Ronaldo Tadeu de Souza[1]
O Boletim Lua Nova entrevistou Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia e Ciência Política e Pesquisador do IESP-UERJ, Coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA), do Observatório das Ciências Sociais (OS) e Editor-Chefe da Revista Dados. Nesta segunda parte, conversamos sobre o trabalho de editoração de revistas científicas e sobre as eleições de 2022, um dos temas de pesquisa do entrevistado. Como a entrevista foi realizada antes do pleito, vale ressaltar que alguns dos comentários eram previsões. A primeira parte pode ser lida aqui.
Como se caracteriza a função de editor(a) de revista científica hoje? Com base na sua experiência como editor da Revista Dados, o que você diria para quem quer editar uma revista?
Luiz Augusto Campos: O que eu diria para quem quer editar uma revista? Essa é uma comparação meio ruim, e até talvez politicamente incorreta. Mas eu acho que a editoria científica é uma espécie de vício, daquelas coisas que você faz, não ganha tanta coisa para fazer, mas você desenvolve um certo gosto por aquilo. Mas, para além dessa metáfora tosca, eu acho que evidentemente tem prazeres envolvidos na editoria científica. A editoria científica é um trabalho não remunerado, de modo geral é um trabalho muito burocrático, no sentido de ser extenuante.
Então, na Dados, por exemplo, nós recebemos, em termos de submissões, um artigo por dia. No meu caso hoje eu conto com uma grande equipe, uma excelente equipe de assistentes, mas você tem que gerir essa equipe para garantir que a primeira avaliação do artigo seja feita de modo correto. Depois esse artigo passa e vai para avaliação do conselho editorial. Se isso está acontecendo, OK; se os pareceristas indicados são os mais adequados para aquele artigo; se os pareceres dados são os mais adequados; se os pareceristas não dão os pareceres que deveriam dar, como é que a gente recruta mais parecerista; e tudo isso garantindo um tempo adequado para avaliação do artigo. Depois, tem todas as fases de pré-publicação, preocupação com os índices da revista, preocupação com a diagramação da revista.
Então é um trabalho muito de gestão. É um trabalho excessivamente de gestão. Quem não tem essa vocação, para esse trabalho de mão na massa de gestão, provavelmente terá problemas em ser editor. É um trabalho que exige muita minúcia, a não ser que você tenha uma revista realmente muito rica, e que aí você pode ser simplesmente aquele editor que pensa nos destinos da revista e tem toda uma equipe que, autonomamente, faz esse trabalho. Isso porque a editoria científica se profissionalizou organizacionalmente, então hoje temos sistemas muito complexos, regras muito complexas. Mas não se profissionalizou em termos de formação pessoal no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, e em vários outros países, a profissão do editor é uma linha acadêmica separada. Eu digo isso brincando, mas é verdade, na Inglaterra os grandes editores viram lordes, eles ganham normalmente. O atual editor da Science é um lorde – tem o título de lorde -, são pessoas que se dedicam ao trabalho de editoria científica.
No Brasil a gente não tem essa possibilidade organizacional. Então, se você se dedica a editoria científica, você soma isso a todas as outras atividades docentes e de pesquisa – não é liberado de nada, não ganha mais nada por aquilo. Nisso a gente perde em profissionalização. Cada editor é quase sempre alguém que assume aquele cargo e vai ter que aprender no cargo a como fazer aquele trabalho a partir de cursos e de conversas muito fragmentárias e assim por diante. Eu acho que tem uma demanda muito grande de gestão, digamos assim, de gestão de pessoas, gestão de processos etc.
