Beatriz Mendes Chaves[1]
Nas últimas eleições brasileiras, a paridade racial e de gênero foi especialmente pautada no debate público. Apesar do tema integrar a agenda política mais recente, a demanda por ações institucionais de combate às desigualdades raciais e de gênero no processo eleitoral é longínqua e se ancora no cenário de baixa representatividade de grupos não-brancos e não-masculinos em espaços políticos cujo acesso é organizado por meio das eleições. Este fenômeno ocorre de forma sistemática no Brasil, como reflexo de processos histórico-políticos baseados na exploração desses grupos em benefício aos homens brancos. Ao passo que o sistema político brasileiro tem seu modelo baseado na representação, a baixa inclusão política desses segmentos não só fere princípios democráticos importantes ao mitigar a participação plural, mas possui consequências na legitimidade e efetividade das políticas produzidas – já que alguns grupos são formalmente mais representados que outros.
A principal resposta institucional a esses desafios consiste nas ações afirmativas, que são políticas públicas que objetivam distribuir recursos e/ou oportunidades para grupos sociais desfavorecidos visando o benefício coletivo, podendo ser rígidas, como reservas e cotas, ou pouco rígidas, como bonificações (FERES JUNIOR ET AL., 2018). No âmbito da representação política, as cotas eleitorais constituem a estratégia mais utilizada para a ampliação da participação de grupos sub-representados (ARAÚJO, 2009), de modo que a partir dos anos 1990 uma grande parcela dos países latino-americanos, como Argentina, Bolívia e Costa Rica, passou a adotá-las.
O Brasil acompanhou este movimento e, a partir da extensa mobilização dos movimentos sociais organizados, a incorporação de minorias sociais na política foi pautada. Temos, assim, a criação das cotas eleitorais de gênero como primeira grande política pública de inclusão política no Brasil. A Lei n° 9.100/1995 estabelece, para as eleições de 1996, o percentual mínimo de 20% das vagas de cada partido (ou coligação) para candidaturas femininas. A medida foi ajustada pela Lei n° 9504/1997, a Lei das Eleições, que determinou aos partidos e coligações, para todas as eleições brasileiras, a reserva de 30% das vagas para candidaturas de diferentes gêneros. Diante da predominância de homens na corrida eleitoral, a proporção determinada pela legislação aplica-se às candidaturas de mulheres.
Ainda que a medida tenha sido positiva, a norma não produziu grandes efeitos até que obrigasse o preenchimento desse percentual, algo ocorrido em 2009 com a Lei n° 12.034. Não obstante à maneira gradativa que ocorreram, essas iniciativas demonstram, em certa medida, o reconhecimento institucional acerca da necessidade de representação política mais equânime, à vista dos esforços para o alcance de equilíbrio de gênero na corrida eleitoral a partir dos anos 1990. É possível observar, portanto, que no tema das eleições a questão de gênero vem sendo predominantemente priorizada quando comparada à questão racial. Isso se deve, principalmente, à ausência de dados oficiais contendo informações sobre raça/cor das candidaturas até 2014.
Ao analisarmos os pleitos recentes, torna-se ainda mais nítido a importância de iniciativas que visem o combate às desigualdades raciais e de gênero no contexto eleitoral. Em 2018, por exemplo, apesar de constituírem cerca de 20% da população brasileira, os homens brancos corresponderam a 35% das candidaturas às assembleias legislativas, 40% das candidaturas à Câmara dos Deputados, 54% das candidaturas ao Senado e 58% das candidaturas ao cargo de governador. Essa sobrerrepresentação ocorre em prejuízo às candidaturas femininas e negras e se mostra ainda mais profunda no universo de candidaturas eleitas, em que esse grupo corresponde a 61% dos deputados estaduais, 63% dos deputados federais, 65% dos senadores e 69% dos governadores eleitos neste pleito (CAMPOS; MACHADO, 2020).
