Gustavo Frota Lima e Silva[1]
The past is never dead. It’s not even past.
William Faulkner
De minha parte, eu prefiro utilizar os escritores de quem gosto. O único tributo válido para um pensamento como o de Nietzsche é, precisamente, utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo gemer, protestar. E o fato de que os comentadores queiram, digamos, avaliar se estou sendo fiel ou infiel a Nietzsche não possui interesse algum (FOUCAULT, 1980, p. 53-54).
Esse trecho de uma entrevista concedida por Michel Foucault nos anos 1970 é frequentemente invocado por aqueles que desejam se utilizar dos arquivos do pensamento político clássico, moderno e contemporâneo para o desenvolvimento de uma crítica social do tempo presente[2]. Os textos do passado, segundo uma conhecida metáfora, poderiam ser mobilizados como uma “caixa de ferramentas”, de modo que conceitos, análises e métodos seriam presentemente mobilizados, ainda que apartados de seu contexto e até mesmo de seu sentido original. É interessante pontuar, entretanto, que tal figuração da entrevista de Foucault depende, ela mesma, de um exercício radical de descontextualização.
A fala do filósofo configura, de fato, uma resposta a uma intervenção do entrevistador, que pedia que Foucault comentasse se a influência de Nietzsche na filosofia francesa contemporânea (a entrevista foi originalmente publicada em 1975) representaria o início do eclipse do pensamento marxista no país. Foucault responde, inicialmente, que costumava organizar cursos em torno do pensamento nietzschiano, embora preferisse não mais fazê-lo naquele momento:
A presença de Nietzsche no cenário contemporâneo possui importância crescente. Mas, estou cansado de vê-lo ser estudado para que se produzam o mesmo tipo de comentários que se escrevem sobre Hegel ou Mallarmé. De minha parte, prefiro utilizar… (FOUCAULT, 1980, p. 53).
Há aqui o reconhecimento de que haveria algo no pensamento de Nietzsche, em oposição ao de Hegel ou Mallarmé, que faz com que o único tributo válido que possamos prestar àquele filósofo seja colocar seu pensamento para agir sobre o presente. Nesse sentido, a mera composição de comentários filosóficos que buscassem restituir as intenções, o contexto ou o sentido original dos aforismas nietzschianos, ainda que possam configurar um exercício estimulante, produziria, paradoxalmente, um efeito contrário ao espírito destes escritos. Em outras palavras, aquele que tentasse ser o mais fiel possível à letra do texto se tornaria o pensador mais infiel de todos relativamente a seu objeto.
Essa tendência ao monumentalismo ou, para utilizar o termo mobilizado por Ricardo Silva (2010), ao antiquarismo, foi frequentemente imputada à metodologia defendida por aquele que é considerado a figura central da chamada Escola de Cambridge: Quentin Skinner. Para Skinner, afinal, o estudo das ideias do passado depende de uma reconstituição apurada do contexto linguístico e normativo em que os autores que as avançaram estavam inseridos. Segundo ele, a tentação “presentista” de se retirar diretamente do arquivo do pensamento político as soluções para os problemas de nossos dias estabeleceria um duplo problema: teórico, no sentido de figurar o anacronismo radical que considera as ideias políticas tal qual lições intemporais, ou seja, como “caixa de ferramentas”; e moral, no sentido de constituir, por excelência, a evasão da tarefa de engendrarmos as soluções para os dilemas políticos de nosso tempo ou, nas palavras de Skinner, “de aprender a pensar por nós mesmos” (SKINNER, 2017, p. 397).
Segundo alguns de seus críticos, o compromisso deste autor com essa reconstituição tornaria o exercício da filosofia política, em última instância, conservador. Perderíamos, seguindo a metodologia de Skinner, a dimensão crítica do acesso ao arquivo das ideias políticas do passado: sem aplicação presente, elas estariam expostas tais quais peças de um museu, restos de uma época com interesse estético trivial relativamente aos nossos dias.
Não configura o objetivo do presente texto uma investigação pormenorizada da justeza de tais críticas ou do modo como Skinner procurou rebatê-las ao longo de sua carreira – o artigo de Silva (2010) dedica-se, dentre outras, a essa tarefa. Alternativamente, proponho partir do estilo polemista de Significado e Interpretação na História das Ideias (SKINNER, 2017) para retornar, especulativamente, à questão da mobilização crítica no presente e contra o presente de argumentos políticos do passado: de que modo eles podem iluminar aspectos do presente para que possamos utilizá-los em nossos próprios projetos, ou seja, que trabalho crítico esses textos podem desempenhar conosco e para nós?