Agora, tem uma outra dimensão, que é legal do trabalho de editor. É que ele é um pouco a pessoa que contribui para organizar os procedimentos que vão criar marcas no campo da revista em que ele se encontra. Então, embora eu acho que o editor nunca possa dizer “esse artigo não deve ser publicado porque eu não gosto dele”, na verdade, todos os processos editoriais visam isolar, digamos assim, essa opinião do editor. O que o editor pode fazer é dizer quais procedimentos o artigo tem que superar para ser publicado. E esse trabalho, que é um trabalho de poder – você tem um determinado poder de fazer esses procedimentos -, eu acho esse trabalho muito interessante, porque ele ajuda a dar uma cara para o campo acadêmico que não necessariamente é uma cara que está sendo dada por uma injunção arbitrária. Ela está sendo dada por procedimentos, e existe uma grande liberdade, uma grande autonomia, para que o editor crie e modele grandes debates nas ciências sociais. Isso é muito prazeroso quando dá certo. Quando dá errado, quase sempre o editor é uma figura muito lembrada. Quando tem um texto que é injustamente recusado ou um texto erroneamente publicado e por aí vai. Mas eu entendo que é isso se eu fosse dar um conselho para alguém que tem interesse em editoria científica, eu diria que é algo muito prazeroso em termos de formação dos critérios de organização de um campo, mas é algo muito trabalhoso em termos de gestão burocrática do dia-a-dia e você tem que saber se você está disponível para essas coisas.
E como é a rotina de um(a) editor(a)?
LAC: Olha, hoje eu tenho uma rotina excelente, até ruim que os meus colegas ouçam isso, porque agora vão talvez estar mais interessados em assumir a minha vaga (risos). Brincadeira à parte, quando eu assumi a Dados, a revista vivia uma crise financeira e de fluxo muito forte. Isso porque ela está ligada ao IESP, e o IESP está ligado à UERJ, e a UERJ viveu dois anos com salários atrasados de todos os seus professores e funcionários. E chegamos a ficar 4 meses, em 2017, sem salário. Isso fez com que a Dados perdesse praticamente toda a sua equipe editorial e de apoio, e que a gente chegasse ali em 2017 com um tempo médio de análise de artigos de 600 dias, só para você ter uma ideia. O recomendado pelo Scielo são 200 dias. Então, a minha rotina nesse momento era uma rotina de dedicação diária à Dados. Todos os dias eu tinha que fazer alguma coisa pela revista. Não era só olhar o fluxo. Era recrutar as pessoas; organizamos um mutirão de pareceristas, eu devo vários favores a vários colegas que deram cinco, seis pareceres em um ano, o que é um número absurdo. Hoje em dia, isso não se repete mais.
Hoje, eu digo que a minha rotina é bem mais tranquila. Eu tenho uma equipe de mais ou menos seis pessoas na Dados. Eu tenho uma editora assistente, que é a Márcia Rangel Cândido, que me ajuda bastante. Temos o Murilo Gomes, que cuida de toda a parte de pré-publicação, temos uma secretária editorial que é a Marina [Bezerra], temos um curador de dados, que é o Matheus [Pestana], que cuida especificamente da disponibilização dos dados das revistas, temos o Emílio [Biscardi], que é o diagramador; e temos um pequeno exército de revisores que fazem a revisão ortográfica, às vezes até substantiva. Além disso, eu tenho os meus editores associados. Então, hoje, posso dizer que basta eu me dedicar um dia por semana à Dados que estou tranquilo. Ainda que um dia por semana, na minha rotina e na rotina de todos nós, às vezes é muita coisa. Mas isso porque eu tenho que basicamente administrar essa equipe.
Eu resolvo questões um pouco mais delicadas e dou inputs para essa equipe. Agora, isso também varia muito em termos de rotina. Tem revistas que eu conheço que recebem trinta textos por ano. A Dados recebe 370 textos por ano, então varia muito. Mas o meu objetivo como editor, que foi e continua sendo, é que a revista rode cada vez com menos presença do editor, para que ele possa se dedicar a tarefas mais editoriais e menos burocráticas.
Sobre as publicações, como você percebe o processo de recepção dos textos, a escolha deles e dos pareceristas e até mesmo os próprios pareceres?
LAC: Veja, eu acho que essa pergunta, se fosse feita há três anos atrás, ela teria uma resposta mais burocrática. Mas, hoje, ela é uma pergunta central, porque a gente está vivendo e vai continuar vivendo, cada vez de modo mais acelerado, uma pequena revolução no processo editorial. Então, a gente tem na editoria científica de modo geral algumas crises que a gente tem que enfrentar. Por exemplo, a gente tem uma crise de submissões – no sentido de que uma revista hoje como a Dados recebe, como já disse, mais de 300 textos por ano, um texto por dia. Mas desses textos, 70% ficam na primeira avaliação de pertinência. Então isso é um problema muito sério, porque você tem textos que são submetidos à Dados que sequer são artigos científicos. Você tem uma quantidade de trabalho deslocada para essa avaliação que é muito grande e que gera um problema.
