Lígia Barros de Freitas[1]
Mariele Troiano[2]
A confecção de uma nova Constituição faz parte de um processo de redefinição das referências normativas de determinada sociedade. Quando parte massiva da população não se percebe integrada e reconhecida em seus direitos e não recebe respostas condizentes com suas demandas, a problemática da mudança constitucional vem à tona. Ela pode resultar em várias formas de transformações: desde a recepção de exigências populares, até mesmo a mutação da crise política em crise constitucional ou desconstituição da Constituição.
Conforme Margareth Levi (1991)[3], transformar ou destruir instituições é tarefa custosa, pois, com o objetivo primeiro de representação, os atores envolvem também suas perspectivas, crenças e interesses[4]. De modo geral, rupturas constitucionais tendem a ser mudanças de três tempos, nas quais o passado, o presente e o futuro se entrelaçam.
A mudança constitucional pró-democrática nasce, em regra, quando a maioria é capaz de superar as incapacidades de resposta do regime frente às suas demandas do povo. A incompetência do governo em responder essas demandas agrava e torna crônicos os problemas sociais, políticos e econômicos. De modo geral, quando uma distopia é instaurada e é percebida pela maioria, a resolução para a questão pode ser uma modificação constitucional. Por isso, mudanças democratizantes tendem a acontecer em momentos de efervescências sociais e crises econômicas e políticas
As mudanças constitucionais também lidam com a negação do pretérito – mesmo que seja um passado não tão distante. A necessidade de uma nova Carta se constitui com a negação da ordem instituída a partir do texto vigente arquitetado em momento anterior. O movimento constituinte constrói-se também pelo seu objetivo de demarcar aquilo que até há pouco era instituído e por isso, muitas vezes, novas Constituições tendem a provocar mudanças institucionais e serem guiadas pelas ondas democráticas e suas reverberações[5].
Novas Constituições também representam o tempo futuro ao estabelecerem princípios, objetivos e balizas normativas que provocam processos de confecção e engajamento de legisladores e atores da sociedade civil. Assim, é na conjunção dos três tempos – passado, presente e futuro – que um novo pacto é estruturado, tornando a inflexão constitucional possível.
Nossa Constituição Federal de 1988, que em 2021 completou 33 anos, nasceu de demandas da grande maioria da população por mudanças institucionais que promovessem as regras democráticas, a garantia de direitos fundamentais e a justiça social. O texto, que foi construído ao longo de dezoito meses de trabalhos, teve como objetivo principal reorganizar as bases normativas da Nação que, finalmente, configurariam um Estado Democrático de Direito.
Embora a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987/88 tivesse origem Congressual e fosse formada majoritariamente por constituintes conservadores (inclusive com senadores não eleitos – chamados de biônicos), ela produziu um texto progressista em diversos aspectos. Isso se explica por vários fatores, tais como o fato do não esgotamento das discussões em um anteprojeto inicial, da divisão dos trabalhos em comissões e subcomissões temáticas, sobretudo com inédita participação popular por meio de audiências públicas, o encaminhamento das emendas populares e a cobertura ampla da imprensa.
O crescimento de pesquisas e trabalhos sobre a memória da Constituinte é notório, mas podemos considerar que ainda é imensurável tudo o que o país experimentou naquele momento. No que tange aos trabalhos da Constituinte, os números são superlativos ao envolverem diretamente 559 parlamentares em oito comissões temáticas e 24 subcomissões e centenas de audiências públicas que resultaram em mais de 212 mil fichas eletrônicas relativas a emendas, projetos e destaques, 308 exemplares do Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 215 fitas de videocassete, 1.270 fotos e 2.865 fitas de som relacionadas a gravações de sessões da Assembleia[6].
Diante de tantos trabalhos e demandas ocorridos na ANC, é possível enfatizar a participação cívica vivenciada nesse momento em nosso país e o compromisso político de atores e grupos políticos relevantes à época. Se há um marco inviolável da Constituinte de 1988, ele está pautado em uma democracia que pulsa e se expressa na Assembleia Constituinte.
O povo, em sua pluralidade e com suas múltiplas demandas, passou a ser percebido não só em termos da normatividade que se funda, mas também como um conjunto de justiça e bem social que se projetam. Diante das críticas de que a Constituição de 1988 havia sido concluída como uma bricolagem de interesses particularistas, impõe-se a teia virtuosa de retalhos que se costurou visando à inserção de direitos sociais, civis e políticos para a população.
Nestas mais de três décadas, a Constituição sofreu numerosas mudanças, não tanto na revisão, prevista para após cinco anos da sua publicação e que não trouxe reformas substanciais, mas nas 111 emendas constitucionais. Tais emendas têm provocado discussões sobre a banalização das mudanças, a perda de autoridade da norma constitucional e até mesmo a ruptura constitucional. Porém, conforme Cristiano Paixão (2018)[7], a quantidade das emendas constitucionais não autoriza, de imediato, que isto seja tratado como um problema intrínseco; mas, antes, pode ser visto como parte da dinâmica das sociedades contemporâneas complexas, nas quais surgem maiores demandas do que na época em que a Carta foi escrita.
