Ronaldo Tadeu de Souza[1]
O Boletim Lua Nova entrevistou Érico Andrade, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bolsista produtividade do CNPq. Agradecemos imensamente a disponibilidade e generosidade do Érico em nos conceder esta entrevista. Nesta primeira parte, conversamos sobre a existência de uma filosofia brasileira, e o papel de pensadores negros e pensadoras negras no desenvolvimento dela.
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Podemos falar em uma filosofia brasileira? Como você vê o desenvolvimento brasileiro da disciplina inserida em um contexto mais amplo da história da filosofia?
Érico Andrade (EA): Bom, primeiro eu quero agradecer a oportunidade extraordinária de estar com vocês para falar sobre filosofia, é algo realmente salutar. É importante esse diálogo e ter alguém do Nordeste aqui também para apresentar essa perspectiva da filosofia é interessante. Aqui em Recife, nós tivemos umas Escola de Recife, com o Tobias Barreto, e todo um grupo importante em torno dele. A faculdade de direito aqui é a primeira faculdade do Brasil e concentrava vários intelectuais que vinham para cá estudar porque não tinham muita opção no Brasil e outros que eram mesmo naturais daqui. Então, é um privilégio poder conversar com vocês sobre esses temas falando desde meu território: Recife.
E eu acho essa questão extraordinária, e eu vou começar a responder essa questão remetendo um pouco a minha adolescência, quando eu entrei no curso de filosofia na graduação, um pouco angustiado naquela época, jovem achando que vai mudar o mundo e que vai fazer uma filosofia inédita, que vai fazer e acontecer e eu com essa empolgação muito forte, cheguei para professora que eu tive na época, a professora Nelci Gomes que tinha sido professora na UFPB, mas que estava em Recife como professora visitante. Ela terminou sendo minha primeira orientadora. E sobre fazer filosofia no Brasil, ela me disse o seguinte, Érico: ‘um país que tem literatura como Guimarães Rosa é claro que tem condições de fazer boa filosofia’. E Guimarães, eu sou apaixonado por ele, tenho tatuado até travessia em homenagem o Grande Sertão Veredas.
Mas hoje em dia, eu farei uma correção no que Nelci me disse, não é que o Brasil tem condições de fazer; o Brasil já fez boa filosofia, o Brasil já faz boa filosofia e o Brasil deve continuar fazendo boa filosofia. E porque a resposta dela foi nesse nível e por que eu demorei tanto tempo a poder fazer essa retificação em relação ao que aquela minha mestra tinha de dito?
É porque na minha graduação, por exemplo, eu não vi autores brasileiros no currículo, eu não vi autoras brasileiras no currículo. Então como é que eu vou reconhecer que o Brasil pode fazer filosofia se no meu currículo como aluno de filosofia não havia sequer menção ao pensamento brasileiro, as questões filosóficas do Brasil? Então eu fui subjetivado como adolescente, jovem, na graduação com a ideia de que filosofia era coisa de europeu; era aquela coisa como Heidegger dizia, que para filosofar era preciso falar grego e alemão. Eu escrevi um livro recente (a gente pode falar dele mais para a frente), mas tem uma passagem nesse livro que eu digo o seguinte: tinha colegas meus que nem sabiam alemão, mas só pelo fato de o Heidegger ter dito isso, acreditava que, de fato, a língua alemã era mais propícia para a filosofia, que ela tem uma plasticidade maior. Então isso é de uma dimensão colonial brutal e foi isso que formou a filosofia brasileira e de certa forma aqui no Nordeste, de maneira ainda mais radical. No meu departamento de filosofia tinha muita presença de ex-padres, de pessoas que tinham uma perspectiva mais professoral. Também com uma certa devoção por esses pensadores europeus; eu falo pensadores de propósito, porque a maior parte eram homens brancos, limitados pela Coleção Os Pensadores, por exemplo. Então eu fui subjetivado nisso. A gente tinha acesso a Coleção Os Pensadores quando é adolescente, jovem, e lia aquela coleção e a gente só vê aquelas pessoas de fora com outra língua, fazendo filosofia, então isso gerava uma sensação de que o Brasil não se fazia filosofia.