Gráfico 1: Proporção de homens brancos nas eleições de 2018, por cargo e etapa eleitoral
Ao voltarmos o olhar para as eleições de 2020, o diagnóstico de sobrerrepresentação masculina generalizada é corroborado. O gráfico 2 objetiva comparar o perfil das candidaturas à vereança em 2020 com o perfil da população brasileira. Conforme a PNAD, em 2019, os homens brancos representavam 20,2% da população brasileira e, em 2020, este grupo representou 30,4% das candidaturas a vereador, uma diferença de 10,2 pontos percentuais. No caso dos homens negros, apesar de serem 27,6% da população nacional, este grupo representou 33,7% das candidaturas, demonstrando uma sobrerepresentação próxima a 6 pontos percentuais. Por fim, os homens amarelos, indígenas ou sem informação representavam apenas 0,5% da população e foram 1,3% das candidaturas do último pleito, uma sobrerrepresentação próxima a 0,8%.
Gráfico 2: Candidaturas à vereança em 2020, conforme o perfil racial e de gênero
Em contrapartida, as mulheres foram genericamente sub-representadas no universo das candidaturas a este cargo. Ainda que representem 22,5% da população, as mulheres brancas foram 17,2% do total de candidaturas apresentadas, uma diferença de 5,3 pontos percentuais. As mulheres negras, por sua vez, corresponderam ao maior subgrupo populacional de 2019, representando 28,6% da população nacional, mas apenas 16,8% das candidaturas à vereança, uma diferença percentual de 11,8 pontos. Por fim, as mulheres amarelas, indígenas ou sem informação foram 0,55% da população e 0,6% das candidaturas, consistindo no grupo com menor distorção entre a população e o universo de candidaturas. Como se observa, na etapa inicial da corrida eleitoral, as mulheres negras foram o grupo mais sub-representado para este cargo, sucedidas pelas mulheres brancas. Nenhum grupo masculino foi sub-representado, fenômeno que sugere a influência positiva do gênero masculino nesta etapa.
Ao focarmos no grupo de candidaturas eleitas ao cargo de vereador em 2020, as desigualdades se aprofundam ainda mais. Os homens brancos foram 44,3% das candidaturas eleitas, seguido dos homens negros, com 38,2%. Quando somadas ao percentual de homens amarelos, indígenas e sem identificação racial eleitos, 1,4%, candidaturas masculinas representaram 83,9% dos eleitos neste pleito, percentual bem superior aos 48,3% que representam enquanto conjunto masculino da população. Essa expressiva sobrerrepresentação ocorre em prejuízo às mulheres, cuja representação total não ultrapassa 16%, ainda que essa população corresponda a mais de 51% da população brasileira.
Gráfico 3 – Vereadores/as eleitos em 2020, conforme o perfil racial e de gênero
Não obstante os avanços recentes, alguns achados importantes por parte da comunidade científica reafirmam a urgência de medidas mais eficazes no combate às desigualdades raciais e de gênero nas eleições. Existe o consenso de que negros e mulheres são sistematicamente subfinanciados e este é o principal condicionante de sucesso eleitoral desses grupos devido a associação positiva entre dinheiro e votos (CHAVES; MANCUSO, 2020). Como efeito, ainda que se observem tentativas de intervenção pelo Poder Legislativo entre 2010 e 2017, em 2018 temos a vinculação da reserva de vagas para candidaturas femininas ao financiamento eleitoral partidário por meio da Resolução n° 23.568 do TSE – que fixou a aplicação mínima de 30% do total de recursos eleitorais recebidos pelos partidos políticos em candidaturas femininas. A medida foi determinada pelo Poder Judiciário em resposta à Consulta n° 0600252-18.2018.6 protocolada pelo conjunto de Senadoras Vanessa Grazziotin (PCB), Ângela Portela (PDT), Fátima Bezerra (PT), Gleisi Hoffmann (PT), Kátia Abreu (PP), Regina Sousa (PT), Lídice da Mata (PSB) e Rose de Freitas (MDB) e de Deputadas Federais Gorete Pereira (PL), Jô Moraes (PCdoB), Luana Costa (PSC), Luciana Santos (REDE), Raquel Muniz (PSD) e Soraya Santos (MDB).
De maneira similar, ainda que tenham sido debatidas predominantemente pelo Poder Legislativo, ações afirmativas de cunho racial nas eleições foram providenciadas pelo Poder Judiciário em 2020, em resposta à Consulta n° 0600306-47.2019.6 protocolada pela Deputada Benedita da Silva (PT-RJ), e determinou o financiamento proporcional das candidaturas negras pelos partidos políticos. Apesar da medida estar em vigor, uma política de reserva de vagas para candidaturas negras inexiste e continua sob responsabilidade do Poder Legislativo. Finalmente, em 2022, visando incentivar a inclusão de ambos grupos nas eleições, foi aprovado pelo Congresso Nacional a duplicação de votos endereçados às candidaturas femininas e negras para distribuição de recursos do Fundo Eleitoral entre os partidos políticos por meio da Emenda Constitucional n° 111 que versa sobre a reforma eleitoral.