Para tanto, proponho que, após uma reconstrução, em linhas muito gerais, dos questionamentos que surgem a partir da proposta skinneriana de contextualismo linguístico (I), passemos à consideração da intervenção de Wendy Brown (1997) no debate norte-americano acerca da politização de identidades no âmbito do discurso jurídico (II). Essa intervenção configura um locus especialmente interessante para se perguntar acerca do agenciamento diacrônico de argumentos políticos, já que Brown estabelece um juízo acerca das propostas de Patricia Williams (1995) e Catherine MacKinnon (1991) de apropriação da crítica do direito presente em Sobre a Questão Judaica (MARX, 2010), além de propor uma maneira própria de mobilizar este texto para pensar o momento presente. Por fim, faço uma breve avaliação da proposta crítica de Brown à luz da noção de “presentismo”, refigurando a questão sobre o que torna, afinal, uma determinada leitura coerente com as “intenções” de textos e autores do passado (III).
Mitologia, História, Verdade e Método: a política do contextualismo linguístico
A partir dos anos 1960, Quentin Skinner passou a publicar uma série de textos em que criou e expôs seu método de investigação histórico-filosófica, especialmente em contraposição às práticas correntes do campo da História das Ideias no mundo anglo-saxão. De modo geral, pode-se dizer que o alvo preferencial do autor eram aqueles pensadores que tomavam o arquivo do pensamento político como fonte de “verdades intemporais”, ou seja, que consideravam as grandes ideias em nível abstrato-filosófico, retiradas de seu contexto de origem. Skinner reúne uma série de pensadores que seriam representantes de tal abordagem sob o rótulo de “textualistas”. Tais pensadores operariam de acordo com um procedimento segundo o qual o texto possuiria caráter autônomo relativamente ao contexto de vida do pensador que o escreveu, sendo expressão de uma “sabedoria intemporal” na forma de “ideias universais” sobre cada um dos “conceitos fundamentais” e “questões permanentes sobre moral, política, religião e vida social” (SKINNER, 2017, p. 359).
Skinner descreve os efeitos desse procedimento sobre o estudo dos textos clássicos por meio da figura retórica da “mitologia” (SILVA, 2010). De fato, Skinner busca marcar discursivamente uma distância entre a prática fática dos historiadores das ideias (a produção de mitologias) e a prática de “genuínos” historiadores. Se a História Intelectual, até aquele momento, havia produzido uma série de mitologias (da doutrina, da coerência, da prolepse, do paroquialismo), era necessário criar um método legitimamente histórico, e não apenas filosófico.
O efeito retórico da provocação seria posteriormente denegado pelo autor em face de seus críticos. Se em Significado e Interpretação cria-se uma equivalência tácita entre “mitologia” e “mentira”, e “História” e “verdade”, Skinner pontua em escritos subsequentes que nosso acesso ao real é sempre eivado por escolhas teórico-metodológicas. O critério de fidelidade do historiador das ideias em relação a seu objeto não pode, assim, estar simplesmente baseado em um critério positivo-objetivista de verdade, já que a suposição epistemológica de um acesso a “fatos puros” por parte do historiador configura uma falha teórica ou, poderíamos dizer, utilizando-nos do jogo retórico do autor, uma mitologia da transparência. As percepções que temos das coisas são, em última análise, interpretações (SKINNER, 2002, introdução).
A metodologia de Skinner, assim, não está baseada em uma maior fidelidade aos fatos em si, mas a uma noção particular de intencionalidade autoral. Essa, por sua vez, apoia-se em uma apropriação da teoria dos atos de fala de J. L. Austin que determina a necessidade de reconstrução do contexto linguístico, e não apenas sociológico, em que estão inseridos os textos e autores que configuram o objeto de estudo do/a pesquisador/a. Há, na proposta de Skinner, uma ênfase conferida à dimensão ilocucionária dos atos de fala, ou seja, àquela relativa ao que um determinado agente está fazendo ao dizer (in saying) algo. É nessa dimensão que reside a potência de um texto enquanto ação, o que, segundo a recepção skinneriana de Austin, estabelece uma relação de identidade com a intenção de um agente ao dizer algo em determinado contexto de convenções linguísticas.