Entretanto, quando a gente vai se debruçar sobre o pensamento brasileiro a própria forma como a gente interpreta a filosofia de matriz, por exemplo, marxista, com o Seminário [Marx] aí na USP, tudo isso já vai dando uma dimensão dessa perspectiva brasileira da própria filosofia. O próprio marxismo é muito interessante nesse aspecto, porque o marxismo ele vai para a periferia do mundo com muita força; inclusive o marxismo vai ser muito adotado para as pessoas negras; e na América Latina com muita força também. A teologia da libertação ela surge na América Latina ela não surge na Europa. Isso é importante ser ressaltado. Porque nós tivemos e ainda temos uma leitura de Marx que já é uma leitura de alguma forma decolonizada, ainda que essa pauta não tivesse tão clara para as pessoas, então é nesse viés que vai aparecer o que a gente pode chamar de uma filosofia Brasileira.
Além dessa Escola de Recife, sobre a qual falava, mas que era muito voltada para a questão do pensamento europeu, a gente começa a perceber no Brasil que há um reconhecimento do modo pelo qual a filosofia Brasileira como interpretação da filosofia européia é feito, é um modo próprio do Brasil, ou seja, é um modo de pensar, diremos assim muitas vezes, de forma mais criativa, muitas vezes, pensar de forma é não dogmática também. Então isso já vai gerando assim uma percepção da filosofia europeia a partir de uma perspectiva Brasileira. Mas isso é muito difícil, e isso é parcial.
Se a gente considerar, por exemplo, o fato de que muitos de nós fomos estudar na Europa, ou quem não foi estudar na Europa, foi formado na USP que trouxe os europeus para cá; vários professores que vieram para a USP eram europeus. Eu traduzi o [Martial] Gueroult, o Descartes e os Modos da Razão, com uma equipe maravilhosa de vários colegas; e esse livro do Gueroult talvez não tenha tanta importância hoje para a interpretação do Descartes, mas ele foi decisivo para o modo como a filosofia Brasileira foi, diríamos, constituída de maneira profissional. Ou seja, quando a filosofia brasileira está na universidade, em um curso de filosofia porque veja Escola de Recife, era um curso no curso de direito, na faculdade de direito, como em São Paulo, vai ter a faculdade de direito também, com vários pensadores. Estamos falando agora de um departamento de filosofia, ou seja, num departamento em que a filosofia ganha uma dimensão profissional vai chegar fortemente a partir da USP essa compreensão de que fazer filosofia é, por um lado, fazer história da filosofia e, por outro lado, promover uma leitura estrutural dos textos.
Então, de alguma forma, essa nossa formação ela foi marcada por essa perspectiva de interpretação do texto, ou seja, o elemento criativo, ele foi, muitas vezes censurado. E isso formou a gente. Então foi muito difícil e é difícil ainda, talvez perceber o que há de filosófico do ponto de vista brasileiro no que diz respeito à interpretação do que os brasileiros e brasileiras fazem da filosofia europeia. Isso já não é óbvio, mas eu acredito que existe.
Outro elemento que eu acho que agora é o ponto que eu acho mais interessante é pensar que o Brasil tem trazido questões que são da ordem de um país como o nosso, como a precarização e a vulnerabilidade social que nós temos; então temos hoje colegas de filosofia pesquisando sobre a fome, colegas brasileiros pesquisando sobre a negritude, como a gente, ou sobre a branquitude como outros colegas, filosofia latino-americana, então a gente começa a formar uma rede de filosofia que não é subordinada em nada ao cânone europeu. Porque mesmo com a gente fazendo uma história com filosofia de interpretação do pensamento europeu e americano, mas claro, com a perspectiva que parece ser nossa, ainda que seja de difícil reconhecimento para a gente, dado esse aspecto colonizador que nos governa, então, isso ainda é algo difícil de ser detectado.
Então, o que é o que há de brasileiro, nas interpretações filosóficas produzidas pelas pessoas brasileiras no pensamento europeu? Isso é uma questão; mas, por outro lado, a gente já tem um campo de atuação de uma filosofia que a gente pode chamar em linhas gerais de decolonial que aparece no primeiro plano com questões próprias do Brasil, como racismo, como as questões de gênero, que também são da Europa, claro, mas no Brasil atravessaram pelas questões de classe. Mas essas coisas começam a repercutir no Brasil e nos faz voltar às pensadoras e aos pensadores que trabalhavam essas questões no Brasil; eu lembro muito da Angela Davis quando ela diz ‘o que é que vocês querem aprender comigo e se tudo que eu aprendi estava em Lélia Gonzalez’, ou seja, a Lélia Gonzalez passa, por exemplo, a figurar como uma pensadora extraordinariamente importante. Eu estou juntamente com o pessoal aqui no Brasil, formando a Rede Lélia Gonzalez. É uma pensadora extraordinária, e é uma pensadora extraordinária porque ela pensa também as questões do Brasil […].
