Andréia Fressatti Cardoso[1]
Tomando emprestado de Hannah Arendt (1973), quem tem o direito a ter direitos? Esta pergunta nos leva a debater o significado de “cidadania”, especialmente quando a distância entre cidadão e não-cidadão é evidenciada por políticas públicas e decisões políticas que tendem a excluir algumas pessoas, como aquelas que são indocumentadas, ou quando ajustes temporários são colocados para responderem a demandas por direitos sem, ao menos legalmente, reconhecê-los. Este último é o caso do Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA) nos Estados Unidos.
Muito se escreveu sobre o DACA como política, por exemplo, como ele foi resultado do movimento por direitos de imigrantes, em especial a juventude, sua linha do tempo, e sua relação com políticas migratórias anteriores (Alulema, 2019; Bono, 2014; Castañeda et al., 2020; Cebulko & Silver, 2016). Contudo, neste texto, eu gostaria de enfatizar outro aspecto da luta pelo DACA, que é a formação e a transformação de subjetividades de direitos no processo, considerando tanto suas possibilidades quanto limitações. Assim, a questão que apresento é quem tem o direito a ter direitos em um contexto de um ajuste temporário e de direitos inegáveis (mas ainda assim negados) da população indocumentada no país.
Primeiro, algumas explicações são necessárias quanto ao que se entende aqui como sujeito de direitos. Contrariamente a algumas posições que tendem a identificá-los com o que foi apresentado e está escrito em leis e tratados de direitos, direitos resultam de lutas em que demandas são apresentadas e defendidas (Tilly, 2017). Portanto, eles são contestáveis e dificilmente podem ser fixados nos termos de tais leis escritas – uma vez que há uma luta contínua por inclusão, tanto de direitos como de sujeitos novos. Além disso, o dissenso é um elemento importante de tais lutas, uma vez que o sujeito é aquele que afirma ter os direitos que ele não tem (Rancière, 2004) – em outras palavras, a demanda por direitos usualmente se constrói sobre um conjunto conhecido de direitos, mas é criativa e inventiva, expandindo e reinterpretando os elementos deste conjunto. Neste processo, o sujeito de direitos é construído e transformado, não existindo antes da luta (Rancière, 2018).
Por subjetividade de direitos, entendo o processo de construção de si, enfatizando o poder criativo deste processo e como os direitos emergem (e re-emergem) por meio de lutas políticas. Também são consideradas as escolhas que estão disponíveis para estas pessoas, especialmente o contexto político em que estão inseridas, suas oportunidades, e como elas podem demandar pelos direitos que não têm. Investigar as subjetividades do DACA, portanto, considera tanto seus potenciais e benefícios, mas também suas clivagens e limitações. Coloca-se constantemente em questão quem tem o direito a ter direitos nos diferentes momentos do programa.
Neste sentido, o DACA foi uma política que não apenas concedeu benefícios para imigrantes que entraram nos Estados Unidos quando crianças e adolescentes, mas foi também responsável pela construção de subjetividades e transformação de identidades formadas e performadas durante as demandas do movimento de jovens indocumentados. Assim, emprestando as categorias de Benuto et al. (2018), houve um movimento de ser percebido (e perceber a si) como indocumentado, para DACAmentado e, posteriormente, DACAlimitado – cada um deles com representações e linguagens de direitos específicas, construídas nos intervalos entre essas categorias, quando os sujeitos demandam por direitos e constroem tais imagens de si como portador de direitos.
Enquanto um ajuste temporário, o DACA foi promulgado considerando um grupo específico que atendia a determinados critérios. Ele autorizou que muitos saíssem das sombras e, inicialmente, até mesmo trouxe certa energia para a mobilização em um primeiro momento – uma vez que, para este grupo, a deportação deixava de ser um risco imediato. Entretanto, não se pretendia como uma solução para a população indocumentada, e muito menos um ajuste para todos que necessitavam de um status migratório legal. Estima-se que a população indocumentada no país seja formada por 11 milhões de pessoas, das quais apenas 1,7 milhão eram elegíveis ao DACA (Gonzales, 2016). Também se estima que o DACA beneficiou em torno de 800 mil migrantes indocumentados. Esta pode ser identificada como a primeira clivagem na população indocumentada, isto é, entre os que eram elegíveis e os que não eram.