Caberia ao/à pesquisador/a, portanto, uma reconstituição desse contexto baseada em uma história das ideologias, o que, para Skinner, em oposição à aposta marxiana de tomar esse termo como figura da falsa consciência, significa uma investigação e explicitação das funções desempenhadas pelas ideias no sentido da legitimação de instituições e práticas políticas. O que importaria, assim, seria o modo como as ideias se vinculam e se tornam condições de possibilidade para as posições práticas dos agentes no âmbito das disputas políticas de uma época.
Ainda que Skinner busque afastar sua noção de intencionalidade de uma hermenêutica romântica que identifica a intenção autoral a uma espécie de “mergulho na mens auctoris do passado” (SILVA, 2010, p. 309), permanece, ao menos em seus escritos da década de 1960, atrelado a uma ideia forte de autoralidade. Assim, ainda que não endosse uma antropologia filosófica idealista e conceda que a própria razão é fruto de uma série de processos históricos descontínuos (em oposição à concepção progressista de “aprendizado” endossada por Habermas), dá a impressão de operar segundo uma noção de autonomia subjetiva, ainda que contextualizada. Daí a tendência, identificada por alguns críticos (i.e. GRAHAM, 1988), da relação de identidade estabelecida por Skinner entre intenção e ato ilocucionários.
Não obstante, se seguirmos as indicações de Skinner, temos que a escolha por um método de investigação que permita certo acesso aos significados de conceitos e textos do passado não depende exclusivamente de critérios epistemológicos, configurando, em última análise, uma tomada de partido política. Assim, Skinner busca defender sua posição relativamente às acusações de antiquarismo, destacando os aspectos críticos de seu empreendimento histórico.
Em primeiro lugar, temos o fato de que o estudo do passado pela via do contextualismo histórico enfatiza a natureza contingente das crenças atuais. Afastada a noção de aprendizado e teleologia, a abordagem skinneriana representa as ideias do presente não como coroamento de um processo racional de desenvolvimento ideológico, mas como consequências de disputas ideológicas que poderiam ter conduzido a outros caminhos. O elemento crítico residiria justamente na figuração de tal descontinuidade, ou seja, no fato de que as nossas ideias poderiam (e podem) ser diferentes do que são.
De maneira geral, percebemos que a mobilização dos textos do passado que segue tal procedimento pode ter efeito crítico apenas indireto no presente, já que não se pretende recuperar um tipo de conhecimento substantivo transtemporal, que tenha permanecido vivo apesar das mudanças experimentadas pelas sociedades. Trata-se, alternativamente, de uma expansão das capacidades cognitivas críticas e analíticas que advém da percepção da instabilidade ontológica dos regimes ideológicos. Assim, relativamente à crítica social contemporânea, o efeito dessa abordagem de história das ideias atua a contrapelo, como “carta de alforria para a imaginação que deve deixar ao passado os seus termos e partir para uma inovação conceitual adequada aos problemas ‘locais’ do tempo presente” (JASMIN, 2005, p. 30).
Ainda que Skinner tenha sucesso em destacar os elementos críticos de seu projeto, parece, de fato, que, em sua abordagem, o trabalho crítico que os textos do passado podem desempenhar ao ser mobilizados pela crítica social contemporânea é bastante indireto. Além disso, a noção de fidelidade relativa a esses escritos e seus autores parece repousar sobre uma noção de intencionalidade situada e da própria reconstrução linguístico-contextual defendida como procedimento pelo autor. Mas não seria o caso, como afirmava Foucault relativamente a Nietzsche, que existam outras formas de prestar tributo ao passado? Seriam o anacronismo e o “presentismo” sempre “mitologias filosóficas” ou poderiam representar, se feitos criticamente, uma maneira “fiel” de mobilização do arquivo do pensamento político? Uma análise da mobilização crítica que Wendy Brown faz da obra do jovem Marx para intervir no debate norte-americano da década de 1990 em torno da questão das identidades no discurso do direito pode servir como ponto de partida para que elaboremos esse questionamento.