A questão principal é pautar esse debate a partir de uma perspectiva Brasileira. Foi isso que Lélia Gonzalez fez, inclusive com proposta epistêmica e prática, do pretoguês. Ou seja, você tem uma perspectiva filosófica clara no Brasil, acontecendo em paralelo a Guimarães Rosa, já para recuperar a imagem que eu disse lá no começo, sempre tivemos e a gente nem percebia, estávamos tão focado na história da filosofia e tão focado em defender esses filósofos que é até difícil saber o que é que há de brasileiro nesse pensamento que interpreta a filosofia europeia, não é tão fácil isso. E a gente muitas vezes deixou de perceber que o Brasil já estava fazendo boa filosofia, como sempre fez, e como sempre fez boa literatura; aí, Lélia Gonzalez, é um exemplo emblemático disso, ou seja, uma pensadora daquele porte, como a Beatriz Nascimento, outra grande pensadora.
E é interessante nesse sentido também perceber que o Brasil já fazia filosofia de forma interdisciplinar. É muito claro isso nos pensadores e pensadoras negras e negros. Eles estavam fazendo esse pensamento interdisciplinar acontecer no Brasil. Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Beatriz [Nascimento], Lélia, pensadores e pensadoras que já estavam colocando em xeque essa divisão. Por quê? Porque a filosofia brasileira é muito branca. A filosofia brasileira ela é radicalmente branca. Então, os pensadores negros, pensadoras negras que nem sempre estiveram nos departamentos de filosofia, eles tiveram desde sempre fazendo filosofia.
E aí quando a gente faz esse contemporâneo a gente percebe que o Brasil sempre fez boa filosofia. E que na verdade faltava, talvez reconhecer isso, e para esse reconhecimento foi necessária uma grande luta dos movimentos sociais, dos movimentos negros, dos movimentos de gênero que fizeram a gente chacoalhar; fizeram a gente parar de focar no continente europeu para focar no nosso próprio país. Essa chacoalhada foi para a gente perceber aquilo que a gente já fazia. E isso só pode ocorrer quando a gente pensa em uma certa ruptura em relação às questões de gênero e raça. E consequentemente pensa que a filosofia não deve ser monopolizada por essa branquitude e tudo o que constituiu o início da filosofia brasileira; não se trata aqui, obviamente, de jogar pedras em quem nos formou, mas se trata de reconhecer o lugar dessas pessoas e de onde elas estavam e a partir de que lugar elas falavam, e a partir disso, criticar e promover rupturas.
Você colocou um debate interessante, vamos insistir nessa reflexão. Você, então, não compartilha a tese de que, no Brasil, somos apenas historiadores da filosofia, ou mesmo bons leitores e leitoras de textos com métodos muito sofisticados de abordagens dos autores clássicos e não tão clássicos, mas não fazemos filosofia no sentido forte do termo como argumentam alguns?
EA: Exato. Eu acho que a gente tem claramente uma filosofia produzida fortemente por pessoas negras no Brasil. Eu acho que isso para mim é limpo e transparente. Agora a dificuldade que a gente tem de reconhecer isso é muito grande. Eu me reporto novamente à minha graduação. Que as pessoas eram proibidas de dizerem que eram filósofos. Você não poderia dizer que era filósofo, mas que era historiador da filosofia. Então, primeiramente, havia uma distinção entre historiador da filosofia e filósofos, como se o historiador filosofia fosse algo que estivesse ao nosso alcance como pensadores latino-americanos e pensadoras latino-americanas e a gente só pudesse atingir esse patamar que é de comentar o que eles fizeram. Certo? E quem faz filosofia de verdade estaria fazendo filosofia no continente europeu ou então nos Estados Unidos porque, obviamente, seria uma continuidade da Europa ainda com a perspectiva Americana.
Então, perceba, havia uma distinção muito clara no Brasil entre um historiador da filosofia e um filósofo. E como no Brasil só se fazia história da filosofia, teoricamente nessa percepção centrada numa perspectiva uspiana a gente não percebia: primeiro que as pessoas estavam fazendo filosofia, por exemplo Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento estavam fazendo filosofia; então já se fazia filosofia no Brasil, segundo era como se fazer boa história da filosofia, ela habilitasse a ser um grande filósofo. Isso tem reflexos diretos na formação das pessoas, por exemplo; já fui para a banca na USP sobre um filósofo morto, europeu, claro, branco, macho, cis, heteronormativo. E a pessoa comentando o texto dessa pessoa com autores europeus, todos eles homens brancos e mortos também. Veja, você está dialogando com quem? Era como se eu exibisse do ponto de vista de algum conhecimento da leitura, do bom diálogo com esses intérpretes da Europa que eram eles todos mortos, que isso fosse a forma de atestar que alguém tem ou não habilidade filosófica; era como se a habilidade filosófica fosse reduzida a essa dimensão de comentários dos textos.