Como se vê, mesmo que os processos políticos que culminaram nessas políticas sejam formalmente separados, é possível identificar algumas confluências importantes. As conquistas mais relevantes no âmbito das cotas de gênero foram provocadas pela ampla mobilização de mulheres eleitas, assim como as determinações de raça ocorreram a partir da movimentação de parlamentares e ativistas negros. Esse fenômeno demonstra, por um lado, a importância de presença desses atores em espaços institucionais e, por outro lado, a necessidade de pensar esse contingente de forma mais qualitativa – ou seja, de eleger mulheres que defendam interesses majoritários das mulheres e parlamentares negros/as comprometidos/as com os interesses da população negra.
Apesar dos ganhos, as medidas demandam ajustes fundamentais para sua efetividade. Em primeiro lugar, ainda que busquem mitigar a desigualdade de acesso provocada pela influência de marcadores sociais nas eleições, essas políticas não consideram os demais efeitos de uma cultura política marcada pelo machismo e pelo racismo estruturais que minam as oportunidades para o desenvolvimento político e social de mulheres e negros. O problema da inclusão efetiva desses grupos não se limita à dimensão econômica, abarcando elementos sociais mais profundos que também exercem influência no êxito dessas candidaturas. Além da escassez de recursos eleitorais, heranças histórico-sociais também afetam negativamente candidaturas femininas e negras, já que, conforme a literatura especializada (ARAÚJO, 2009; SACCHET, 2009), as mulheres também são prejudicadas por desvantagens historicamente impostas que limitam o capital sociopolítico dessas candidatas. Candidaturas negras, por sua vez, enfrentam obstáculos relacionados à ausência de informações e estudos especializados e aos efeitos do racismo brasileiro que, ao invisibilizar os conflitos raciais existentes, tende a diminuir a competitividade dessas candidaturas.
Em segundo lugar, a ausência de diálogo entre as políticas demonstra a necessidade de se pensar políticas públicas de modo interseccional, agregando as dimensões racial e de gênero. Estudos recentes apontam, por exemplo, que apesar de serem contempladas pelas duas medidas de forma concomitante e obterem financiamento mais proporcional, de maneira geral, as mulheres negras não tiveram seu êxito eleitoral melhorado (MANCUSO; CHAVES, 2021). Isso sugere que os benefícios sobrepostos não parecem suficientes para mitigar os prejuízos que se acumulam durante a corrida eleitoral para esse grupo. Nesse sentido, faz-se necessário, ainda, abranger a concepção de gênero e raça de modo a contemplar candidaturas trans e indígenas – profundamente marginalizadas.
Esses desafios dialogam, em terceiro lugar, com a necessidade de se estabelecer um percentual mínimo de candidaturas mais realístico à proporção que esses grupos representam na população: em 2019, as mulheres brancas, negras, indígenas e amarelas correspondiam a 51,6% da população brasileira, percentual consideravelmente acima do 30% almejado pela legislação, e homens e mulheres negros correspondiam a 56,2% da população total. Por fim, o preenchimento dessas proporções entre as candidaturas eleitas também segue como desafio, já que o sistema eleitoral de lista aberta restringe as determinações às etapas de recrutamento e financiamento eleitoral sem necessariamente garantir o êxito dessas candidaturas.
A interpretação crítica da realidade política brasileira à luz de teorias interseccionais demonstra-se de suma importância para o alcance da equidade racial e de gênero nas eleições para abranger uma discussão até então centralizada em um único grupo dominante composto por homens brancos. Esse deslocamento possui efeitos concretos na qualidade democrática tendo em vista a necessidade de esferas decisórias mais representativas que, por princípio, devem ser mais participativas e inclusivas devido a relação direta entre os perfis de pessoas eleitas e o teor das políticas produzidas (SACCHET, 2012).
