Maria Clara Oliveira[1]
Paula Duarte Lopes[2]
Em 1992, 17 de outubro passou a ser conhecido como o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1997, a ONU declarou a década 1997-2006 como sendo dedicada à Erradicação da Pobreza. Como em várias outras temáticas, uma Segunda Década de Erradicação da Pobreza foi declarada (2008-2017), bem como uma Terceira Década de Erradicação da Pobreza (2018-2027). Simultaneamente, a erradicação da pobreza extrema fazia parte do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio 1, conjuntamente com a erradicação da fome (2000-2015). Já no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030), a erradicação da pobreza extrema e a diminuição da pobreza em geral tornaram-se um objetivo autônomo (ODS1). Dedicar um dia específico a esta temática, três décadas e um objetivo e meio de desenvolvimento sinaliza a relevância que a erradicação da pobreza tem assumido na agenda internacional.
Por que partir da década de 1990?
A pobreza sempre esteve na agenda da ONU e das suas agências e programas. Mas, na década de 1990 operou-se uma mudança significativa na forma de entender a pobreza e, consequentemente, na definição dos instrumentos selecionados para lhe fazer frente. Esta alteração de paradigma resulta de uma combinação de vários fatores, tais como uma melhor compreensão das causas da pobreza e das ferramentas que podem ser utilizadas para diminuir a sua prevalência e incidência; alterações substanciais nas formas de organização do trabalho e da vida em sociedade; e a percepção, acompanhada por uma série de evidências, da incapacidade de dar conta do problema através da aplicação de medidas orientadas pela visão neoliberal que imperou nos anos 1980. Para esta alteração, muito contribuiu o trabalho de autores como Amartya Sen. Até então a pobreza era medida essencialmente com base num indicador econômico – Rendimento Bruto Nacional per capita -, mas Amartya Sen questiona esse entendimento de pobreza baseado numa concepção de pobreza relativa. Ainda hoje o Banco Mundial utiliza este indicador para definir as condições de acesso a apoios por parte dos diferentes países.
Amartya Sen explica que a pobreza deve ser entendida como a incapacidade de atingir um mínimo de capacidades e que essa incapacidade é absoluta, porque condiciona de forma estrutural a capacidade de cada ser humano desenvolver o seu potencial de forma plena. O conceito de pobreza passa a estar vinculado ao conceito de desenvolvimento humano, com o trabalho do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), onde a questão econômico-financeira é obviamente importante, mas o nível de educação esperado no país, bem como a esperança média de vida, passam a ser indissociáveis de uma análise do nível de vida medido em termos do Rendimento Interno Bruto per capita. Com o tempo, o conceito de pobreza passou a ser qualificado com outros aspectos, incluindo questões de gênero, questões sociais, bem como questões ambientais derivadas das pressões planetárias associadas à promoção de desenvolvimento.
Talvez o indicador mais interessante para discutirmos o conceito de pobreza seja o Índice de Pobreza Multidimensional que inclui indicadores sobre a saúde (nutrição e mortalidade infantil), a educação (anos passados a estudar e assiduidade escolar) e o nível de vida (tipo de combustível utilizado para cozinhar, acesso a saneamento básico, a água potável e a eletricidade, tipo de casa e propriedade de bens de equipamento) da população. Este indicador permite-nos perceber melhor o que é ser pobre numa determinada sociedade, numa determinada geografia, permitindo pensar instrumentos melhor adequados para enfrentar as diferentes realidades caracterizadas pela pobreza. Este indicador permite também captar a natureza dinâmica da pobreza, pois estes indicadores não são fixos no tempo nem através de diferentes sociedades.
Mas por quê manter esta questão na agenda internacional 30 anos depois do Dia Internacional da Erradicação da Pobreza ser declarado e 25 anos depois da primeira década para a Erradicação da Pobreza ser aprovada?