Ora, isso é uma verdadeira armadilha com relação às novidades e ideias possíveis que poderiam surgir. Então isso tem uma repercussão muito grande, porque inclusive inscreve a necessidade de pensar a filosofia e a história da filosofia a partir de um pensador. Ou seja, mesmo temas da história da filosofia eram renegados porque o ideal era fazer discussões sobre o pensador. Isso foi terrível para o Brasil. Eu entendo e não se trata agora de apagar o que existiu, mas existiu um limite severo para a construção de um pensamento mais criativo, mas porque não tem como você pensar de forma criativa sem você pelo menos pensar a partir de temas. Porque se se coloca os temas no primeiro plano você está abrindo margem para que aquilo que ela fez uma comunidade que você vive possa ganhar pelo menos a forma de um tema [filosófico]. E aí você vai ter uma inserção a partir desse tema de uma reflexão filosófica que pode abranger diversas dimensões daquela vida social, daquela comunidade.
[Isso importa também] porque a filosofia fez um truque muito astuto, que é o truque kantiano de falar do cosmopolitismo sendo absolutamente provinciano, e vendeu essa ideia para gente E por quê? Porque vende-se a ideia da branquitude como se fosse universal, sendo que o Kant nunca saiu de Königsberg, mas é como se ele estivesse falando do mundo todo. O Kant eu costumo dizer é o falso cosmopolitismo de Könisgberg. O Kant e muitos outros estão falando a partir da diferença deles, mas colocando e pautando todas as questões [como se fossem universais], e a gente aceitou isso de bom grado. Porque talvez, como diz Fanon, há uma espécie de identidade do intelectual colonizado com o colonizador, é como se a cultura do colonizador fosse a sua própria cultura.
E no Brasil isso fica ainda mais difícil porque as pessoas no Brasil que começaram a fazer filosofia eram pessoas de origem italiana, alemã, polonesa, então elas, de alguma forma, tinham de fato um vínculo com a Europa muito maior do que eu, por exemplo que nasci aqui no [bairro] do Engenho do Meio que meus colegas da USP, da Unicamp quase todos eles com nome e sobrenome italianos, portugueses, enfim pessoas que têm alguma ligação com a Europa. Então de alguma forma isso foi mais fácil para a branquitude gerenciar como capital filosófico, aquilo que estava sendo produzido na Europa, porque de alguma forma, eles mesmo eram europeus. E nós de fato não tivemos essa experiência europeia. Agora não tem problema; a pessoa não é culpada de ser [ou ter descendência europeia]. O problema é a monopolização do debate: por exemplo, dizer isso aqui é filosofia, isso aqui não é filosofia. Quando você passa a demarcar o que é ou não filosofia se entra em uma seara bastante e profundamente delicada que é justamente de delimitar a filosofia aquilo que é próprio da Europa e que, supostamente, se iniciou na Grécia.
Então acho que esse é um ponto que a gente tem que pensar bem. Então quando se diz que não há filósofo; primeiro deve-se perguntar, o que é que é ser um filósofo? Segundo, qual é o interesse em dizer que não há filósofo? O que está por trás disso? A quem essa pergunta interessa? E o que essa pergunta está apagando? Porque obviamente, o Brasil tem uma história de filosofia negra, de pensadores [e pensadoras] negros, tanto na psicanálise como a filosofia, claro e evidente.
Conte-nos um pouco sobre seu doutorado na França. Seu estudo foi sobre Descartes, não? Considerando sua experiência, tanto na França quanto em estudar o autor, o que significa ser um filósofo no Brasil hoje?
EA: Sim, estudei Descartes, em um centro cartesiano que é a Sorbonne. Ou seja, o ápice da do ideal do brasileiro, de você fazer o doutorado na Sorbonne; tem até uma banda aqui em Recife que brinca com isso, não comigo diretamente, mas a brincadeira é geral, que o sonho intelectual é “fazer na Sorbonne doutorado”. Ou seja, é essa coisa mesmo da Sorbonne, etc., toda essa mística que tem em torno dela.
