Osnan Silva de Souza[1]
6 de agosto de 2025
Em mais um episódio da campanha para articular ataques às instituições brasileiras e à própria soberania nacional, Eduardo Bolsonaro expressou-se da seguinte maneira: “Não. Presidente Donald Trump não jogou uma bomba nuclear no Brasil — ainda”. Em termos semelhantes, posicionou-se o seu irmão, Flávio Bolsonaro, alertando para que o país se curvasse perante as chantagens norte-americanas e da família Bolsonaro:
“Todos nós temos orgulho de ser brasileiros, mas como é que se resolve essa situação? Se você olhar para a Segunda Guerra Mundial, o que os Estados Unidos fizeram com o Japão? Lança uma bomba atômica em Hiroshima para demonstrar força”.
Para esses dois indivíduos, o Brasil deveria acatar imediatamente as imposições estadunidenses, pois as sanções econômicas, jurídicas e administrativas de Trump cairiam no país, sem nenhuma capacidade de resistência ou reação perante a superpotência, como uma bomba nuclear.
Embora sejam metáforas e analogias que evidenciam a perversidade de dois parlamentares, grandes campeões do patriotismo, há nelas um núcleo de eloquência. Uma eloquência histórica e filosófica. Em A Linguagem do Império: léxico da ideologia estadunidense, Domenico Losurdo argumenta que o termo “terrorismo”, frequentemente empregado pela linguagem dominante para caracterizar ações de resistência daqueles que não se alinham aos interesses do Ocidente liberal, sobretudo do seu país-guia, é um fenômeno complexo e multifacetado. Pode se expressar desde o “terrorismo de massa”, passando por ações que tomam a população civil como refém, até embargos e punições coletivas. Essas diferentes categorias podem caminhar muito bem de mãos dadas. Na verdade, em todas essas manifestações de terrorismo, o alvo são os cidadãos.
Quando falamos em “terrorismo de massa”, logo pensamos no morticínio de 11 de setembro de 2001. No entanto, alerta o filósofo italiano, “se por terrorismo de massa entendermos o desencadeamento da violência contra a população civil com o intuito de alcançar determinados objetivos políticos e militares”, precisamos lembrar que “o exemplo mais clamoroso dessa terrível forma de violência foi o aniquilamento nuclear de Hiroshima e Nagasaki”.[2]
Nesse sentido, Flávio Bolsonaro recorre a uma expressão acertada quando se refere à ação dos EUA sobre as cidades japonesas como “demonstração de força”. Voltemos a Losurdo: “a aniquilação da população civil de Hiroshima e Nagasaki visava, mais do que o Japão, que já estava para capitular, a URSS, a quem se lançou uma pesada advertência”. Centenas de civis desarmados são massacrados para aterrorizar o aliado, “já considerado como novo inimigo”.[3] A fala dos dois irmãos nos faz lembrar que o terror é um elemento constitutivo da política externa norte-americana.
Contudo, “o terrorismo pode assumir formas menos radicais”. Na década de 1990, após o fim da aliança com Saddam Hussein, anteriormente incentivada pelos EUA contra o Irã, Washington impôs um “embargo impiedoso” ao Iraque, que castigou de maneira brutal a sua população: “nenhum alívio até que Saddam se vá […]. Não importa o que Saddam esteja disposto a fazer: enquanto ele governar, os Estados Unidos vão vetar qualquer tentativa de aliviar as sanções”. Um povo inteiro é feito refém, para ser ceifado pela fome e por doenças que se tornaram incuráveis devido ao embargo. George H. W. Bush enviou uma mensagem inequívoca a Bagdá: “livre-se de Saddam, ou esqueça que pode extrair petróleo”.[4] Lia-se na Folha de São Paulo, em 1999: “Iraque. Mortalidade infantil cresce mais de 100% após embargo”. As estimativas de mortes de civis durante as sanções variam entre 100 mil e mais de 1,5 milhão, a maioria delas crianças.
Losurdo é categórico: “o embargo é a arma de destruição em massa por excelência”. Imposto ao Iraque sob a alegação de “impedir o acesso de Saddam às armas de destruição em massa”, o embargo “causou mais mortes do que todas as armas de destruição em massa ao longo da história”. Portanto, é como se o país árabe tivesse sofrido simultaneamente os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, os ataques com gás mostarda do exército de Guilherme II e Benito Mussolini, entre outras atrocidades. Assim, conclui-se que “o embargo surge como a arma terrorista por excelência”.
Embora tenha enfatizado o caso dos iraquianos, diversos outros povos foram vitimados pelo horror estadunidense, por meio dos seus embargos e sanções ao longo de décadas. Lembremos da Venezuela: em 2019, durante o primeiro Governo Trump, lia-se no The Washington Post: “Trump intensificou seus esforços para forçar a saída do presidente venezuelano Nicolás Maduro do poder, bloqueando toda a receita americana para a empresa petrolífera nacional”. Na ocasião, almejava-se minar Nicolás Maduro e fortalecer Juan Guaidó. O secretário de Estado, Mike Pompeo, concedeu a Guaidó o controle de certas contas do governo venezuelano no Federal Reserve Bank de Nova York. “Esta certificação ajudará o governo legítimo da Venezuela a proteger esses ativos em benefício do povo venezuelano”, disse Pompeo. Segundo o The Washington Post, “ao privar Maduro de uma fonte crucial de recursos, o governo Trump aumentou drasticamente a pressão sobre seu governo”.