Em primeiro lugar, por causa dos resultados positivos alcançados com as décadas para a Erradicação da Pobreza e dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Com a assinatura da Declaração do Milênio em 2000, 189 países comprometeram-se a “não poupar esforços para libertar todos os homens, mulheres e crianças das condições abjetas e desumanas da pobreza extrema” (Declaração do Milênio).O primeiro dos oito objetivos de desenvolvimento a serem cumpridos até 2015 versava justamente sobre o tema da erradicação da pobreza, mas da pobreza extrema. E, na verdade, o objetivo não era de erradicar a pobreza extrema até 2015, mas de reduzir em metade a proporção de pessoas entre 1990 e 2015 que viviam com menos de 1,25 USD por dia. Os dados apontam para uma diminuição impressionante da porcentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza: se em 1990 correspondiam a cerca de 36% da população, em 2015 eram cerca de 12% (MDGMonitor, 2017); e, se focarmos nos países ditos em desenvolvimento, esta diminuição ainda é mais significativa (Figura 1): em 1990, 47% da população vivia em pobreza extrema e em 2015 este valor era de 14% (ONU, 2015).
Figura 1 – Taxa de pobreza extrema em países ditos em desenvolvimento
O objetivo de reduzir a pobreza extrema pela metade foi atingido cinco anos antes do previsto, devido ao desempenho de países como a China (Figura 2). Neste período, a América Latina, de um modo geral, também conseguiu reduzir significativamente o número de pessoas em situação de pobreza. O caso do Brasil é merecedor de destaque, uma vez que o país conseguiu uma redução rápida da pobreza extrema: de 22% da população abaixo do limiar mínimo de pobreza para 3% em 2015 (ONU, 2021). Esta redução resulta da combinação de medidas de transferência de renda (como é o caso do emblemático Programa Bolsa Família), com políticas de valorização salarial, de fomento do acesso à educação, entre outras (El País, 2015). No entanto, a África Subsaariana continuou a registrar níveis elevados de pobreza, enquanto em alguns países asiáticos houve um declínio das condições de vida da população (ONU, 2015).
Figura 2 – Percentagem de pessoas que vivem com menos de 1,25 USD por dia
Ainda assim, os resultados globais alcançados permitiram delinear uma estratégia de erradicação da pobreza extrema e de redução de no mínimo de metade da população a viver em situação de pobreza, em todas as suas dimensões, até 2030, com a aprovação dos ODS. Ainda há muito trabalho para fazer, e é possível.
Em segundo lugar, porque, na verdade, este é um objetivo em movimento, em parte porque podemos sempre melhorar as condições de vida de qualquer população e, em parte, porque a pobreza resulta de dinâmicas econômicas, políticas, sociais e mesmo culturais impossíveis de garantir o seu contributo simultâneo e integrado para a erradicação da pobreza.
Assim, com base nos resultados obtido com o ODM1 e o momentum de aceleração da diminuição da taxa global de pobreza extrema, decidiu-se, com a Agenda 2030, canalizar esforços para erradicar efetivamente a pobreza extrema no mundo e para reduzir pelo menos pela metade a proporção de homens, mulheres e crianças vivendo em condições de pobreza. Em 2015, estimava-se que 10% da população vivia ainda em condições de pobreza extrema, ou seja, abaixo da linha de 1,90 USD fixada pelo Banco Mundial (com os ODM a linha era de 1,25 USD, o que também reflete esta ideia de objetivo em movimento). Apesar de ter assistido a uma desaceleração do ritmo da redução da taxa de pobreza extrema, a mesma manteve a sua tendência de diminuição até à situação pandêmica em 2020 (Figura 3).
Figura 3 – Número de pessoas a viver com menos de 1,90 USD por dia (milhões)
A situação pandêmica da COVID-19 reflete de forma clara esta complexidade. Os primeiros estudos sobre a temática apontam para um aumento da pobreza extrema global de 8,3 % em 2019 para 9,2 % em 2020 (ONU, 2022a). Para a região da América Latina, a CEPAL (2022) estima que a extrema pobreza atinge agora quase 14% da população. Este é o primeiro aumento de pobreza extrema registrado desde 1998 e o mais elevado desde 1990 (ONU, 2022a). Estima-se que a situação pandêmica tenha apagado mais de quatro anos de diminuição da pobreza (ONU, 2022b); sendo que nos países de renda mais baixa, este retrocesso pode atingir entre oito e nove anos (ONU, 2022a). Quase uma década!