O que eu achei massa de ter ido para Sorbonne e para Paris no caso, foi de perceber, primeiro que o que se chama de filosofia universal, na verdade tem prateleiras que dizem o contrário. Você vai para biblioteca na França, aí tem, apesar que hoje em dia na Unicamp é assim também, então, tem filosofia americana, depois tem filosofia europeia, filosofia francesa, filosofia inglesa e por aí vai. Ou seja, parece que a filosofia tem território, isso é uma coisa que me chamou a atenção, uma vez em Paris. Outra questão que eu achei interessante foi perceber que a distância do que eles faziam para o que a gente fazia não era grande. Ou seja, mesmo num campo da história da filosofia, eu não vi essa diferença colossal que me colocava na condição de inferioridade em relação às pessoas da própria França e fazia tese de doutorado.
Então eu primeiro percebi isso. Eu lembro que meu orientador escreveu uma carta, porque minha bolsa era uma bolsa da Europa, uma bolsa chamada Alban, Projeto Alban que é uma bolsa da União Europeia, então meu orientador, na verdade meu diretor de tese que é como se chama na França, ele teve que escrever um relatório para mim, do que eu estava fazendo; e ele explicou, quando estava já para defender, que eu conseguia aliar a literatura tanta de língua inglesa quanto francesa à velocidade e a qualidade do meu texto…, porque, enfim, quando ele destacou isso eu achei interessante, porque o fato de eu ser brasileiro me colocou muito tranquilamente numa discussão tanto com os pensadores franceses sobre Descartes, e também as pensadoras, quanto também com a literatura inglesa. Não que eu seja fluente inglês, mas mesmo assim eu pelo menos lia bem tinha alguma noção de fala e escrita, então, trazer isso para minha tese de doutorado foi algo muito interessante, porque me fez perceber que existem modos de fazer filosofia diferentes.
Não existe o universal, isso ficou claro para mim. Veja só onde isso vai ficar evidente para mim, uma coisa inacreditável. Eu estudei ciência e peguei um livro na época sobre o ensino de filosofia e ciência no século XVII na França. Porque a minha discussão era a física de Descarte; e perceba, eles estavam falando dos livros de filosofia do ensino naquela época, século XVII, que estava chegando o estrangeirismo de Newton e que isso não era uma boa filosofia da física, que a física Newton era uma espécie estrangeirismo. Aí foi uma filósofa, Madame Châtelet, que eu cito no meu doutorado (eu fico muito feliz que hoje tem várias colegas minhas lá do sul pesquisando Châtelet e eu fiquei tão orgulhoso porque eu citei ela é meu doutorado em 2006, eu defendi minha tese em 2006). Madame Châtelet dizia da importância de Newton entrar na França, defendia a filosofia inglesa, nessa época não tinha essa distinção entre filosofia e física.
Mas perceba que havia um embate que tinha a ver com os modos de percepção de mundo diferentes na França e na Inglaterra. E eu me dei conta disso no doutorado estudando ciência. Agora, se na ciência havia uma percepção diferente a partir de duas culturas distintas, imagina na filosofia. Então, comecei a perceber que não era tão claro esse universal, que ele não era absoluto, que estava muito inscrito nos territórios, nas culturas. E eu percebi isso de forma muito clara, então, essa minha passagem por lá, por Paris, me deram essas dimensões: primeiro que a gente não é tão diferente deles, e eu falei da carta do meu diretor para exemplificar isso, e não digo isso por uma questão pessoal minha, é bom dizer isso porque a gente que é negro, a gente sabe que quando dizemos esse tipo e coisa, somos um pouco arrojado, já somos tachados de arrogantes, amostrados e tal, etc. Então não há uma distância tão e excessivamente grande entre nós e eles. E veja, eu estava em outro país, falando em outra língua, não estava falando em português; e segundo, a outra coisa que achei importante foi entender que não existe um universal absoluto desterritorializados, o universal está inscrito num território, numa cultura, e ficou muito claro para mim expressando a ciência no século XVII. Então isso foram coisas que me marcaram no doutorado muito fortemente em Paris.
Nesse sentido eu volto para o Brasil com a convicção de que eu precisava ajudar meu povo, que eu precisava ajudar num país, isso foi mexendo comigo muito fortemente. Então, comecei a perceber que na filosofia cartesiana há uma passagem para os afetos, então eu deixei de estudar ciências e passei a estudar as paixões de Descartes. E aí tudo isso foi construído em uma espécie de solo a partir do qual eu comecei a pensar que eu poderia ter emancipação em relação a essas coisas. Além disso, em Paris o fato de ter estudado uma interpretação inglesa do Descartes me fez perceber que eu não preciso estar inscrito em uma escola, em uma perspectiva, seja inglesa, americana ou francesa, que poderia se pensar de forma diferente. Eu comecei a perceber isso.