Nós vivemos uma crise de pareceristas muito séria, porque as submissões crescem em progressão geométrica no Brasil e no mundo. No Brasil, nos últimos anos, nas últimas décadas na verdade, essas submissões têm aumentado intensamente. Mas o número de pareceristas não cresce em progressão geométrica, talvez nem cresça em progressão aritmética. Talvez nem cresça, inclusive. Então, como é que você lida com o fato de que você precisa de cada vez mais pareceristas e o número de pareceristas vai diminuindo, na verdade, está até estagnando? E tem também o dilema das publicações, porque a gente teve no Brasil um aumento muito grande das publicações, mas esse aumento das publicações não veio necessariamente acompanhado de um aumento do impacto das publicações. Então, o que está se discutindo hoje é uma mudança no Brasil e no mundo, por motivos muito diferentes, mas é uma mudança drástica no sistema e nos procedimentos editoriais, migrando para o que a gente chama no rótulo guarda-chuva de Ciência Aberta, que é basicamente se inverter os critérios do processo.
Ao invés de usar o sistema de submissão convencional, secreto, anônimo, baseado no parecer duplo, cego, e na publicação posterior só com o nome do autor ou dos autores, a gente migraria para Sistema de Ciência Aberta, em que os textos são disponibilizados ao mesmo tempo em servidores abertos e ficam livres para avaliação de quem quiser. A revista pode, inclusive, utilizar um sistema semelhante ao Facebook, e os textos ficariam ali disponíveis para quem quiser avaliar. Isso é o que tem sido utilizado como uma estratégia para lidar com essas múltiplas crises no mundo editorial brasileiro e internacional. Os resultados que isso vai dar são ainda difíceis de avaliar.
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Falando de conjuntura política brasileira, como está avaliando as eleições presidenciais de 2022?
LAC: Nós estamos em uma eleição dramática, importantíssima, talvez a mais importante da última fase da democracia brasileira. É uma eleição complicada para ser analisada pela ciência política porque é uma eleição de convictos em busca de indecisos. Grande parte do eleitorado se diz convicto em relação à sua escolha, e ela oscila entre dois candidatos e nós temos um percentual relativamente pequeno de indecisos e que estão sendo disputados com estratégias muito diferentes. Minha avaliação particular é que nós teremos um segundo turno mais duro do que nós imaginávamos. Espero estar errado. Espero que nós resolvamos a eleição em primeiro turno, mas acho muito difícil. Novamente espero estar errado. A história das eleições brasileiras, da democracia brasileira, é uma história de segundo turno. A gente teve somente uma em que o Fernando Henrique Cardoso (FHC) venceu em 1º turno, em 1998. Agora, em se concretizando o resultado mais esperado e o resultado mais provável, pelo menos de acordo com as pesquisas, é de que o Lula vença as eleições.
Eu acho que a gente tem dois desafios. Um primeiro desafio são os meses que separam o resultado das eleições e a posse. Então, o que vai acontecer nesses meses? São muitos meses, no passado dizia-se que eram poucos meses, porque nós tínhamos novembro e dezembro basicamente, mas para um presidente como Bolsonaro, a gente tem muito tempo para muita coisa acontecer. E a gente está falando de um presidente que crê piamente, eu acredito nele nesse sentido, que ele vai ser preso assim que sair da presidência. Então ele está disposto a fazer tudo para não ser preso e, se tudo pode, inclusive colocar em perigo as próprias instituições democráticas do Brasil.
