Lucas Baptista[1]
A proposta dos últimos trabalhos de Jessé Souza[2] consiste numa espécie de “aplicação prática” e atualizada de empreitadas intelectuais anteriores. De antemão, o esforço louvável de oferecer argumentos longos e complexos à cidadã ou cidadão de formação média, expressa-se no uso da linguagem menos marcada pelo rigor científico, em favor do texto sintético e palatável ao público não especializado. Como anuncia o autor, a intenção é disponibilizar conhecimento historicamente informado ao “leitor de boa vontade”, na esperança de conscientizá-lo sobre o “cotidiano e as lutas sociais nas quais ele mesmo se encontra inserido sem saber” – já que é sistematicamente manipulado ou feito de tolo pela retórica elitista–midiática da corrupção.
Tal pretensão de esclarecimento, viabilizada pela condição de possuidor e produtor de conhecimento acadêmico, vai além do mero exercício da atividade profissional. Jessé Souza, ao mobilizar a “razão” para tentar intervir na realidade, converte-se em intelectual público: transformando as ideias em “armas de combate” para tratar questões que afetam diretamente a consciência que a sociedade – a classe média, em especial – tem de si mesma. Afinal, se milhares de brasileiras e brasileiros foram feitos de tolos até hoje, é preciso remontar as origens dessa tolice para estabelecer as possíveis conexões entre o “Brasil da Escravidão” e o “Brasil da Lava-Jato”. O objetivo deste curto ensaio é fornecer algumas pistas ao leitor interessado em traçar o percurso argumentativo em tela, servindo de apoio à leitura (indispensável) do texto original.
Da “ralé” à escravidão
Há quase vinte anos, Jessé Souza tem refletido sobre o processo de “modernização na periferia” do capitalismo, no empenho teórico e empírico de compreender a realidade das classes sociais no Brasil contemporâneo. Sabe-se que enfrentar este tema é ter uma “batata quente” em mãos. Primeiro, porque a própria Sociologia está umbilicalmente ligada ao surgimento histórico das classes modernas na Europa do século XIX. Depois, pela existência de uma inteligência nacional que, em diferentes momentos e sob matizes diversas, também tratou de interpretar a formação da sociedade moderna (ou de classes) brasileira. Para segurar essa “batata”, Jessé convida o leitor a esquecer tudo aquilo que ouviu ou leu sobre o que são classes sociais”, lançando mão do conceito de “ralé” como guia para pensar a conjuntura atual. É verdade que esse conceito foi posto em cena antes,[3] mas agora torna-se, digamos assim, o coração da crítica à inteligência e/ou da manipulação midiática das ideias fornecidas por ela.
Em contraponto aos critérios econômico-financistas, que tendem a reduzir as classes sociais à mera existência de faixas desiguais de renda, dois pressupostos teóricos principais informam a noção de “ralé”: 1) a percepção de alguns sentimentos individuais, como a consciência da autenticidade e dignidade pessoal, é configurada por pré-condições éticas e morais que afetam a visão que temos de nós mesmos; 2) para além do capital econômico, esta hierarquia moral é fermentada no processo de apropriação diferenciada do “capital cultural”, distinguindo as pessoas pelo modo que se vestem, pelo que leem, como festejam, como comem, como falam, etc. De acordo com Pierre Bourdieu, essas hierarquias, invisíveis a olho nu, são perpetuadas por relações de casamentos e amizades. Ao longo do tempo, este processo cria sentimentos de identidade e/ou desprezo, tendendo a dividir o mundo social entre aqueles seres com “espírito” e superiores; daqueles animalizados e inferiores. Nesta escala, a “ralé” ocupa o posto mais baixo – sub-humano mesmo – na “linha de dignidade” do Brasil moderno. Essa classe, além de não possuir dinheiro nem conhecimento técnico-escolar, “é desprovida – esse é o aspecto fundamental – das pré-condições sociais, morais e culturais que permitem a apropriação deste capital” (SOUZA, 2018, p.27). Esta “dignidade seletiva”, operante no cotidiano das classes populares brasileiras, provoca uma separação entre a classe trabalhadora, de um lado; e a classe dos marginalizados e excluídos lá longe, do outro – onde deve ficar a “ralé”.