Além disso, os critérios propostos para o DACA pareciam construídos sobre uma narrativa do “bom imigrante”, destacando os méritos de alguns dos casos mais publicizados de Dreamers[2], mas dificilmente representativos das escolhas de vida e experiências de todos que participavam do movimento (Benuto et al., 2018; Castañeda et al., 2020). Com efeito, o memorando de sua promulgação, de julho de 2012, destaca como critérios ter adentrado os Estados Unidos antes de completar dezesseis anos de idade; ter até 31 anos quando de sua promulgação; estarem presentes continuamente no país desde então e sem status migratório; estarem matriculados em uma instituição de educação (ensino médio ou superior), concluírem o ensino médio ou servirem o exército estadunidense; e não possuem condenação criminal.
O sujeito visado pelo DACA, assim, era bem delimitado e, muitas vezes, expresso na figura do Dreamer, o migrante indocumentado bem-sucedido e que já estaria participando das estruturas sociais estadunidenses, salvo pela ausência de um documento. Esse discurso, porém, não considera as limitações institucionais e sociais de se viver, como adulto, sem documentos, e o enorme papel da estrutura e do status jurídico migratórios na vida de milhões de pessoas (Gonzales, 2016). Parecia que o DACA apontava para a necessidade de algumas qualificadoras para se ter o direito a ter direitos.
Isso também significa que, para alguns, o DACA chegou muito tarde: o sistema imigratório os havia levado para um caminho e eles atingiram um ponto de não retorno. O status migratório os levou a tomar decisões sobre o mercado de trabalho e lhes parecia não realista retornar a sonhos que tinham há dez anos atrás. Idade também era um critério, e ser muito jovem ou muito velho para solicitar o benefício também significava exclusão. Ainda, desde 2021, não se recebem novas aplicações do DACA em razão de uma determinação do 5º Circuito de Apelação em Texas v. United States (2021) com efeitos em todo o país[3]. Uma vez que a política encontra-se em constante debate jurídico, pode-se falar na incerteza do futuro do programa e, consequentemente, um retorno às sombras dessas pessoas.
Há ainda uma consequência não intencional do próprio DACA: apesar de um ganho importante por parte do movimento e a proteção trazida a esse grupo em específico, ao longo do tempo o programa gerou uma parcial desmobilização do movimento por direitos, que veio a retomar (apenas em parte) fôlego com as ameaças ao programa a partir de 2017, na administração Trump. Como destaca Benhabib (2018), não se pode exigir uma conduta de resistência e luta de todos, e acrescentamos também que muito menos por um tempo tão prolongado. Ao se atingir alguns objetivos especiais, esperava-se, até mesmo pelos próprios organizadores dos movimentos de direitos de imigrantes nos Estados Unidos, certa diminuição de pessoas, pois a constante luta é um processo extenuante e cujos resultados, muitas vezes, não podem ser observados pelos ativistas[4].
Assim, como podemos colocar a questão de quem tem o direito a ter direitos, considerando tanto os méritos quanto às desvantagens do DACA? Se percebermos o DACA como um passo na luta por direitos, pode fazer sentido mantê-lo em seu lugar, mas ainda assim emerge a questão de como providenciar, de modo benéfico, os mesmos direitos para aqueles que não são estudantes, ou não migraram quando menores de idade, mas que também têm demandas de pertencimento e de participação na sociedade estadunidense. Ainda, se formos insistir no DACA, qual o caminho para que ele não desmobilize a luta por direitos de migrantes nos Estados Unidos?
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas:
Alulema, D. (2019). DACA and the Supreme Court: How We Got to This Point, a Statistical Profile of Who Is Affected, and What the Future May Hold for DACA Beneficiaries. Journal on Migration and Human Security, 7(4), 123–130. https://doi.org/10.1177/2331502419893674
Arendt, H. (1973). The Origins of Totalitarianism. Harcourt, Inc.
