Maria do Socorro Sousa Braga (UFSCar)[1]
Johnny Daniel M. Nogueira (UFSCar)[2]
O Brasil atravessa uma das conjunturas mais desafiadoras de sua República após a redemocratização e promulgação da Constituição de 1988. As eleições deste ano se configuram como o acontecimento central a partir do qual o país poderá sair da encruzilhada de fortuna histórica que resultou na chegada da extrema-direita ao poder central em 2018. O processo eleitoral, por sua dimensão e seus efeitos, afeta o destino de milhões de pessoas e coloca em jogo projetos políticos de país e de políticas públicas que, tanto por sua presença ou ausência, impactam diretamente a sociedade. Outra possibilidade que as eleições oferecem é a da alternância no poder que pode mudar a correlação de forças político-partidárias, movimento crucial para a retomada do caminho do aprofundamento da ordem democrática que tem sido constantemente ameaçada pelo grupo político que hoje está à frente do Planalto. Dessa forma, quem sabe assim, voltamos a ter garantias de efetivação de um Estado de direitos sociais e civis em sua plenitude.
Neste texto, pretendemos analisar, de forma breve, duas questões: a primeira, em qual contexto essas eleições ocorrerão? Essa questão se faz relevante porque cada contexto apresenta particularidades e temas que influenciam o desenvolvimento da disputa política e a opção por parte dos presidenciáveis por determinada linguagem no decorrer do processo eleitoral; a segunda, quais são as condições de disputa das forças políticas nesse pleito? Nesse sentido, em quais aspectos esse pleito se diferencia dos demais?
Há um ditado muito comum entre os/as cientistas políticos/as de que “não é uma eleição que pauta temas, são temas que pautam uma eleição”. Seguindo essa lógica, o que podemos esperar para as eleições presidenciais deste ano? Como bem apontou Bernardo Ricupero, em artigo anterior, inaugurando a série de artigos neste Boletim, as eleições de 2018 foram pautadas pelo tema da corrupção. À época este tema foi impulsionado pela Operação Lava-Jato, que alcançou seu auge de 2014 a 2018, e contava com a imagem já muito debilitada do Partido dos Trabalhadores, que governara o país de 2003 a 2016. Essa convergência produziu um forte sentimento “antipetista” por seus anos de visibilidade na presidência e que fora muito bem captado por seus adversários.
Em 2022, contudo, o debate eleitoral se configura para outra direção. E isso por algumas razões. Primeira, porque o candidato vitorioso em 2018, Jair Bolsonaro, que se apresentou como um outsider ou outlier, “contra o sistema”, já não pode mais reproduzir esse discurso. Nesse ínterim de governo, Bolsonaro filiou-se ao Partido Liberal (PL), presidido por Valdemar da Costa Neto, que acumula fichas de condenação, como no escândalo do mensalão. O próprio presidente esteve no centro de várias investigações da Polícia Federal sobre sua atuação como parlamentar e da atuação de seus filhos, que apontam para um esquema de apropriação indevida de dinheiro do salário de seus funcionários, em esquema conhecido como “rachadinha”. Ademais, acrescente-se o caso que recentemente veio à tona do balcão de propinas a pastores montada no Ministério da Educação (MEC), o que levou à prisão de seu ex-ministro em operação policial.
Segunda, porque eventos significativos, tanto nacionais, quanto internacionais, influenciarão os discursos da oposição. Esse é o caso da Pandemia da COVID-19, da demora e negação do presidente em estimular a população a se vacinar, e do cenário econômico – cuja proposta de seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, de fazer a “economia decolar” nunca saiu do discurso. Jornalistas de bastidores já dizem que a figura de Guedes não irá aparecer na campanha para evitar maiores índices de rejeição ao presidente, que de acordo com as últimas pesquisas de opinião, em diversos institutos, são consideravelmente altos.
Nessa direção, pode-se afirmar que a vida do eleitor de classe baixa e média piorou, e muito! E a avaliação que se pode fazer é que até outubro dificilmente o cenário de inflação generalizada e desemprego irá se reverter. O tema principal desta eleição, portanto, caminha para ser o econômico. Lula (PT) e Ciro Gomes (PDT), principais concorrentes de oposição, sabem disso e já estão explorando essa linguagem em seus discursos pré-campanha.
A Bolsonaro, que não tem defesa contra quase quatro anos desastrosos de política econômica, resta fugir pela tangente, apelando para discursos que levantam desconfiança sobre o sistema eleitoral e de ataque às Instituições, como ao Supremo Tribunal Federal (STF), na tentativa de mudar o foco e colocar em jogo a própria democracia no pleito deste ano. Observar e conter esse tipo de discurso deveria ser atitude mister dos demais poderes. Contudo, em política você não briga contra os fatos, a realidade sempre se impõe. E, neste caso, a realidade é vivenciada por quem está na ponta desse processo, ou seja, o próprio eleitor.
