mendonça Benedito[1]
No campo da teoria política, de maneira geral, quando se faz referência ao contextualismo, logo entendemos que se trata da chamada Escola de Cambridge, representada com algumas variações e várias familiaridades por autores como Quentin Skinner, John Dunn e John Pocock. Não se trata é claro da única abordagem de ênfase histórica, mas daquela mais notória, por sua defesa de que autores e obras do passado devem ser situados em seu ambiente histórico para um melhor entendimento do que quiseram dizer ou sua intenção (Bevir, 2011). Seu desenvolvimento se deu em oposição a modos interpretativos tanto que se concentravam nos textos antigos em si, em detrimento do contexto em que foram elaborados e publicados, quanto que tratavam as ideias e afirmações presentes nos escritos do passado como meros epifenômenos da estrutura social e de classes, em desfavor do aspecto ideológico e do papel das ideias (Silva, 2010). No entanto, parece que, almejando evitar este último extremo, característico do contextualismo sociológico e de algumas vertentes marxistas, os aderentes do contextualismo tenderam a adotar uma noção de contexto mais restrita, aquele do plano linguístico, dos conceitos, vocabulários e significados.
Aproveitando-me da sugestão de Blau (2017, p. 248), de que “mais do que um contexto pode ser relevante” no estudo e interpretação de textos políticos antigos, dirijo-me, neste breve ensaio, a tratar sobre uma alternativa teórica – a história social da teoria política de Ellen Wood (2008). Sua particularidade é que ela não dispensa as premissas da abordagem contextualista, mas também busca situar adequadamente os agentes em seu contexto social, econômico e político. Antes de entrar nessa discussão, porém, caracterizarei em termos sucintos o contextualismo a partir da obra de Pocock (2003) e outros autores que realizaram apanhados mais gerais sobre a Escola de Cambridge (Bevir, 2011; Silva, 2010).
De partida, é preciso reconhecer que, se de fato existem diferenças entre os autores comumente associados à Escola de Cambridge, ainda assim há um comprometimento com uma abordagem historicista de maneira geral. Uma influência de peso e comum a esse grupo revela-se na figura de Peter Laslett, um pioneiro no “uso sistemático e rigoroso de bibliografias, manuscritos não publicados, e outras evidências de modo a estabelecer fatos particulares e portanto interpretações textuais” (Bevir, 2011, p. 12). A base oferecida por esse acadêmico viria mais tarde a contribuir para um enfoque que privilegia o agente e seu discurso situado em um contexto histórico, para além das tentativas da filosofia política de então de discutir “temas perenes”, “conceitos fundamentais” ou buscar a coerência interna da obra de determinados autores (Silva, 2010). Enquanto Skinner se notabilizou pela sofisticada apropriação da teoria dos atos de fala de Austin, preocupado principalmente com a dimensão ilocucionária[2] dos textos, Pocock “dedica maior atenção às linguagens que persistem e se desenvolvem através do tempo”, dando ênfase aos vocabulários sociológicos que possibilitam certas intenções e discursos dos autores antigos (Bevir, 2011, p. 16). Em comum entre eles, está a convicção de que a interpretação apropriada depende do acesso a um amplo conjunto de evidências que não se restringem à obra do autor estudado, mas também devem contemplar o seu entorno – cartas, panfletos, petições, entre outros documentos.
Em um de seus mais conhecidos textos metodológicos, O conceito de linguagem e o métier d’historien, Pocock (2003) dá indicações sobre o que se espera do historiador ou historiadora do pensamento político em sua perspectiva. De início, marca posição ao afirmar que, no momento em que escrevia, a história do pensamento político era melhor designada como história do discurso político. Tratar-se-ia então de “um campo de estudos constituído por atos de discurso, sejam eles orais, manuscritos ou impressos, e pelas condições ou contextos em que esses atos foram emitidos” (2003, p. 64).
O contexto primordial, contudo, refere-se ao plano do discurso institucionalizado, das linguagens, sendo estas “retóricas, vocabulários especializados e gramáticas, modos de discursar ou falar sobre a política que foram criados e difundidos” (Pocock, 2003, p. 65). Ao estudioso ou estudiosa do discurso político caberia então investigar a fundo as interações entre parole e langue – entre o discurso institucionalizado, convencional, e o discurso idiossincrático, pessoal, temporalmente localizado – com atenção aos episódios e eventos de duração mais reduzida. Ademais, parte considerável do texto dedica-se aos procedimentos metodológicos e intuições do autor, desenvolvidas ao longo de sua carreira, sobre os caminhos mais propícios para pesquisas neste campo.
Se é perfeitamente compreensível que Pocock, como historiador, privilegie uma certa dimensão ou recorte da realidade a investigar, não seria pertinente considerar outros contextos (social, econômico, etc.) no estudo das linguagens para além do plano do discurso?
Mais recentemente, Ellen Wood (2008), em uma obra dedicada ao estudo do pensamento político ocidental da Antiguidade à Idade Média, discute os limites da noção de contexto entre os autores da Escola de Cambridge. No quadro da história da teoria política desde os anos 1960, o contextualismo emerge como uma reação contra perspectivas anti-historicistas de então, como aquela de Leo Strauss, mas rapidamente se radicaliza no sentido oposto, ao privilegiar a “historicização dos trabalhos, grandes e menores, da teoria política e negando a eles qualquer significado amplo além do próprio momento local de sua criação” (2008, n. p.). Wood reconhece que Skinner, por exemplo, vai além do fazer histórico convencional ao considerar não apenas os grandes e mais importantes autores, mas também “a matriz social e intelectual mais geral da qual seus trabalhos emergem” (2008, n. p.).