Uma segunda questão é, em assumindo o poder de modo normal, como serão as características desse terceiro governo Lula? Eu acho que temos aí uma dissonância entre um discurso, digamos assim, mais à esquerda que o Lula vem fazendo mais recentemente. Existem diferentes explicações de porque ele vem fazendo esse discurso. Algumas pessoas dizem que por motivos eleitorais, outras dizem que por motivos políticos, uma reavaliação em relação às posturas mais ecumênicas do seu passado. Mas eu acho que o Lula não terá como escapar de um governo de uma amplíssima coalizão. É algo muito parecido, talvez até mais radical em termos de coalizão, do que foi o segundo governo Lula (2006-2010). E, nesse sentido, o que vai ser colocado no horizonte no ano que vem em um país que tende a se tornar um país quebrado em termos fiscais, por causa dos gastos absurdos que o Bolsonaro fez com o Auxílio Brasil e, mais recentemente, com essas renúncias fiscais ligadas ao ICMS e a gasolina? Acredito que isso vai ser um desafio bem complicado. Então, como é que você faz um governo que se pretende de esquerda em uma ampla coalizão com o Estado prestes a quebrar e tendo que agradar interesses muito contraditórios? Eu acho que a gente tem uma perspectiva difícil para 2023, mesmo se o melhor acontecer, que é o Lula ser eleito. Mas, evidentemente, são observações muito abstratas e muito gerais dadas por mim que não sou muito analista de conjuntura.
Você considera que, no processo eleitoral e na campanha dos candidatos, há alguma especificidade em termos das políticas públicas para as minorias, em especial quando se considera as minorias que têm peso eleitoral?
LAC: Bom, eu sempre busco responder essa pergunta, invertendo ela um pouco. Ou seja, mais importante do que a gente pensar o peso das políticas públicas para minorias políticas é a gente pensar o peso das minorias políticas para as políticas públicas. O que eu quero dizer com isso? A gente tem que entender que minoria política no Brasil costuma ser maioria social. E, sendo assim, as políticas públicas para as minorias políticas são, na verdade, políticas públicas estruturais. Então, de um lado, se a gente pegar, por exemplo, a política de cotas no ensino superior, eu defendo que essa política não pode ser vista como uma política de reconhecimento sociocultural para uma minoria política como ela é em outros países, por exemplo, os Estados Unidos. Ela, na verdade, é uma política estrutural redistributiva para determinados grupos que têm sofrido com a desigualdade de oportunidades. E mais do que isso, elas são políticas que reestruturam o universo onde elas são aplicadas.
Vamos pensar na universidade pública brasileira. Como é que era a universidade pública brasileira antes das cotas? Ela era o instrumento básico de reprodução das classes médias e altas. Como é que as classes médias e altas se reproduzem no Brasil e no mundo inteiro? Elas se reproduzem com acesso ao diploma. Então, se você é filho de médico, se você é filho de advogado, se você é filho de engenheiros, e você quer se tornar médico, advogado, engenheiro ou qualquer outra profissão, quem pode te dar esse diploma é a universidade. E no Brasil, em termos de prestígio de classe, quem podia te dar esse diploma era a universidade pública. Agora, quem financiava essa universidade? A maior parte da população – a população pauperizada, preta e parda. Então a universidade pública no Brasil funcionava como um imposto regressivo: ela tirava dinheiro da grande parte da população para garantir a reprodução da desigualdade de uma parte pequena da população, que eram as classes médias e as classes mais altas.
O que as cotas fazem não é só dar um direito específico a uma minoria política. O que elas fazem é justificar a existência do ensino público superior brasileiro. Então, agora sim, essa universidade pública que funcionava antes como um imposto regressivo que tirava do pobre para dar ao rico, agora ela dá um pouco para o pobre também. Ela dá um pouco para o discriminado também. E nesse sentido a política de cotas está longe de ser uma política de reconhecimento sociocultural para uma minoria política. Ela é uma política distributiva estrutural que tem efeitos na desigualdade de oportunidades para diferentes grupos.
Em sendo assim, isso nos leva à discussão de como as políticas públicas no Brasil são formuladas. Isso que eu falei da universidade se aplica também às outras políticas públicas. Quem usa SUS no Brasil? Basicamente, a população mais pobre, preta e parda. Quem usa educação básica? A população pobre, preta e parda. Quem é mais atingido pela política de segurança pública ou de violência estatal? A população pobre, preta e parda. [Mas] quem formula essas políticas? Não é essa população. É basicamente uma população branca masculina, de classe média e de classe alta. Então eu acho que tem aí uma questão que a gente tem que levar em conta, que é como a gente incorpora na gestão e na produção de políticas públicas a experiência daqueles e daquelas que são os mais atingidos e que se beneficiam ou não no caso da política de segurança dessas políticas públicas.
*Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova/Cedec
Fonte Imagética: Imagem gentilmente cedida pelo entrevistado.