Em entrevista ao The Intercept, o deputado democrata Greg Casar, do Texas, chamou atenção recentemente para os efeitos humanitários perversos das sanções impostas pelos Estados Unidos sobre outros países: “Como podemos culpar os requerentes de asilo que fogem do desespero e da pobreza, se estamos contribuindo exatamente para o desespero e a pobreza de que eles estão tentando fugir?”. Segundo ele, os resultados dessas políticas são frequentemente opostos ao que oficialmente se declara: “No final das contas, o que vimos na prática é que em regra não conseguimos a liberdade de imprensa, as eleições livres e justas e a transparência que demandamos. O que acabamos conseguindo é deixar as pessoas cada dia mais famintas”.
Para Casar, portanto, as ações dos EUA apenas sufocam “a economia de outros países”. No caso específico da Venezuela, as sanções contribuíram para “uma das mais graves contrações econômicas já registradas em tempo de paz, significativamente mais grave do que a Grande Depressão. Em decorrência disso, mais de 7 milhões de venezuelanos foram levados a fugir do país, desencadeando a maior crise de migração do hemisfério ocidental”. Diante desses fatos, tornam-se quase cômicas as análises de Lourival Sant’Anna, colunista da CNN Brasil, alegando que as “medidas dos EUA visam desgastar o regime gradualmente, evitando afetar diretamente a população venezuelana”. Por sinal, trata-se do mesmo o analista que vê “escalada” de Trump contra o Brasil e o governo Lula é a “materialização destrutiva da polarização”.
Desse modo, observamos que embargos e outras medidas econômicas como armas de pressão contra governos, mas que acabam atingindo fatalmente as populações civis, fazem parte da política externa norte-americana. As agressões do governo Trump ao Brasil, sob formas de sanções e ataques às nossas instituições, fazem parte de um histórico de terror da política externa norte-americana. Se é verdade que o momento exige de nós um posicionamento anti-imperialista altivo e atuante, é também necessária muita cautela. Em artigo recente no Brasil 247, Eduardo Guimarães alerta que “o risco de o Brasil capitular é real”. No texto, o autor critica determinado setor da esquerda que viu Trump, Kamala Harris e Joe Biden como “a mesma coisa”. Assim, segue em suas reflexões:
“O Brasil, com seu destemido sistema de Justiça, inspira a humanidade a resistir à maior ameaça surgida nos últimos 100 anos, desde que um pintor austríaco fracassado se converteu em “herói de guerra” e se tornou “chanceler” germânico em 1933, a fim de promover o maior holocausto da história”.
Assim, convoca todo o povo brasileiro a “emprestar seu apoio incondicional” aos ministros do STF, alvos de uma ação direta do governo Trump, pois esses magistrados “constituem a barreira democrática que nos separa do abismo autoritário de triste memória, que olha para nós após tê-lo encarado nas formas hediondas de Donald Trump, Jair Bolsonaro e seus sequazes”.
A despeito das notáveis diferenças entre Trump e Biden, seria um grave equívoco não lembrarmos, por exemplo, que o genocídio do povo palestino foi incondicionalmente apoiado e patrocinado por Joe Biden. No que se refere ao Oriente Médio e ao destino reservado às crianças e mulheres palestinas, é compreensível o posicionamento daqueles que viram a permanência dos democratas e o retorno dos republicanos como “a mesma coisa”. Embora os historiadores não sejam bons em prever o futuro, não é preciso muito esforço para vislumbrar que Harris daria prosseguimento à aniquilação de Gaza.
Em segundo lugar, não há dúvidas de que Donald Trump é uma ameaça ao campo democrático e um desafio para aqueles que se posicionam contra o imperialismo e o colonialismo. No entanto, colocá-lo como a maior ameaça do planeta desde o hitlerismo não é apenas um recalcamento e atropelamento da História, mas também acaba por ignorar o sofrimento e a resistência de diversos povos frente ao imperialismo na Ásia e África, por exemplo. Lembremos, em primeiro lugar, que as políticas internas dos Estados Unidos – mais precisamente o modo como os negros eram tratados pelo regime da White Supremacy – inspiraram o Terceiro Reich. Hitler não foi uma mutação na história do Ocidente, mas filho do pensamento racial e do colonialismo europeu. Ademais, mesmo após a queda do hitlerismo, regimes de segregação racial perduraram nos EUA, e o Ocidente continuou responsável por campos de extermínio em países do continente africano, como no caso dos campos britânicos estabelecidos durante a repressão à Rebelião Mau Mau, no Quênia. Podemos também mencionar os massacres promovidos pelos Estados Unidos no Vietnã e o bombardeio que destruiu quase totalmente as cidades da Coreia do Norte.[5]
Por fim, penso que seja problemático atribuir exclusivamente aos ministros do Supremo Tribunal Federalo papel de barreira democrática, como fez Eduardo Guimarães. É inegável o papel que alguns magistrados têm desempenhado, bem como o governo federal, em agir diligentemente contra as agressões trumpistas, feitas em coordenação com o bolsonarismo. No entanto, não podemos ignorar o protagonismo empreendido pelos trabalhadores brasileiros que têm dado grande apoio ao governo; estão incansáveis nas redes e marcaram forte presença na Av. Paulista, declarando que a soberania brasileira era algo inegociável. Em entrevista ao Brasil de Fato, José Arbex Jr. foi enfático: “nenhuma resistência ao imperialismo será bem-sucedida, se o povo não entrar em cena (…). Sem a mobilização popular independente, você não enfrenta o imperialismo”.