A crítica do direito de Wendy Brown: com Marx e contra Marx
A teoria crítica da década de 1990 caracterizou-se, especialmente em contexto norte-americano, por uma produção político-conceitual que buscou responder às questões levantadas pelo fenômeno da “pluralização dos sentidos da emancipação” (MELO, 2013). Os autores e autoras da tradição viram-se confrontados/as a refletir acerca das implicações das demandas de movimentos feministas e antirracistas, bem como daqueles relacionados a expressões não hegemônicas da sexualidade, para a teoria social e a filosofia política. Assim, ganharam destaque pensadores e pensadoras que passaram a abordar a possibilidade da mobilização emancipatória dos direitos por sujeitos que disputam o discurso universalista da teoria jurídica e da teoria política liberal por meio da politização de identidades.
A intervenção de Wendy Brown[3] no debate acerca da força emancipatória da demanda por direitos está atrelada a esse contexto político. Tratava-se, para a autora, de se pensar acerca do valor político dos direitos não necessariamente a partir de sua forma ou de seu conteúdo, mas da proposição de se utilizar deles como instrumento de luta política em favor de identidades que visavam a perturbar a noção humanista de sujeito (BROWN, 1995, p. 96). Brown está interessada em analisar, sob uma perspectiva política, a tensão entre a eficácia social e histórica do discurso político dos direitos.
Ainda que consideremos a gramática dos direitos a partir de uma apreciação genealógica das dinâmicas políticas que lhe deram origem, podemos observar o efeito discursivo que decorre do caráter universal do idioma jurídico: no momento mesmo em que um grupo social conquista direitos, passa a ser representado juridicamente não mais como grupo, mas como indivíduos. É nesse sentido que a inscrição da diferença social, na figura de identidades políticas, no próprio idioma dos direitos representa um desafio à doutrina jurídica liberal.
A posição de Brown é interessante em razão de sua ambiguidade, para além da oposição entre ser “a favor” ou “contra” o direito. É necessário, para ela, refletir a respeito da importância do tempo histórico e do contexto político-cultural para se adjudicar o valor emancipatório do discurso dos direitos, sendo esse o motivo da recusa da autora em asseverar um argumento pró ou contra o direito enquanto tal.
Dessa forma, o argumento de Brown seguirá a partir de uma leitura profícua, informada por motivos foucaultianos, da Questão Judaica de Marx (2010 [1844]). No caso, a autora defende que a melhor maneira de atualização da crítica marxiana dos direitos é a recusa de figurá-los como necessariamente emancipatórios dada a forma com que são politicamente mobilizados. Para tanto, Brown problematiza, nos trabalhos de Patricia Williams e Catharine MacKinnon, o modo de apropriação de Marx partir da noção de “posicionamento” efetuado por estas autoras, promovendo uma recepção própria e politicamente mais nuançada do autor.
Essa contribuição parte, em verdade, de uma leitura particular do jovem Marx de Sobre Questão Judaica. Apreciando criticamente este texto, ao ter em conta o período em que Marx o escreveu, é possível que se estabeleça um paralelo entre a questão da identidade, do discurso dos direitos e da dinâmica política, justamente a partir da crítica da religião. A proposta de Brown é a de atualização da crítica marxiana a partir do diagnóstico da situação política dos Estados Unidos da América. De fato, Marx destaca, nessa obra, as demandas dos judeus por direitos políticos como judeus, e não a partir de um conceito genérico de personalidade jurídica (BROWN, 1995, p. 102).
Dessa forma, o modelo marxiano é produtivo para Brown não por tratar a crítica da religião como pré-condição para a crítica. Pelo contrário: trata-se de se pensar a religião como sintoma do estado de coisas no mundo real. Desse modo, a conexão da crítica da religião com a crítica da política se dá a partir da constatação de que a libertação promovida pela emancipação política, ou seja, pela institucionalização do discurso abstrato do direito, se dá em relação a uma identidade politizada, ou seja, “ao tratamento de uma identidade social particular como a base para privação do sufrágio, direitos ou cidadania. Mas, repete Marx, a emancipação desse obstáculo não liberta o individuo de suas condições constitutivas ou reiterativas da identidade” (BROWN, 1995, p. 105).
A emancipação política, de acordo com Marx, dá-se a partir da criação de entidades abstratas que podem garantir as promessas de liberdade, igualdade e representação. Dessa forma, a passagem para a crítica dos direitos, em Marx, opera a partir do posicionamento dessa categoria como manifestação específica de determinada formação do sujeito no âmbito da sociedade burguesa. Segundo Brown, “essa crítica não condena, mas expõe a maneira como os direitos nos restringem, ao invés de emancipar-nos, dos poderes e formações sociais que são condições de nossa ausência de liberdade” (BROWN, 1995, p. 110). A abstração denunciada por Marx aponta que os direitos serão dados à própria figuração subjetiva fictícia por eles criada, como se todos fossem indivíduos soberanos e isolados na sociedade burguesa.