Benhabib, S. (2018). From “the Right to have Rights” to the “Critique of Humanitarian Reason.” In S. Benhabib, Exile, Statelessness, and Migration: Playing Chess with History from Hannah Arendt to Isaiah Berlin. Princeton University Press. pp. 101-24.
Benuto, L. T., Casas, J. B., Cummings, C., & Newlands, R. (2018). Undocumented, to DACAmented, to DACAlimited: Narratives of Latino Students With DACA Status. Hispanic Journal of Behavioral Sciences, 40(3), 259–278. https://doi.org/10.1177/0739986318776941
Bono, M. (2014). When a Rose Is Not a Rose: DACA, the Dream Act, and the Need for More Comprehensive Immigration Reform. Thurgood Marshall Law Review, 40, 193.
Castañeda, E., Torres, A., Martinez, B., Guare, M., & Glover, E. (2020). The Movement for Immigrant Rights. In C. Tilly, E. Castañeda, & L. J. Wood (Eds.), Social Movements, 1768-2018. 4th ed.. Routledge. pp. 177-93.
Cebulko, K., & Silver, A. (2016). Navigating DACA in Hospitable and Hostile States: State Responses and Access to Membership in the Wake of Deferred Action for Childhood Arrivals. American Behavioral Scientist, 60(13), 1553–1574. https://doi.org/10.1177/0002764216664942
Gonzales, R. G. (2016). Lives in Limbo: Undocumented and Coming of Age in America. University of California Press.
Rancière, J. (2004). Who Is the Subject of the Rights of Man? The South Atlantic Quarterly, 103(2), 297–310.
Rancière, J. (2018). O Desentendimento: Política e Filosofia. 2 ed. Editora 34.
Tilly, C. (2017). Where Do Rights Come From? In E. Castañeda & C. L. Schneider (Eds.), Collective Violence, Contentious Politics, and Social Change: A Charles Tilly Reader. Routledge. pp. 168-82.
[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e pesquisadora visitante no Center for Latin American and Latino Studies da American University (CLALS/AU). Bolsista no Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (BEPE-FAPESP, processo n. 2022/04176-5). Membra da equipe editorial do Boletim Lua Nova e associada do CEDEC. E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de completa responsabilidade da autora e não necessariamente refletem as opiniões da FAPESP. A primeira versão deste texto foi publicada em inglês, no blog do Immigration Lab da American University. Agradeço ao professor Dr. Ernesto Castañeda (CLALS/AU) e a todas/os membros do Immigration Lab pelos comentários e pela oportunidade de publicação no blog do projeto. Alguns acréscimos foram feitos nesta versão.
[2] Como parte de sua mobilização pelo DREAM Act, o senador Dick Durbin (Partido Democrata, Illinois), reuniu algumas dessas histórias no seguinte endereço: https://www.durbin.senate.gov/issues/immigration-and-the-dream-act/dreamers-stories. Uma das primeiras foi a de Tereza Lee, trazida aos Estados Unidos quando tinha dois anos de idade e que, desde de sua adolescência, revelou-se uma talentosa musicista, recebendo várias bolsas de estudo a despeito de seu status indocumentado.
[3] Esta ação pode ser vista em conjunto com a oposição do Estado do Texas e outros à expansão do DACA em 2014 e à implementação do Deferred Action for Parents of Americans (DAPA), que beneficiaria pais imigrantes. Trata-se de Texas v. United States (2014). Um dos principais argumentos dos estados é o aumento de gastos públicos com a população indocumentada, destacando a emissão de documentos (carteira de motorista), educação e saúde.
[4] Esta informação tem aparecido no desenvolvimento de meu trabalho de campo nos Estados Unidos, e o cansaço da disputa pelo DACA desde a administração Trump é um dos fatores mais repetidos pelos entrevistados.
Fonte Imagética: WikiCommons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:DACA_rally_SF_20170905-8471.jpg Acesso em: 10 ago 2023.