Para se opor às ações dos EUA é necessário ter em mente que as suas agressões ao Brasil têm um caráter multifacetado, como bem têm observado diversos analistas, indo desde as pretensões políticos e ideológico do Governo Trump, passando pela questão geopolítica do BRICS, aos interesses do grande capital (na figura das Big Techs, por exemplo). As sanções anunciadas contra o Brasil fazem parte de um históricos da política externa norte-americana. Para conseguir concretizar as suas pretensões, derrubar governos não alinhados, ter acesso à recursos ou forçar qualquer tipo de posicionamento de determinado Estado, o imperialismo estadunidense não hesita em fazer a população civil de refém por meio de seus instrumentos econômicos. Estejamos atentos, unidos e organizados no enfrentamento tais agressões.
Referências
AÍDA, Chávez. “Sanções dos EUA estão por trás da crise na Venezuela | Intercept Brasil”, The Intercept Brasil, 6 ago. 2024. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2024/08/06/sancoes-dos-eua-estao-por-tras-da-crise-na-venezuela/. Acesso em 30 jul. 2025.
ALVES, Renato. “Flávio cita bombas atômicas para defender que Lula ceda a Trump”, O Tempo, 11 jul. 2025. Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/congresso/2025/7/11/flavio-cita-bombas-atomicas-contra-o-japao-para-defender-que-o-brasil-ceda-as-exigencias-de-trump. Acesso em 30 jul. 2025.
BRASIL DE FATO. “Tarifa dos EUA: Sem a mobilização popular independente não se enfrenta o imperialismo”, 21 jul. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/js6dHAaCpD8. Acesso em 30 jul. 2025.
FRANZINI, Renato. “IRAQUE
Pesquisa do Unicef indica que restrição influi nas mortes
Mortalidade infantil cresce mais de 100% após embargo”, Folha de São Paulo, 13 ago. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft13089908.htm. Acesso em 30 jul. 2025.
GUIMARÃES, Eduardo. “O risco de o Brasil capitular é real”, Brasil 247, 19 jul. 2025. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/o-risco-de-o-brasil-capitular-e-real. Acesso em 30 jul. 2025.
LOSURDO, Domenico. A Linguagem do Império. Léxico da ideologia estadunidense. São Paulo: Boitempo, 2010.
REIS, Tiago S. Revolta Mau Mau. Jogos de representação no Quênia. São Paulo: Autografia, 2024.
SANT’ANNA, Lourival. “Escalada de Trump contra o Brasil e o governo Lula é a materialização destrutiva da polarização”, Estadão, 19 jul. 2025.
VERENICZ, Marina. “Tarifaço: Eduardo indica boicote a negociações de empresários e sugere mais sanções”, InfoMoney, 16 jul. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/tarifaco-eduardo-indica-boicote-a-negociacoes-de-empresarios-e-sugere-mais-sancoes/. Acesso em 30 jul. 2025.
VISENTINI, Paulo G. F. A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
______. A Revolução Vietnamita. Da libertação nacional ao socialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
YOUNG, Karen; FABIOLA, Anthony; MUFSON, Steven. “Trump administration announces sanctions targeting Venezuela’s oil industry”, The Washington Post, 29 jan. 2019. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/national/health-science/trump-administration-announces-sanctions-targeting-venezuelas-oil-industry/2019/01/28/4f4470c2-233a-11e9-90cd-dedb0c92dc17_story.html. Acesso em 30 jul. 2025.
[1] Mestre e Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail para contato: o202916@dac.unicamp.br
[2] Domenico Losurdo. A Linguagem do Império. Léxico da ideologia estadunidense. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 22.
[3] Ibidem., 2010, p. 22.
[4] Ibidem, 2010, p. 23.
[5] Ver, por exemplo: Paulo G. F. Visentini. A Revolução Coreana. O desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 47; Paulo G. F. Visentini. A Revolução Vietnamita. Da libertação nacional ao socialismo.São Paulo: Editora Unesp, 2008. Tiago da Silva dos Reis. Revolta Mau Mau. Jogos de representação no Quênia. São Paulo: Autografia, 2024.