Joyce Miranda Leão Martins[1]
A política moderna, idealizada em nome da liberdade e da igualdade, foi pactada por um grupo seleto de pessoas: homens, brancos, proprietários. Em sua aurora, o liberalismo condenou metade da humanidade ao espaço privado e à submissão, o que Carole Pateman (1993) chamou de “contrato sexual”. O viés sexista dos acordos sociais da modernidade, que negava às mulheres o direito de serem indivíduos, isto é, de serem reconhecidas como sujeitos livres, racionais e iguais, foi denunciado desde cedo. Não à toa, Amelia Valcárcel (2001) afirmou que o feminismo foi um filho indesejado da Ilustração.
Ainda assim, a conquista dos direitos básicos de cidadania (votar e poder se eleger) só começou a surgir, para as mulheres, dois séculos depois, com discrepâncias ao redor do mundo. A percepção de que havia algo errado com os regimes que se autoproclamavam democráticos (mas tinham ínfima participação das mulheres na política institucional) tardou ainda mais, emergindo apenas quando o que hoje conhecemos como democracia liberal começou a se espalhar pelo globo.
As mulheres foram as primeiras a exigir efetiva participação no poder e a apontar os limites daquelas democracias, falando sobre os problemas estruturais que colaboravam para que elas e membros de outros grupos minoritários estivessem à margem dos espaços de poder:
As estruturas políticas e econômicas das sociedades contemporâneas exibem alto grau de discriminação sexual e racial e, onde há grupos definíveis, há inevitavelmente interesses de grupo. […] Quando um grupo é consistentemente sub-representado, algum outro grupo está obtendo mais do que o que lhe corresponde (PHILLIPS, 2011, p. 344).
Esse problema fez com que os Estados passassem a colocar em prática medidas institucionais para amenizar a discrepância entre homens e mulheres na política contemporânea. Na década de 1990, onze países da América Latina implementaram legislações de cotas eleitorais, e a ONU passou a reconhecer os direitos das mulheres como direitos humanos. Daquela década até meados dos anos 2000, a representação política, a extensão da permissão ao aborto, o casamento homossexual e a adoção por casais do mesmo sexo foram alguns dos assuntos que fizeram parte da agenda política, fazendo emergir novos direitos.
As conquistas provocaram reação de setores religiosos, que se manifestaram contra o que, posteriormente, viriam a chamar de “ideologia de gênero”, distorcendo e deturpando um conceito trazido à teoria política e social, na década de 1970 (SCOTT, 2012), para diferenciar condicionamentos biológicos de construções sociais. Buscava-se evidenciar que não havia nada no sexo que indicasse fragilidade ou fortaleza; sensibilidade ou tendência à razão; gosto por roupas azuis ou rosas. Posteriormente, o conceito também ajudou a problematizar padrões heteronormativos. Nas palavras de Biroli et al: “a desvinculação entre o debate sobre direitos e abordagens morais naturalistas era necessária para romper com a ideia de que há corpos e sexualidades legítimos e ilegítimos” (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 20).
No sul global , o conceito distorcido e ideologizado funcionou como “cola simbólica” (KOVÁTS, PÕIM, 2015 apud BIROLI et al, 2020) que uniu setores religiosos e neoliberais, produzindo um neoconservadorismo que tem como mote o combate à ideia de gênero, aos direitos a ele relacionados, e a uma educação que paute as desigualdades.
É assim que dois fantasmas passaram a rondar a América Latina: o do progressismo, que expande os sentidos tradicionais da esquerda, incorporando gênero, sexualidade e raça na denúncia contra a desigualdade de classe e à cidadania incompleta; e o do conservadorismo, repaginado, buscando adeptos em corpos insuspeitos, aqueles das mulheres.
No Brasil, a eleição de 2018 foi crucial para atentar ao que venho dizendo. Pela primeira vez, vimos um “voto por gênero” nas eleições nacionais, com as mulheres rejeitando, massivamente, o então presidenciável Jair Bolsonaro. A campanha do candidato do PSL, logicamente, reagiu. Não havendo como negar os índices de intenções de voto, apresentaram mulheres que diziam, sim, estar ao lado do postulante da extrema-direita. Essas mulheres, fossem elas eleitoras ou políticas, atacavam as outras em nível pessoal: as feministas se tornaram as barangas, as sujas, as mal-amadas, as não-cristãs. (MARTINS, 2020; MARTINS, ALVES, CHICARINO, 2021). Depois das manifestações feministas do dia 29 de setembro daquele ano (seguidas pela declaração de voto do bispo Edir Macêdo, em Bolsonaro), o candidato subiu 6% nas intenções de voto do eleitorado feminino.