Contudo, apesar de investigar períodos de grandes mudanças econômicas e sociais, que certamente afetariam a espécie de escritos que os autores estavam a produzir, o contexto frequentemente se restringiu à dimensão intelectual e aos vocabulários existentes. Diversos aspectos como agricultura e campesinato, aristocracia, divisão social do trabalho, conflitos e protestos sociais, comércio e manufatura não são levados em consideração – ainda que o próprio Skinner (2002) admita a possibilidade de outras espécies de história. Já Pocock, ainda que mais interessado por aspectos econômicos e fatores materiais, perde de vista o processo histórico que levou ao desenvolvimento dessas estruturas. Isso se daria porque, segundo Wood (2008, n. p.), “a história tem pouco a ver com processos sociais, e transformações históricas são manifestas apenas como mudanças visíveis nas linguagens da política”[3].
A história social da teoria política proposta por Wood (2008) busca, então, sem abrir mão do estudo rigoroso e historicamente situado dos textos e seu significado, adensar a interpretação pelo alargamento da noção de contexto. Sua premissa é que “os grandes pensadores políticos do passado estavam apaixonadamente envolvidos nos temas do seu tempo e lugar”, contudo não se tratava apenas de um exercício de persuasão e convencimento, estando eles também “em uma busca genuína por alguma espécie de verdade” (2008, n. p., grifo meu). Trata-se de considerar os agentes como seres humanos, situados não apenas em contextos linguísticos e discursivos, “mas também no contexto de processos sociais e políticos que moldaram seu mundo imediato (2008, n. p.). Isso não converge para a simples afirmação de que as ideias são mero epifenômeno da posição social e de classe dos agentes, como se poderia apontar novamente para o contextualismo sociológico anteriormente mencionado. Nas palavras de Wood (2008, n. p.)[4]
O ponto é simplesmente que as questões que confrontam qualquer pensador político, questões eternas e universais como podem parecer, são colocadas para eles em formas históricas específicas… essas questões são colocadas… pelas pressões sociais e tensões que moldam as interações humanas fora da arena política e além do mundo dos textos.
Por tudo isso, trata-se de um enfoque que não dispensa o rigor, mas que também se preocupa com a qualificação de estudiosos e estudiosas para pensarem questões contemporâneas. O assim chamado contextualismo sócio-histórico de Wood (2008) se propõe a oferecer interpretações qualificadas de textos do passado e não dispensa a avaliação de seus argumentos pelos pares – tal abordagem pode ser testada por outras mais detalhadas sobre os textos e seu contexto. Mas além disso, se o estudo da teoria política nos oferece ferramentas e lentes analíticas para pensar os acontecimentos políticos, considerar os contextos no plural qualifica todas as pessoas para a análise do nosso próprio momento histórico. Desse modo, Wood (2008, n. p.) afirma na abertura da obra que “teóricos políticos podem falar conosco através dos séculos. Como comentadores sobre a condição humana, eles podem ter algo a dizer para todos os tempos. Mas eles são, como todos os seres humanos, criaturas históricas”[5].
Neste breve ensaio busquei apresentar, frente à noção restrita de contexto adotada por alguns aderentes do contextualismo, um caminho alternativo para o estudo e interpretação de textos políticos do passado. Reste claro que a história social da teoria política de Wood não é a única opção quando se quer pensar o contexto de forma mais ampla – e não está livre de possíveis críticas. Textos metodológicos de autores simpáticos ao contextualismo destacam que nem sempre a análise contextual é suficiente e por vezes é necessário resgatar outros aspectos, como a economia política do período da obra em estudo (cf. Blau, 2017, p. 248). De qualquer forma, a partir de uma perspectiva pluralista referente ao método, com certeza podemos aprender com esses experimentos e tentativas – sem prejuízo da melhor avaliação e julgamento dos pares.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BEVIR, Mark. The contextual approach. In: KLOSKO, George. The Oxford handbook of the History of Political Philosophy. New York: Oxford University Press, 2011. p. 11-23.
BLAU, Adrian. Interpreting texts. In: _____ (Org.). Methods in analytical polítical theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 243-69.
POCOCK, J. G. A. O conceito de linguagem e o métier d’historien: algumas considerações sobre a prática. In: _____. Linguagens do ideário político. São Paulo: EdUSP, 2003. p. 63-82.
SILVA, Ricardo. O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo. Dados, Rio de Janeiro, v. 53, n. 2, p. 299-335, 2010.
SKINNER, Quentin. Moral principles and social change. In: _____. Visions of politics – Volume I: regarding method. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 145-157.
WOOD, Ellen Meiksins. The social history of political theory. In: _____. Citizens to lords: a social history of western political thought from antiquity to the middle ages. Edição digital. London: Verso, 2008. n. p.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com. Esse texto foi apresentado como trabalho parcial na disciplina FLS 6463 “Temas de teoria política moderna”, ministrada pela Profa. Dra. Eunice Ostrensky no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (DCP/FFLCH/USP), segundo semestre de 2020.
[2] Relacionada “ao que o agente está fazendo ao dizer (in saying) algo” (Silva, 2010, p. 307). Assim, nas palavras de Pocock (2003), Skinner se volta mais para a parole, enquanto que o primeiro autor esteve interessado pela langue, termos esses que serão discutidos a seguir.
[3] Todas as citações desse parágrafo remetem à segunda seção do capítulo citado (The history of political theory).
[4] Igualmente, as citações remetem à terceira seção do capítulo citado (The social history of political theory).
[5] Último parágrafo da primeira seção do capítulo citado (What is political theory?).
Fonte Imagética: Os debates de Ellen Wood: política, capitalismo e democracia, Blog da Boitempo. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/16/os-debates-de-ellen-wood-politica-capitalismo-e-democracia/>. Acesso em 03 nov 2022.