No tocante ao pleito de 2022, diante da vigência de novas medidas de inclusão voltadas ao combate à desigualdade no aporte de recursos financeiros para campanhas eleitorais, a expectativa é que, de modo geral, o desempenho de candidaturas negras e femininas seja melhorado. Contudo, até que alguns desafios importantes sejam endereçados pelos Poderes Legislativo e Judiciário, essas medidas, ainda que positivas, podem ser insuficientes. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer mecanismos de fiscalização efetivos que combatam candidaturas fictícias (ou laranjas), fenômeno já apontado como desafio proveniente da lei de cotas para mulheres (VOLPATO; BARMANN, 2018) e que pode ser intensificado com a nova legislação. Em segundo lugar, ao voltarmos o olhar para candidaturas negras, é preciso aprimorar o modelo de classificação racial já que o método de autodeclaração utilizado oportuniza o usufruto arbitrário das políticas voltadas a esse grupo à medida em que não é acompanhado por qualquer comissão ou dispositivo heteroidentificador que faça a verificação racial dessas candidaturas. Em terceiro lugar, ao compreendermos essas desigualdades como reflexo de opressões sociais sobrepostas que podem ser analisadas de modo interseccional, novas medidas devem considerar as demais implicações estruturais do racismo e do machismo no contexto eleitoral, sem se limitar exclusivamente à dimensão financeira.
Apesar do baixo acúmulo de estudos que enfatizem as desigualdades raciais e de gênero de modo agregado na política institucional brasileira, ao que parece, por fim, a literatura já aponta os efeitos desses marcadores sociais no campo eleitoral ao demonstrar que homens brancos constituem o grupo mais representado e financiado da corrida eleitoral devido, principalmente, aos benefícios masculinos e brancos que se acumulam ao pertencerem a um grupo historicamente favorecido no que se refere aos efeitos da raça e do gênero nas eleições brasileiras. Investigações detalhadas sobre os desdobramentos das novas iniciativas de inclusão, assim como a comparação entre os resultados eleitorais mais recentes, seguem como sugestão para pesquisas futuras.
* Este texto não representa, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Clara. (2009), “Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das mulheres na representação política”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 193-215.
CAMPOS, Luiz Augusto; MACHADO, Carlos. (2020) Raça e eleições no Brasil. Editora Zuko, Porto Alegre, 1ª edição.
CHAVES, Beatriz Mendes; MANCUSO, Wagner Pralon. (2020) Raça e gênero nas eleições brasileiras: uma análise sobre a corrida eleitoral de 2018. Boletim de Políticas Públicas nº6. Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas EACH-USP, São Paulo.
FERES JÚNIOR, João; CAMPOS. Luiz Augusto; DAFLON, Verônica; VENTURINI, Anna. (2018) Ação Afirmativa: conceito, história e debates. Rio de Janeiro: EdUERJ.
MANCUSO, Wagner Pralon; CHAVES, Beatriz Mendes. (2021). Enfrentando problemas, calibrando soluções: a influência de marcadores sociais nas eleições municipais de 2020. In: 45º Encontro Anual da ANPOCS, São Paulo. Anais do 45º Encontro Anual da ANPOCS.
PNAD. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. (2019). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Rio de Janeiro: IBGE.
SACCHET, Teresa. (2009), “Capital social, gênero e representação política no Brasil”. Revista Opinião Pública. Campinas, v. 15, n. 2, p. 306-332.
SACCHET, Teresa. (2012) Representação política, representação de grupos e política de cotas: perspectivas e contendas feministas. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n.2, p. 399-431.
VOLPATO, Eliane B.; BARMANN, Ana Paula V. (2018). O Modelo De Cotas Eleitorais De Gênero Adotado No Brasil – Uma Revisão Possível. Anais do EVINCI – UniBrasil, Curitiba, v.4, n.1, p. 57-57.
[1] Bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda em Ciência Política pela mesma instituição. Email: beatriz.mendes.chaves@usp.br
Fonte Imagética: Coalizão Negra Por Direitos realiza atos pela volta do Auxílio Emergencial e vacinação em 29 cidades. Disponível em <https://coalizaonegrapordireitos.org.br/2021/02/25/coalizao-negra-por-direitos-realiza-atos-pela-volta-do-auxilio-emergencial-e-vacinacao-em-29-cidades/>. Acesso em 06 set 2022.