Além do que em Paris eu conheci muita gente de São Paulo, conheci, por exemplo o Ruy Fausto, tomávamos muito café juntos, então conheci muita gente do Brasil estando em Paris. Porque no Brasil as pessoas circulavam muito pouco até então ou se circulava menos, era muito difícil as pessoas virem para o Nordeste. Então eu conheci muita gente que hoje é professor e viraram colegas. E alguns que já eram professor, como o próprio Ruy Fausto, e outras pessoas como o Luiz Damon, o Juvenal Salvian e várias outras pessoas que se tornaram amigos e amigas.
Isso me permitiu de alguma forma, também ter uma percepção do Brasil a partir desse olhar, que é um olhar uspiano, eu nunca estudei na USP em São Paulo, nem no Rio. Eu estudei em Recife e depois fui direto para a França. Eu comecei, então, a ter uma percepção dessas pessoas lá de São Paulo e também do Rio. Comecei a perceber um pouco isso, mas sempre de fora desses grandes centros até então. Pois eu nunca estive nessas instituições consagradas no Brasil como professor, como pesquisador, como aluno. Então, foi esse tipo de estar fora que me fez compreender como a gente no Brasil reproduz muito essa filosofia e eu também estava fazendo essa reprodução, e comecei a perceber que a gente poderia fazer diferente. A gente poderia fazer diferente, inicialmente colocando temas; então eu saí da ciência de Descarte para pensar às paixões, depois passei para os afetos como mais geral e terminei chegando ao racismo na própria filosofia.
Muito interessante suas leituras e pesquisas sobre Madame Châtelet no século XVII, que se coloca como uma defensora do Newton na França. Nesse contexto, deveriam ter outros homens além de Descartes com quem, muito provavelmente, ela deve ter travado debates, homens que ressaltavam sua condição de mulher. Sabe se há uma tradução de sua obra?
EA: Eu li o original dela na biblioteca de Paris. Existe um espaço reservado na biblioteca com obras raras e lá eu li o original dela; para mim foi muito marcante a leitura dela. Veja só que coisa e é inacreditável isso. Marcou muito a minha leitura ter estudado a Madame Châtelet nesse sentido; de pensar a tradição de filosóficas distintas, que não existe esse universal tão evidente que a filosofia quer transmitir.
Não, ainda não. Mas está sendo feita por um grupo de pesquisadoras da região sul. Minhas colegas de lá estão fazendo isso: a Mitielli Seixas, a Katarina Peixoto, tem um pessoal muito importante fazendo a tradução dessas pensadoras.
Você disse que conversava bastante e tomava café com Ruy Fausto na França. Tem alguma história para nos contar sobre ele?
EA: Era incrível. Era alguém que eu gostava muito. Gostava de tomar um café com ele. Para mim era um momento mágico na BNF [Biblioteca Nacional da França] ir tomar um café com ele e ouvir as coisas dele. Ele falava muito do [Fernando Henrique] Cardoso, sempre se referindo ao Fernando Henrique Cardoso, das coisas da USP, eu achava aquilo interessantíssimo, para mim era um momento especial. Nem sempre eu estava podendo tomar o café, estava com o dinheiro contado, aí íamos pegar o café na máquina que era mais barato que o café no balcãozinho, aquela coisa de estudante. Eu tinha a bolsa da Europa, mas era muito difícil a vida lá, Paris, é muito cara. E eu fui com minha companheira. E aí era uma delícia conversar com ele; ele tinha essa perspectiva do marxismo ao mesmo tempo tinha uma crítica, uma crítica a esquerda e isso me interessava muito na época já. Eu sempre fiz textos críticos a esquerda; agora eu tenho feito uma crítica mais racionalizada, mas, ao mesmo tempo, obviamente, sempre apostando que a esquerda é o único caminho. Que as saídas serão sempre pela esquerda, como a gente diz por aí. Mas o Ruy Fausto tinha essa posição sempre crítica da esquerda, sempre pensando de forma crítica, enfim era uma pessoa incrível para conversar, muito aberto. Eu tenho um livro dele aqui, ele me deu na época e assinou para mim. Era generoso.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova/Cedec
Fonte Imagética: foto de Érico Andrade obtida em suas mídias sociais.