Ainda é cedo para dizer se 2022 repetirá 2018. De acordo com a Associated Press, uma em cada cinco mulheres rejeita o então presidente do Brasil. Em contexto no qual são a maioria do eleitorado, as eleitoras seguem como importante alvo de políticos e estrategistas de campanha, os quais, a partir da produção de discursos, ajudam a evidenciar que existe, cada vez mais, um ingresso político transgressor e um ingresso político subordinado (SOUZA, OLIVEIRA, MARTINS, 2022). O primeiro tipo marca a diferença, nos espaços de poder, tanto pelo corpo como pelas ideias. O segundo, de modo subordinado, está ali para ajudar a manter o status quo, ainda que seja a partir de uma mulher ou de um negro, tradicionalmente alijados da nossa política.
Não sabemos se as estratégias de outrora do neoconservadorismo vão funcionar, bem como se, no Brasil, o progressismo vai ter coragem de assumir as pautas que lhe competem. A defesa das mulheres e de outros grupos minoritários, nos espaços de poder, não é suficiente. Há uma tradição política que marginaliza e prejudica os novos sujeitos de direitos, sempre tentando manter a cidadania como um local de acesso restrito.
Aqui ao lado, na Colômbia, neste ano de 2022, foi possível conquistar a partir do lugar dos excluídos, apontando para as desigualdades que se encontram nas intersecções entre raça, classe e gênero; falando em “los nadies” e em “las nadies”, os ninguém que não assinaram os contratos sociais da modernidade. Pela primeira vez, uma mulher negra chegou à vice-presidência daquele país. Eleita com a colaboração de movimentos feministas e anti-racistas, Francia Márquez é um exemplo de ingresso político transgressor, que colabora para modificar antigos imaginários do poder.
Na luta pela legitimidade política, é fato que a menção da existência dos marginalizados e dos seus direitos se tornou incontornável. O poder vem aprimorando suas estratégias, colocando em disputa diferentes visões de mundo e de cidadania. De um lado, a reimaginação do futuro, que não é mais delimitado apenas em torno da luta contra a desigualdade de classe. Do outro, a procura pelo passado, com protagonistas hábeis em tirar a poeira de velhas vestes e ostentar ares de modernidade. Os fantasmas que rondam a América Latina interpelam esquerda e direita a se modificarem.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco.
Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.
MARTINS, Joyce Miranda Leão. Metamorfoses na democracia de público: a eleição presidencial de 2018 e o uso do Facebook pelas eleitoras de Jair Bolsonaro. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA (ABCP), 12., 2020. Anais […] ABCP, 2020. Disponível em: https://www.abcp2020.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOj Y6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjUzODciO3 0iO3M6MToiaCI7czozMjoiOGUzM2I5ODk0NjkxZWQ4NjE3YzdmNmExYTliYWNj YzMiO30%3D . Acesso em: 17 out. 2021.
MARTINS, Joyce Miranda Leão; ALVES, Mércia; CHICARINO, Tathiana Senne. Candidatas para o Brasil de Bolsonaro: as porta-vozes da direita na política digital. Política. Revista De Ciencia Política, 59 (2), 121–142, 2021.
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
SCOTT, Joan. Os usos e abusos do gênero. Projeto História, n. 45, p. 327-351, dez 2012.
SOUZA, Carlos Augusto; OLIVEIRA, Cloves; MARTINS, Joyce Miranda Leão. As minorias políticas: a sub-representação dos gêneros, raças e etnias. In: LAVAREDA, Antônio; TELLES, Helcimara. (Org.). Eleições municipais na pandemia. 1ed.Rio de Janeiro: FGV, 2022, v. , p. 171-193.
VALCÁRCEL, Amelia. La memoria colectiva y los retos del feminismo. Santiago de Chile: Naciones Unidas, 2001.
[1] Socióloga, doutora em Ciência Política e coordenadora do Observatório Abrapel, da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais. Autora do livro O novo jogo eleitoral brasileiro: PT e PSDB na democracia de público (Editora Appris, 2019).
Fonte Imagética: Paiva, Vitor. Francia Márquez: de ex-trabalhadora doméstica a 1ª mulher negra vice-presidente da Colômbia. Hypeness, 24 jun. 2022. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2022/06/francia-marquez-de-ex-domestica-a-1a-mulher-negra-vice-presidente-da-colombia>. Acesso em: 8 jul. 2022.