E quanto às condições das forças políticas, como estão configuradas para este pleito? Após quatro décadas da retomada do pluripartidarismo e do início da chamada Nova República, as eleições gerais de 2022 aprofundarão o processo de reorganização do sistema partidário num contexto de reformulação da vida republicana. Chamamos atenção para três aspectos relacionados às condições das forças políticas que se enfrentarão nessas disputas que vão nessa direção.
Primeiro, embora haja a continuidade do padrão bipartidário anterior das eleições presidenciais, de 1994 a 2018, o campo da esquerda, hegemonizada historicamente pelo PT, se mantém forte na disputa nacional, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na liderança e, hoje, com mais chance de vitória. A frente partidária, composta até então pelo PSOL, PCdoB, PSB, REDE, PV e Solidariedade, tem atraído o apoio de políticos filiados a partidos de diferentes matizes ideológicos, impactando tanto o desempenho de terceiras vias quanto garantindo estratégias de montagem de chapas para os demais cargos em disputa e de palanques estaduais para a disputa presidencial.
Segundo, desde 2018, o até então principal representante da centro-direita, o PSDB, adversário do campo progressista até 2014, vê sua trajetória marcada por forte declínio, a ponto de não apresentar, pela primeira vez desde que foi criado, em 1988, candidato à disputa presidencial nestas eleições. Com isso, aumentam as chances dos peessedebistas regredir ainda mais, tornando-se mais um partido pequeno, com pouca representação no legislativo, haja visto seu fraco desempenho já alcançado em 2018 para outros cargos eletivos.
Terceiro, o lugar do PSDB na disputa presidencial, desde 2018, foi assumido pela direita conservadora e fisiológica, em que à frente está o presidente Jair Bolsonaro, que conseguiu capitalizar o sentimento não só antipetista, mas de antipolítica, e face pública do informal “partido militar”. Esse campo tem como base partidária o PL, PP e Republicanos, mas atrai políticos de vários outros partidos dos campos da direita e do centro-direita desde as eleições municipais de 2020, cujo ápice do movimento de fortalecimento desses partidos se deu com a migração partidária ocorrida com a “janela partidária” em março do corrente ano. A janela partidária permite que deputados federais e estaduais mudem de partido sem correr o risco de perder o mandato. Com essas mudanças, o PL se tornou a maior bancada da casa, com 78 deputados. É mais que o dobro do que o partido tinha na época da posse, quando contava com 33 deputados. Grande parte dos novos deputados do PL são dissidentes do União Brasil, partido criado com a fusão do PSL e DEM. Antes da janela partidária, o União contava com 81 deputados, mas agora está com 48, atrás do PT (com 56) e PP (52) e empatado com o PSD, também com 48. Outro partido que cresceu foi o Republicanos, com 41. Desde então, esse campo bolsonarista passou a contar com 171 deputados federais.
Ao mesmo tempo, é perceptível o enfraquecimento paulatino de partidos tradicionais da direita e do centro-democrático, especialmente do PSDB e MDB, situação que poderá se agravar tendo em vista o cenário desafiador destas eleições. Nesse contexto de reorganização do sistema partidário, com a centro-direita do espectro político brasileiro se desmanchando, quais forças ocuparão esse espaço com capacidade de serem fiadores novamente da condução da estabilidade do regime democrático? Essa é uma das questões primordiais que os resultados destas eleições poderão nos indicar. E, assim, nos afastar do mesmo fim da república de 1946, quando, segundo Hippólito (1985), com o enfraquecimento do PSD houve o enfraquecimento daquela experiência competitiva, e consequentemente, com o desaparecimento daquele partido veio o fim daquele regime democrático.
Além do cenário eleitoral polarizado, uma motivação para mudança de legenda foi a cláusula de desempenho que passou a vigorar em 2019 para candidatos e partidos. Nas eleições de 2018, 30 partidos elegeram representantes para a Câmara dos Deputados. Com a fusão recente e outras incorporações e trocas de legenda, o número de siglas caiu para 23. Essa alteração institucional, conjugada com outras resultantes das reformas eleitorais ocorridas nos últimos anos, se somam às preocupações de dirigentes e candidatos para sobreviverem neste processo eleitoral.
Mas, especialmente nestas eleições, há uma “anomalia externa” à arena político-partidária que vem afetando o comportamento de atores institucionais, políticos e sociais. Este pleito terá como um de seus atores centrais os militares, com forte presença atualmente, e que ganharam relativa força a partir de 2018. O presidente tem origem militar e seu vice, tanto nas eleições de 2018 como deste ano, é um general.