De acordo com um relatório recente do Banco Mundial, o problema agravou-se de forma drástica a partir de 2020, tornando praticamente impossível atingir as metas estabelecidas para 2030. A instituição afirma que “a COVID-19 marcou o fim da fase de progresso global na redução da pobreza” (Banco Mundial, 2020: xiii). A rápida disseminação do vírus aumentou exponencialmente a pressão sobre os sistemas de saúde, levando muitos governos a decretar medidas de redução da mobilidade que, por sua vez, tiveram impactos profundamente negativos nos planos econômico e social. Os efeitos das medidas para lidar com a crise sanitária fizeram-se sentir de imediato: como referido, pela primeira vez desde 1998 aumentou o número de pessoas em situação de pobreza a nível global, sendo contabilizadas 70 milhões de pessoas a mais abaixo da linha da pobreza (Banco Mundial, 2022). Aumentou também, pela primeira vez em duas décadas, o número de pessoas empregadas em condição de pobreza: estima-se que 8 milhões de trabalhadores tenham sido empurrados para condições de pobreza (ONU, 2022b).
Esta avaliação global da pobreza esconde, no entanto, algumas particularidades. Primeiro, a deterioração das condições de vida da população não atinge todos os países de igual modo – contam-se entre os mais afetados aqueles que têm economias mais frágeis, com maior número de trabalhadores inseridos no mercado de trabalho informal e em situações precárias. Segundo, existem diferentes grupos da população que estão mais vulneráveis ao risco – além dos trabalhadores precários já mencionados, os efeitos socioeconômicos nefastos advindos da pandemia foram sentidos de forma mais intensa por mulheres, jovens trabalhadores e grupos minoritários (por exemplo, comunidades indígenas na América Latina) (CEPAL, 2021).
Para fazer frente ao cenário adverso, muitos governos adotaram estratégias para mitigar os efeitos socioeconômicos da pandemia e evitar o empobrecimento geral da população e os efeitos particularmente nocivos entre as camadas mais desfavorecidas. Tais estratégias incluíram, entre outras medidas, a extensão e/ou a criação de programas temporários de transferências monetárias diretas para indivíduos e/ou famílias em situação de elevada vulnerabilidade, o que permitiu o alívio da intensidade da pobreza. O Banco Mundial (2022) reconhece que países que recorreram a programas de transferência direta direcionados aos mais pobres no contexto da emergência pandêmica tiveram algum sucesso na proteção dos mesmos. Além disso, diferentes organismos internacionais – por exemplo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Comunidade Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) – exortaram os governos a adotar transferências emergenciais, bem como a colocar em prática estratégias complementares, como o reforço de sistemas integrais de proteção social (CEPAL, 2021, 2022).
O que esperar nos próximos tempos?
Apesar da intensa campanha a nível internacional para a erradicação da pobreza extrema e da obtenção de resultados bastante positivos nas últimas décadas, observamos a existência de diversos fatores que concorrem para dificultar o atingir deste objetivo. Entre eles, podemos mencionar a limitada ação de alguns Estados na adoção e implementação de estratégias integradas de combate à pobreza; crises macroeconômicas e sociais que vêm adicionar novos desafios; os efeitos sanitários, econômicos e sociais associados à rápida disseminação da COVID-19 e às tentativas de conter o vírus; e, mais recentemente, a emergência de uma guerra em território ucraniano, que afeta não só as exportações de cereais oriundos da Ucrânia, bem como as rotas de exportação de cereais da Rússia.
Se a recuperação econômica após a pandemia e o regresso aos trilhos no que respeita à redução da pobreza eram processos que já se adivinhavam longos e exigentes, o estalar da guerra que opõe Rússia à Ucrânia, no começo de 2022, trouxe novos desafios. Primeiro, coloca-se desde logo a questão do aumento da pobreza no interior do país invadido, resultante da destruição de infraestrutura, da disrupção dos modos de vida e da deslocação massiva de pessoas. O PNUD (2022) alerta para a possibilidade de 90% da população ucraniana estar em risco de pobreza. Imediatamente surge também uma preocupação com as condições de vida dos refugiados ucranianos que vão transpondo a fronteira e com a capacidade dos países de acolhimento de responder às suas necessidades, ao mesmo tempo que procuram ultrapassar os efeitos deixados pela pandemia.