O diagnóstico empírico da “ralé” torna-se o fio condutor que conecta o “Brasil da Escravidão” ao “Brasil da Lava-Jato” – ou vice-versa. Precisamente, a atualidade da “hierarquia moral escravista” revela-se na “escala da dignidade humana” operante entre nós: legando, a quase um terço da população brasileira (agora de cores diversas), todo desprezo social que antes era devotado ao escravo. A tese de Jessé é que tal marginalização sistemática (e cruel) de parte significativa dos nossos concidadãos configura as quatro subdivisões especificas que compõe a realidade das classes sociais no Brasil da Lava-Jato, quais sejam: 1) endinheirados, ínfima elite do dinheiro, dominando material e simbolicamente as outras classes; 2) classe média e suas diversas frações, são os juízes, os professores, jornalistas, médicos, enfim, aqueles que, espelhando todas as formas de individualidade que a posse de certo capital cultural valorizado enseja, “sujam as mãos” com o trabalho diário da dominação social realizada em nome da classe dominante; 3) classe trabalhadora, que é precária na sua imensa maioria; 4) classe de excluídos e marginalizados, que formam a “ralé”(SOUZA, 2016, p.59-60).
Infelizmente, o leitor de formação média, que é diariamente feito de tolo, pode não se dar conta de tamanho imbróglio social. Nem a inteligência nacional, que é o estoque original das impressões que temos do Brasil, conseguiu – ou não quis conseguir – captar essa suposta continuidade da escravidão. Salvo honrosas exceções, como a versão culturalista de Gilberto Freyre ou a análise marxista de Florestan Fernandes, a intelectualidade por aqui tendeu sempre a deixar nosso passado escravista de lado, mirando a crítica quase exclusivamente ao Estado. Desse movimento, surgem duas noções-chave que, ao se complementarem na tentativa de (não) explicar o Brasil, passam a compor o arsenal ideológico da manipulação, quais sejam: o patrimonialismo e populismo.
Tolice ou manipulação?
Para Jessé, Sérgio Buarque e Raymundo Faoro são os paladinos do patrimonialismo, pois representam a fonte original de nossa auto-compreensão “vira-lata” como nação. O primeiro, ao tomar o Estado como extensão máxima do “homem cordial”, parte de uma concepção negativa da elite nacional. Contudo, essa concepção foi tantas vezes reproduzida quanto deturpada ao longo tempo. A ponto desse “homem cordial” tornar-se quase senso comum, sob a tolice de caracterizar o brasileiro em geral – e não mais as elites – enquanto ser emotivo, primitivo, personalista e, portanto, essencialmente corrupto. O Estado, por sua vez, seria expressão do conjunto de todos esses vícios típicos da personalidade do homem nacional. E ninguém melhor que Raymundo Faoro historiou esta “ideologia”, traçando a suposta linha que, ao sair do Estado português unitário, desemboca na política particularista e baseada em privilégios que temos por aqui. Enfim, a maldição do patrimonialismo ganha maior verniz com a chegada da ideia de populismo. O conceito, adaptado ao contexto brasileiro por Francisco Weffort na USP, expressa a tentativa de desqualificar a experiência trabalhista de Getúlio Vargas. Mas foi abocanhado pela elite e deturpado pela mídia, incorporando à retórica do Estado corrupto o rótulo “científico” de populista para estigmatizar – e mesmo demonizar – qualquer participação das classes populares na política.
Nesta manobra, o patrimonialismo e o populismo convertem-se nas armas ideológicas indispensáveis do conservadorismo brasileiro, que posa de crítico olhando (só) para o Estado. Na prática, esse conjunto de ideias, manipulado na dose certa pela mídia ligada ao capital financeiro, induz o cidadão de classe média a jogar todos os problemas nacionais no colo da classe política. Na retórica midiática do capitalismo “vira-lata”, a corrupção (só do Estado) tem obliterado, ao menos desde a chegada dos portugueses, o surgimento das virtudes que o mercado fez nascer noutra ponta da América. E, se o Estado por aqui é essencialmente corrupto, quando há governos ou políticas de interesse dos mais pobres, a questão fica muito pior. Não por acaso, no imaginário de grande parte da classe média, figuras como Getúlio Vargas e Lula são considerados, entre outras coisas, manipuladores do povo pobre e sem consciência política – grandes enganadores “desses coitadinhos que não sabem votar”. Nesse sentido, o rótulo pseudocrítico de populismo tem a força de mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental para qualquer sociedade democrática. Isso sim é tolice e/ou dominação simbólica!