Talvez como consequência, na gestão Bolsonaro houve significativo aumento da ocupação de cargos civis (e de chefia) por parte deste segmento, como aponta estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA (SCHMIDT, 2022). Essa militarização da burocracia pode ser analisada de duas maneiras. Primeiro, diferentemente do que se supunha, após o processo de redemocratização, o papel dos militares na vida civil não está delimitado. Na atual conjuntura, o ápice dessa circunstância pode ser apontado com a nomeação do General da ativa, Eduardo Pazuello, para o cargo de Ministro da Saúde, em um dos momentos mais cruciais da Pandemia da COVID-19 no Brasil. A nomeação do referido General foi estratégica, com o intuito de satisfazer aos desmandos do presidente Jair Bolsonaro que, contrariando todas as evidências científicas, insistia em medicamentos comprovadamente ineficazes, fato que levou à queda de dois ministros anteriores (Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich). Segundo, com o aumento relativo de poder nas esferas civis, surge a seguinte questão: os militares estão comprometidos com o processo democrático e vão respeitar o resultado das urnas, seja ele qual for? Se a questão está sendo posta é porque minimamente ventila-se a possibilidade do oposto.
Ainda observando a participação dos militares na política, um fato mais grave tem suscitado essa questão: a relação entre as Forças Armadas e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Diante das suspeitas constantes levantadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao pleito eleitoral de 2022, temendo a (forte) possibilidade de derrota, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, que em agosto do ano passado (2021) era o presidente do TSE, fez convite às Forças Armadas para participarem de uma Comissão de Transparência com o intuito de mostrar que o processo é seguro e lícito e quem sabe dessa forma diminuir a retórica de fraude. Entretanto, a avaliação que pode ser feita a três meses da eleição é que esse foi um erro grave.
Longe de participarem para tirar qualquer dúvida sobre as eleições, as Forças Armadas estão a fazer coro ao tom golpista do presidente, com questões sobre o pleito que partem de premissas equivocadas e baseadas em fake news, como a insistente fala de que há uma suposta “sala secreta” em que são contabilizados os votos. O TSE deixou claro que essa sala não existe, acatou sugestões dos militares e apontou falhas em questionamentos realizados pelas Forças Armadas.
A análise que pode ser feita desse episódio e que coaduna com as duas colocações anteriores é que é preciso deixar claro (ainda?!) que as Forças Armadas não são um poder da República. Não são um poder moderador. Não estão na mesma “patente” para discutir com STF e demais poderes. Isso implica que elas não devem ser chamadas para discutir assuntos eleitorais, tudo o que os militares não entendem (durante 21 anos de governo militar no Brasil não houve eleições presidenciais).
A premissa das Forças Armadas é completamente diferente dos princípios da democracia. Esta se fundamenta na horizontalidade das relações, cujo pressuposto é a igualdade e o debate para a formação de consenso. Os militares, ao contrário, fundamentam suas instituições em hierarquia e disciplina, em que um manda e o outro obedece. Em quê os militares podem contribuir, portanto, ao aperfeiçoamento da democracia?
A partir do exposto em relação ao cenário e às condições das forças políticas, defende-se, à guisa de conclusão, que o que está em jogo no pleito eleitoral deste ano é a própria democracia liberal brasileira. No momento em que se tem discursos de ataques constante à autonomia dos demais poderes, cujo dever é garantir a estabilidade do sistema de freios e contrapesos, um processo de deinstitucionalização das forças armadas, o apelo à descredibilização do sistema eleitoral e partidário, que são esferas basilares da representação nas sociedades modernas, e de ódio e eliminação à oposição, é preciso que instâncias de poder e da sociedade civil sejam alertadas e forças democráticas ocupem os espaços que, momentaneamente e passageiramente (assim espera-se) estão ocupados por aqueles que odeiam qualquer forma de igualdade, princípio basilar da democracia.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
HIPPOLITO, Lucia. PSD. De Raposas e Reformistas. Paz e Terra, 1985.
SCHMIDT, Flávia de Holanda. Nota Técnica: Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal. Ed. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Brasília, 2022.
[1] Coordenadora do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política e do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-americanos (NEPPLA) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da UFSCar e membro do NEPPLA/UFSCar.
Fonte Imagética: PL alcança a maior bancada na Câmara Federal, OCP News (Créditos: Divulgação/Portal PL). Disponível em <https://ocp.news/colunista/aurea-colunista/pl-alcanca-a-maior-bancada-na-camara-federal>. Acesso em 11 jul 2022.