Tendo isso em vista, Brown retoma o seu ponto inicial, qual seja, a apreciação crítica da mobilização do discurso dos direitos em consonância à politização contemporânea de identidades. A crítica de Marx a respeito da natureza dos direitos, segundo Brown, não é nem moral nem ontológica, mas aponta e historiciza o fato de que a emergência dos direitos do homem naturaliza poderes sociais que colocam um indivíduo contra o outro no âmbito da sociedade civil. O tipo de liberdade que o discurso liberal burguês dá como natural, é, em verdade, o efeito dos elementos especificamente históricos e constitutivos da vida na sociedade burguesa (BROWN, 1995, p. 113).
Assim, para uma perspectiva contemporânea, há dois desafios para se pensar a relação entre direitos e políticas de identidade: se o direito é um afastamento do político, no sentido de despolitizar a existência social desigual dos indivíduos, como tais direitos podem avançar a luta pela transformação dos próprios determinantes da identidade, entendida como posição frente às estruturas de estratificação? Podem os direitos nos libertar das relações de classe, gênero, sexualidade ou raça, ou eles operam apenas como reconhecimento formal de tais elementos como politicamente irrelevantes? De que forma é possível realizar o projeto da emancipação política das condições das quais os direitos devem nos proteger? De que forma as dimensões universalistas dos direitos podem ser contestadas, ao mesmo em que grupos historicamente oprimidos buscam proteção sob seus auspícios (BROWN, 1995, p. 115)?
Para Marx, o caráter abstrato do discurso dos direitos determina que os poderes sociais, tais como classe e gênero, tornam-se irrelevantes para o reconhecimento de um indivíduo como cidadão. O caráter despolitizante do direito advém justamente dessa naturalização ideológica, que figura as desigualdades sociais como meras diferenças no âmbito da sociedade civil.
Nesse ponto, a argumentação afasta-se em parte do argumento marxiano. Trata-se de pensar a crítica dos direitos avançada pelo autor sem se comprometer com sua teoria da revolução, ou seja, negando a perspectiva teleológica que informa sua filosofia da História, segundo a qual haveria uma superação da sociedade burguesa a partir de uma nova forma de cooperação entre os indivíduos. Alternativamente, Brown avança uma perspectiva foucaultiana , baseada em “análises genealógicas de regimes selecionados de verdade, que não demandam abrangência espacial ou temporal” (BROWN, 1995, p. 117).
Se a perspectiva de Foucault abre espaço para uma ampliação do campo da política, por meio do esvaziamento de narrativas totalizantes, há uma perda de espaço para uma noção mais abrangente de emancipação. Além disso, em relação aos processos de subjetivação e produção de identidades políticas, a abordagem foucaultiana complica a presunção marxista de sujeitos subordinados ou excluídos que buscam um lugar em conformações universais de personalidade. Em verdade, o colapso da historiografia progressista deixa transparecer que as lutas por emancipação política podem advir não apenas da estratificação da sociedade civil, mas de modalidades disciplinares de poder que produzem sujeitos e identidades administrados pelas próprias aspirações por direitos por eles demandadas.
É nesse sentido que a autora defende que a crítica dos direitos de Marx deve funcionar, em uma era de proliferação das identidades politizadas, como um aviso contra a identificação do domínio dos direitos com o da contestação política: “direitos não devem ser confundidos com a igualdade e nem o reconhecimento jurídico com a emancipação” (BROWN, 1995, p. 133).
Sobre esse ponto, a proposta de Brown é especificamente produtiva. A autora aposta na necessidade de se interpretar o valor do discurso dos direitos em um processo político radical não como afirmação da diferença ou como garantia de sua proteção, nem mesmo como um remédio contra a injustiça, mas como um “imaginário igualitário fictício que esse discurso pode engendrar” (BROWN, 1995, p. 133). Afinal de contas, se levarmos em conta o efeito paradoxal de que a articulação dos determinantes subordinantes das identidades à gramática dos direitos pode servir como elemento disciplinar de regulação, e não como veículo de emancipação, temos que a eficácia política do discurso jurídico ganha potência justamente em seu esvaziamento de conteúdo específico, na medida que pode operar como crítica, e não refiguração do status quo.