Os “capatazes” do atraso
Por trás desta retórica moralista e antipopular, escondem-se as cifras diárias que engordam o capital financeiro. Sob a “mácula” do Estado devedor, coberta pelo manto sagrado da dívida pública, os ricos não só deixam de pagar os impostos, mas também se tornam credores do orçamento público. Inaugura-se, assim, uma espécie de “praça de alimentação” dos sonegadores fiscais, sediadas em “paraísos do dinheiro” espalhados pelo mundo. No caso brasileiro, onde a evasão fiscal é estimada em US$520 bilhões, a riqueza social pertence ao 1% de pessoas que pode participar dos investimentos especulativos – ou seja, todas as frações do capital, como o agronegócio, o comércio e a indústria, que se combinam com o capital financeiro. Desse modo, enquanto a mídia, que é a representante máxima dos interesses desses 1%, tende a silenciar sobre a Corrupção real, o leitor pode até sentir-se feliz com R$1 bilhão de reais recuperado pela Operação Lava-Jato até agora. Esse mecanismo de dominação simbólica, que tem a classe média como público-alvo privilegiado, induz a formação de verdadeiros “capatazes do atraso”. E muitas vezes conseguem!
Jessé detecta a “retórica do atraso” em quase 65% da classe média, justamente na fração que busca se “informar” pela mídia tradicional e dominante. Para lançar essa tese, é preciso entender o movimento duplo, operado pelas diferentes frações dessa classe, para legitimar a vida e ação no mundo. Aos que estão acima dela, distinguindo-se por sua situação moral superior aos ricos: invejados, porém corruptos; ao passo que, aos debaixo, confirma todo desprezo social herdado pela hierarquia moral escravista: como se os pobres fossem culpados pela própria sorte. Por esses critérios, têm-se, enfim, a hipótese sobre as frações que subdividem a classe média no Brasil contemporâneo: 1) classe média possuidora do tipo de conhecimento que serve diretamente ao capital e à sua reprodução, dividindo-se a) liberais (35% da população), aqueles que prezam pelos ritos democráticos; b) os proto-fascistas (30% da população), apoiadores do “golpe” pelo combate à corrupção; 2) fração expressivista (20% da população), pessoas que tomam agendas como a preservação das matas, o respeito das minorias, a sustentabilidade e responsabilidade social de empresas, mas sem fazer a crítica à distribuição de riqueza e poder; 4) fração crítica (15% da população), que, por nadar contra a corrente da opinião pública dominante, mostra dificuldade em chegar a formas de liberdade pessoal e social de autonomia e, por isso, tem uma atitude singular em relação ao mundo (SOUZA, 2017, p.167-171). Com essa configuração é possível ter ideia da dimensão e sentido da tolice ou manipulação operante entre nós. Evidentemente, para enxergá-la, o leitor deve entender os pressupostos do autor, sem a obrigação de concordar.
[1] Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista CAPES.
[2] A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016) e A Elite do atraso: da Escravidão à Lava-Jato (2017).
[3] Ver principalmente: SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Brasília: UNB, 2000; A construção social da subcidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Referências bibliográficas:
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Ed. Leya, 2015.
______. A Radiografia do Golpe. Rio de Janeiro: Ed. Leya, 2016.
______. A Elite do atraso: da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: Ed. Leya, 2017.
______. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. 3º edição ampliada com nova introdução. São Paulo: Ed. ContraCorrente, 2018.
Referência imagética:
Revista Cult. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/jesse-souza-a-elite-do-atraso/ (Acesso em 28 mar 2019)