Mas não só a Ucrânia e seus vizinhos são afetados. As alterações na produção e na exportação de cereais e de fertilizantes (provenientes não só da Ucrânia, mas também da Rússia), levam a um aumento sem precedentes dos preços dos bens alimentares, que já estavam a ser afetados pela inflação, constituindo um segundo desafio. Uma vez que as cadeias de produção e de distribuição de alimentos são globais, esta alta dos preços produz efeitos que afetam outros países e tem dado lugar a projeções preocupantes relativas à capacidade de assegurar os níveis de alimentação existentes pré-guerra no curto-prazo. Regiões onde a insegurança alimentar é elevada, como é o caso de Moçambique, ou onde os cereais são a base do regime alimentar, como é o caso do Egito, enfrentam situações particularmente dramáticas.
Junta-se ainda um terceiro desafio: o aumento do custo de vida decorrente da subida em flecha dos preços da energia, com impactos sérios na generalidade da população, mas definitivamente mais preocupantes entre os grupos mais vulneráveis. Assim, cada vez mais pressionados, os países de baixa renda precisam de mais e mais ajuda para combater a pobreza e a insegurança alimentar e para garantir o acesso da população a bens e serviços básicos. Também a guerra na Ucrânia traz limites a este nível: neste contexto de emergência, há uma tendência de doadores e de organizações internacionais darem maior atenção a essa situação, o que pode levar a uma diminuição dos fluxos de ajuda dirigidos a outros países.
Diante deste cenário, é essencial manter o objetivo da erradicação da pobreza no centro das agendas políticas nacionais e internacionais. Mas mais do que isso, é necessário um esforço adicional, semelhante ao que impulsionou a queda da pobreza de forma sustentada durante os últimos 25 anos. Tal passa por aplicar de forma coordenada estratégias integradas de redução da pobreza, combinando para tal medidas em várias frentes, tais como a garantia de renda, o acesso à alimentação, à educação, a cuidados de saúde, a habitação em condições, entre outras. Reduzir a pobreza é possível, já o fizemos, e é sustentável, pois constitui a base não só do desenvolvimento humano como da própria dignidade humana!
Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projeto REPLAY “EXPL/CPO-CPO/1615/2021“
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
Banco Mundial (2022). Poverty and shared prosperity 2022. Washington D.C.: Banco Mundial.
Banco Mundial (2022). Russian Invasion of Ukraine Impedes Post-Pandemic Economic Recovery in Emerging Europe and Central Asia (worldbank.org) [consultado a 14/10/2022].
CEPAL (2022). Social Panorama of Latin America, 2021.. Santiago: Nações Unidas.
CEPAL (2021). Social Panorama of Latin America, 2020. Santiago: Nações Unidas.
El País (2015). Combate à Miséria: Brasil lidera a redução da pobreza extrema, segundo o Banco Mundial | Brasil | EL PAÍS Brasil (elpais.com) [consultado a 15/10/2022],
MDGMonitor (2017). MDG 1 – Eradicate extreme poverty and hunger – MDG Monitor [consultado a 14/10/2022].
ONU (2015). Objetivos de Desarrollo del Milenio. Informe de 2015. [consultado a 14/10/2022].
ONU (2021). SDG Country Profile: Brazil. [consultado a 14/10/2022].
ONU (2022a). End poverty in all its forms everywhere: Progress and Info [consultado a 14/10/2022].
ONU (2022b). End poverty in all its forms everywhere: 2022 Progress Report. [consultado a 14/10/2022]
PNUD (2022). War in Ukraine | United Nations Development Programme (undp.org) [consultado a 15/10/2022].
[1] CoLABOR e Universidade de Coimbra, FEUC. E-mail: clara.oliveira@colabor.pt
[2] Universidade de Coimbra, CES, FEUC. E-mail: pdl@fe.uc.pt