Em busca de um método: passado, presente e futuro
A reconstrução aqui empreendida da intervenção de Brown neste debate específico sobre a juridificação de identidades politizadas faz transparecer uma série de questões metodológicas discutidas na parte I deste texto. É interessante notar, por exemplo, que a própria figuração desta reconstrução demandou um certo cuidado de enraizamento do texto de Brown no contexto social e até mesmo “linguístico” em que foi publicado. Ainda que não estejamos lidando com o passado longínquo, esse cuidado foi necessário para que se explicitassem os termos em disputa (identidade, privacidade, politização, despolitização, posicionamento) e as questões sociais a que as pensadoras envolvidas na querela reagiam e buscavam transformar. Ainda que tal procedimento tenha sido feito de forma mínima e sem a mobilização de recursos históricos técnicos, penso que tornou a apreciação de certas questões mais evidente.
Gostaria de discutir brevemente, entretanto, a maneira como Brown mobiliza a obra marxiana. Trata-se do procedimento crítico de atualização, ou seja, da explicitação do contexto e das condicionantes sociais de surgimento do arsenal conceitual e argumentativo em questão, seguido de uma reconsideração de tal arsenal frente às configurações contemporâneas das estruturas e regimes de opressão e dominação. Por certo, esse procedimento exige dos textos do passado um trabalho crítico notoriamente maior do que aqueles previstos por Skinner, quais sejam, a expansão da capacidade cognitiva e a liberação da imaginação teórico-política. Ademais, esse procedimento envolve, invariavelmente certa noção de “presentismo”, ao menos no sentido de que buscamos no arquivo filosófico ferramentas de análise para a situação presente.
Entretanto, essa mesma metáfora da caixa de ferramentas começa a parecer profundamente inadequada, uma vez que passamos pela difícil tarefa de atualização e presentificação do material crítico do passado. De fato, a metáfora representa o exato oposto do trabalho envolvido em tornar os textos do passado potentes para uma análise e transformação do presente: assume que os textos e conceitos estejam prontos para nossa utilização, mascarando o fato de que é por meio da leitura, releitura e contextualização do arsenal teórico que criamos essas ferramentas. Os leitores críticos engendram as ferramentas de que dispõem, e o fazem a cada nova interpretação dos textos do passado e das condições de dominação no presente.
Talvez, como propusera Foucault, exista um elemento em determinados autores que faz com que se prestem, mais do que outros, a esse tipo de mobilização. Não se trata, evidentemente, da enunciação, por parte deles, de uma verdade intemporal, mas de uma postura ética e política frente a certas condicionantes da vida humana que se mantém como conteúdo vivo, explosivo, ainda que não pronto para a mobilização presente, e sempre passível de novas interpretações.
De fato, se acreditarmos, com Skinner, que o acesso ao passado é sempre mediado, é certo que tal acesso exige uma postura epistemológica, política e, em se tratando de certos autores, também ética e crítica. Nesse sentido, a fidelidade ao sentido de um texto pode assumir um caráter bastante diferente daquele preconizado pelo contextualismo linguístico, e, ainda assim, ser válido. Trata-se, justamente, da fidelidade ética à ambição crítica e emancipatória do material original.
* Este texto não representa, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
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[1] Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: gustavolimaesilva@gmail.com
[2] As reflexões iniciais aqui apresentadas foram livremente inspiradas pela intervenção de Amy Allen em um colóquio organizado por Bernard Harcourt na Universidade de Columbia: Critique 1/13 –– in search of a method. A íntegra da discussão está disponível em http://blogs.law.columbia.edu/critique1313/1-13/
[3] A reconstrução dos argumentos de Brown esboçada nesta seção é uma versão bastante reduzida de um artigo que produzi em coautoria com Felipe Chieregato Gretschischkin para um dossiê especial da revista Direito e Práxis acerca dos Critical Legal Studies. Para a versão completa, consultar (GRETSCHISCHKIN; LIMA E SILVA, 2021).
Fonte Imagética: McGill University. 2015 Beaverbrook Annual Lecture – Wendy Brown, “Neoliberalism contra democracy: ten theses”. 13 out. 2015. Disponível em: <https://www.mcgill.ca/ahcs/channels/event/2015-beaverbrook-annual-lecture-wendy-brown-neoliberalism-contra-democracy-ten-theses-255258>. Acesso em: 17 dez. 2022.