Além disso, as emendas constitucionais podem ser resultado de mudanças de perspectiva, dados os confrontos e compromissos políticos usuais numa comunidade politicamente dividida. Embora o desenho institucional da Constituição de 1988 comporte equilíbrios institucionais para uma democracia contemporânea, segundo o mesmo autor, o que estamos vivenciando desde o impeachment da Presidente da República Dilma Rousseff é uma crise “desconstituinte”. Com isso, as crises constitucionais podem advir de crises políticas quando a Constituição é colocada à prova, pois ela passa a sofrer ataques ao seu núcleo normativo e com a possibilidade de torná-la insubsistente[8].
No processo de desconstituição, o Supremo Tribunal Federal (STF), com suas interpretações do que é a Constituição, tem sido um dos principais atores a promover ataques, especialmente no tocante ao núcleo da Constituição sobre os direitos sociais, a Reforma política, o orçamento público, as garantias individuais e o devido processo legal. Em particular sobre os direitos trabalhistas, o STF, quando antes mesmo da Reforma Trabalhista – instituída pela Lei 13.467/2017 – já vinha proferindo decisões desfavoráveis aos artigos constitucionais de proteção ao trabalhador, por exemplo, quando ampliou a terceirização para todas as atividades.
O processo de ressignificação das normas constitucionais pelo STF avançou no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) sobre pontos da reforma trabalhista, especialmente desconstitucionalizando as proteções do artigo 7º da Constituição Federal. Os direitos constitucionais trabalhistas foram preteridos aos argumentos da eficácia econômica, do crescimento econômico e da expansão do mercado de trabalho[9].
Outro ataque à Constituição é a suspensão das normas constitucionais de direitos operada com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016. A emenda do “teto de gastos” que promoveu, com o reajuste fiscal, a suspensão da Constituição de 1988 por 20 anos. Sobretudo, ao utilizar uma medida emergencial permanente para salvar os interesses do mercado, inviabilizou políticas públicas para concretização dos direitos e garantias estipulados na Constituição[10].
Para além da desconstituição de direitos e suspensão das normas constitucionais, ocorreram ataques antidemocráticos ao próprio texto da Constituição, deixando entrever a conversão de uma crise política em uma crise constitucional. Os discursos anti-populares, clamando por uma Nova Constituinte, ganham o espaço público e aparecem como panaceia para a crise econômica, política e constitucional
Um dos erros do governo Dilma, antes de sofrer o golpe, foi o anúncio da intenção de convocação de um plebiscito autorizando uma Constituinte para fazer uma reforma política, como uma pronta resposta às manifestações de junho de 2013. A proposta durou menos de 24 horas, após a ampla contestação jurídica que sofreu, em especial por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de seu presidente Marcus Vinicius Furtado.
Outra proposta foi a da Constituinte “lipoaspiracional”, apresentada em 2018 pelo ex-Ministro do STF, Nelson Jobim, para retirar da Constituição Federal uma série de matérias que passariam a ser reguladas por lei infraconstitucional. Ou seja, a mudança pretendia retirar da Constituição normas que entendiam-se ser reservadas ao legislador ordinário, e que os Constituintes optaram por incluir no texto constitucional.
Ocorre que a separação das normas tipicamente constitucionais ou infraconstitucionais depende da concepção ideológica de Constituição. Segundo Casagrande (2018)[11], nossa Constituição não é baseada estritamente na teoria liberal de constitucionalismo, na qual predomina o entendimento de que nas Cartas Magnas devem constar somente normas de organização de Estado e os direitos fundamentais. Pelo contrário, a Constituição de 1988 sofreu forte/grande influência do constitucionalismo social.
Na campanha presidencial de 2018, voltou à cena política o tema sobre a necessidade de uma nova Constituição. O candidato a vice-presidente de Jair Messias Bolsonaro, Hamilton Mourão, em palestra em Curitiba no mês de setembro de 2018, defendeu a elaboração de uma nova Constituição mais enxuta e com princípios e valores “imutáveis”. Ademais, essa nova formulação não necessariamente ocorreria por meio de uma Constituinte, mas sim por uma “Comissão de Notáveis”, que elaboraria o texto para ser submetido a plebiscito popular. Justificando sua proposição, Mourão acusou a Constituição de 1988 de causar a crise, devido à amplitude da matéria constitucionalizada, que gerava inúmeras despesas[12].
O candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República, Fernando Haddad, inicialmente, em um debate na TV Record no dia 30 de setembro de 2018, ao apresentar o seu plano de governo, propôs a convocação de um novo processo constituinte[13]. Entretanto, após o primeiro turno da eleição, recuou na defesa de uma Constituinte. Segundo o documento Plano de Governo da coligação entre o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Republicano da Ordem Social (PROS) uma Nova Constituinte teria a finalidade de restabelecer os equilíbrios entre os Poderes, retomar o desenvolvimento, com as garantias de direitos e transformações necessárias ao país, com um texto mais enxuto e moderno, bem como com um sistema tributário mais justo, sem penalizar os mais pobres. O plano de governo previa a Convocação de uma ANC unicameral, livre, democrática e soberana[14].
O atual governo federal é responsável por sucessivos ataques à Constituição, especialmente a partir da aprovação da reforma previdenciária e a legislação para enfrentamento à Covid-19, na qual precarizou ainda mais os direitos sociais. Além disso, este governo tem promovido a construção de narrativas contrárias aos trabalhadores, aos quilombolas, aos indígenas, às pessoas com deficiências e aos direitos de equidade de gênero e racial, do meio ambiente e da promoção da ciência.
A proposta mais recente foi do líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (Partido Progressistas/PR), que, em janeiro do corrente ano, anunciou que apresentaria um projeto de decreto legislativo para a instituição de um plebiscito sobre a convocação de uma Nova Constituinte. O objetivo seria implantar outra Constituição na qual se reduziria ainda mais os gastos públicos e se liquidaria a verba orçamentária para a saúde, educação e demais serviços sociais.
A corriqueira chamada de uma Constituinte no Brasil, principalmente para diminuir impactos de crises, deixa à mostra o lado sombrio das crises constitucionais e os interesses de desconstruir as garantias e direitos nucleares firmados legitimamente pela sociedade. Com as incertezas que rondam o país desde o impeachment da Presidenta Dilma e com as investidas do Presidente Jair Bolsonaro, do Congresso e do STF contra as concepções firmadas na Constituição Federal de 1988, precisamos resistir aos duros ataques por meio da preservação do projeto social civilizatório fecundo em nossa Constituição Cidadã.
[1] Professora Efetiva na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com estágio doutoral no Centre de Recherches Politiques de Sciences Po , França- Paris. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
[2] Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora e Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com estágio doutoral realizado na University of Hull (Inglaterra).
[3] LEVI, MARGARETH. Uma Lógica da Mudança Institucional. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 34, n.1, 1991, p. 79 – 99.
[4] YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. n.67, pp.139-190, 2006 Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a06n67.pdf/. Acesso 18out. 2021.
[5]HUNTINGTON, Samuel. A Terceira Onda. Democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.
[6]BACKES, Ana Luiza; AZEVEDO, Débora Bithiah; ARAUJO, José Cordeiro. Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte. A Sociedade na Tribuna. Brasília: Câmara dos Deputados/Edições Câmara, 2009.
[7] PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: Crise e Futuro da Constituição de 1988. ANPT, 04 de maio de 2018. Disponível em: http://www.anpt.org.br/imprensa/26-anpt/artigos/3311-30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988. Acesso em 01 jun 2020.
[8] Idem Paixão (2018).
[9]ARTUR, Karen; FREITAS, Lígia Barros de. A extensão das ideias conservadoras-liberalizantes do Processo Constituinte por meio de juristas do Trabalho: Uma agenda de pesquisa. Revista Estudos Políticos. Rio de Janeiro, v. 11, n.22, p. 58-81, 2020.
[10] BELLO, Enzo; BERCOVICI, Gilberto; LIMA, Martonio Mont`Alverne Barreto. O fim das ilusões Constitucionais de 1988? Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N.03, 2019, p. 1769-1811
[11] CASSAGRANDE, Cássio. Do poder constituinte lipoaspiracional. JOTA, 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/do-poder-constituinte-lipoaspiracional-08102018. Acesso 18.out.2021.
[12] FOLHA DE SÃO PAULO. Vice de Bolsonaro defende nova Constituição sem Constituinte, 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/vice-de-bolsonaro-defende-nova-constituicao-sem-constituinte.shtml. Acesso 18out.2021.
[13] CERIONI, CLARA. O que você precisa saber sobre a proposta de Haddad para a Constituinte. Revista Exame, 2018. Disponível em: https://exame.com/brasil/o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-proposta-de-haddad-para-a-constituinte/ .Acesso 18 out. 2021.
[14] FOLHA DE SÃO PAULO. Por uma nova Constituinte, 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/01/por-uma-nova-constituicao.shtml. Acesso 18out.2021. Acesso 18out.2021.
Fonte Imagética: Manifestantes protestam em frente ao Congresso Nacional durante a Constituinte. Foto: Reprodução/Senado/Arquivo. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/justica/constituicao-de-1988-o-que-mudou-nos-ultimos-30-anos-0knu80t9ybehubrhoacweovmt/. Acesso em: 06 jan 2021.