Rafael R. Ioris[1]
Confirmando o que especialistas em saúde pública vem afirmando há muitos anos, uma nova pandemia global tem desafiado o mundo inteiro nos últimos três meses. A acelerada disseminação de um novo coronavírus, conhecido como Covid-19, paralisou redes de produção e comércio mundiais e forçou sociedades inteiras a encontrar novas formas de conduzir negócios, manter estruturas educacionais e mesmo operar os próprios sistemas de deliberação política.
Teleconferências, ensino a distância, e sessões legislativas via Zoom se tornaram rapidamente o chamado novo normal e ninguém sabe ao certo quando se poderá voltar aos procedimentos usuais de condução dessas atividades. Expressando forte e tragicamente esses eventos, a América Latina tornou-se hoje o epicentro da manifestação do novo vírus, especialmente nos maiores países da região, como Brasil e México.
Continente historicamente marcado por desigualdades sócio-econômicas profundas e estruturas políticas democráticas frágeis, as experiências da América Latina com o Covid-19 tem sido definida por abordagens diversas, dependendo do governo de cada país, muitos dos quais vivenciam hoje forte polarização ideológica e negacionismo científico que ecoam a triste realidade corrente nos Estados Unidos, país tradicionalmente hegemônico na região.
De maneira geral, o tamanho de alguns países tem sido um dado central nas formas pelas quais as infecções regionais tem se manifestado. De fato, estados menores, como Uruguai e Paraguai, têm gerenciado melhor a reação à pandemia via controle rígido de suas fronteiras; fenômeno que embora bem sucedido no âmbito da saúde pública regional, também vem arrefecendo sentimentos nacionalistas, especialmente com relação aos seus relacionamentos com o Brasil, principal país da região e que está sendo visto como grande ameaça sanitária regional.
Estado com maior economia e população da América do Sul, o Brasil tem apresentado o pior quadro da pandemia regional, apesar de talvez possuir alguns dos maiores recursos e estruturas de saúde pública, como o Sistema Único de Saúde (SUS). Efetivamente, ao contrário ao que está em curso na vizinha Argentina (onde medidas de isolamento social foram muito bem implementadas), o governo Bolsonaro tem tratado a crise do Covid-19 ao longo das linhas propostas pelo governo Trump, qual sejam: um negacionismo da própria pandemia assim como esforços de sabotagem das iniciativas de isolamento implementadas por governadores de diversas unidades federativas do país.
É certo que os desafios do novo coronavirus têm sido enormes ao redor do mundo. Mas também é certo que tais questões se exacerbaram em países com fortes disparidades sociais e especialmente com sistemas de coordenação políticas débeis ou paralisadas por disputas ideológicas. Nesse sentido, não surpreende que tenhamos hoje em nosso país mais de um milhão de casos, mais de 50 mil mortos, e apresentando a mais acentuada curva de expansão do vírus do mundo.
De maneira concreta, nossas medidas de distanciamento social foram insuficientemente implementadas. E assim como em vários outros países do nosso subcontinente, grande parte de nossos cidadãos se ocupam em atividades informais e não tem condições de não trabalhar ou trabalhar de casa. Da mesma forma, o ensino à distância, embora grande ferramenta em si, certamente não foi um recurso democraticamente implementado junto aos nossos alunos. Portanto, tudo indica que, para além das diferenças nacionais, as experiências com o Covid-19 na América Latina também variaram muito de acordo com o lugar de moradia, tipo de emprego, condições econômicas e mesmo educacionais de cada um.
Aprofundando o quadro de desafios regionais, encontramos hoje em muitos países regionais o maior contexto de fragmentação política e polarização ideológica desde pelo menos o início do século XXI. E a desaceleração econômica que já vinha ocorrendo de maneira ampla em quase todos países desde 2014 tenderá a se aprofundar nos próximos anos, com impactos profundos em nossa marcante desigualdade social – especialmente no Brasil, onde isso já vem ocorrendo de maneira acelerada nos últimos anos.
Preocupaçôes com nosso futuro também são claras no âmbito da coordenação política e diplomática regional, já em franca deterioração, como bem demonstrado pelo desmantelamento em curso da União de Nações Sul-Americana (Unasul), assim como pela recente retomada do controle da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo governo dos Estados Unidos. Nesse quando, o vergonhoso e ineficaz alinhamento automático do governo Bolsonaro ao governo Trump aprofunda a destruição dos esforços de coordenação regional construído nas duas primeiras décadas do século em curso.
Parece certo que o cenário regional do Covid-19 tem sido definido por enormes desafios sanitários, econômicos, sociais, políticos e mesmo diplomáticos. Tais questôes tenderão a se agravar no contexto atual de acirramento de sentimentos e lógicas nacionalistas, tanto na América Latina, como no mundo como um todo.
Apesar de trágica, a experiência do gerenciamento do Covid-19 poderia servir para promover a reversão destas tendências, dado que a nova pandemia, como qualquer outra causado por um vírus, não respeita fronteiras e nacionalidades. No momento em que políticas de controle sanitário, que certamente teriam tido melhor resultados se buscadas por meios multilaterais – e que poderiam assim servir para aprofundar iniciativas de coordenação diplomática regional-, o que vemos é a reversão de tais projetos e o aprofundamento da lógica e narrativa unilateral e mesmo xenofóbica.
[1] Professor da Universidade de Denver.