Cristiana Losekann[2]
Na observação do contexto político desde 2013, no Brasil, fica evidente que as emoções como a raiva ganharam relevância impulsionando a ação política. Apesar disso, pouco se sabe sobre as dinâmicas que permeiam os processos afetivos da política e como eles estão conectados com outros aspectos da vida. É nesse sentido que proponho a observação das dinâmicas emocionais e afetivas para a melhor compreensão do processo político recente no Brasil. Dos protestos de 2013 às eleições de 2018, as dinâmicas políticas em diversas vertentes ideológicas, tanto à esquerda quanto à direta, envolveram jogos emocionais de alta intensidade e tensionamentos, produzindo momentos de entusiasmo e incentivos à ação. A chave para explicar o que se passou em junho de 2013 está, entre outros fatores, na compreensão do desejo por uma vivência política autêntica como elemento central de uma experiência política.
O que é uma experiência política? Buscando em John Dewey recursos heurísticos, podemos admitir que se as experiências vividas engendram aprendizados sobre todas as coisas, com a política não seria diferente. Não há qualquer razão para supor que a atividade política se restringiria a uma elaboração puramente intelectual, seja calculista ou ideológica. A vida pública em suas mais variadas arenas (da família, passando pelo botequim, até as eleições) proporciona elementos que constituem a experiência política do sujeito com fatos, percepções, relações de causalidade, sentimentos, significados, emoções e diversos outros mecanismos.
Dewey ironiza a tentativa de separação, típica do pensamento moderno, entre razão e emoção, corpo e mente (1895). Sua concepção de experiência é exatamente a articulação entre todos esses elementos, produzindo uma compreensão do mundo que se traduz em nossas ações como interesse e afeto. Experiência é aprendizado, e a emoção é um processo da construção de experiência onde elaboramos conhecimentos sobre as coisas internas e externas. Aproximando o debate de Dewey sobre as emoções de sua noção de público em uma perspectiva deliberativa de democracia (Dewey, 2001), pode-se conceber que as interações públicas implicam experiências de afeto e de interesse, onde pode-se gerar ódio, amor, medo, entusiasmo, curiosidade, etc.
A experiência política pode ser sinteticamente considerada a forma e o conteúdo de vivências que compõem as relações estabelecidas entre o sujeito e o público. As formas por meio das quais as pessoas estabelecem relações com a burocracia, com as leis, com as autoridades, com os procedimentos, com os temas públicos, são definidoras dessa experiência.
Até a década de 1960, as emoções tiveram algum papel dentro das teorias da ação coletiva, mas foram de maneira equivocada e preconceituosa associadas à manifestação desordenada e patologizada do protesto. Nas décadas de 1960 e 1970, esse aspecto da ação coletiva foi completamente negligenciado nas abordagens estruturais e organizacionais. Posteriormente, mesmo com o surgimento de abordagens culturalistas nas décadas de 1980 e 1990, as emoções não ganharam muita atenção (Goodwin, Jasper e Polletta, 2000, p. 65).
Recentemente, Mouffe (2018) tem proposto pensar o giro afetivo na teoria social a partir das implicações das paixões para as relações políticas. A proposta de Mouffe permite observar não apenas a qualidade ou natureza das emoções em curso nos processos políticos (se emoções negativas ou positivas), mas, sobretudo, a intensidade dessa dinâmica. No que se refere ao conflito e a qualidade “negativa” das emoções – tais como raiva, ódio, desprezo, entre outras –, a perspectiva de Mouffe está articulada com sua teoria da democracia agonística, a qual reconhece os antagonismos como fontes primárias das relações políticas calcadas na oposição ao outro. Ora, em uma perspectiva não racionalista estrita, essas relações estão permeadas por emoções ou “paixões” como quer Mouffe, sendo o combustível que anima as elaborações de nós/eles.
Experiências políticas a partir de 2013
Os protestos de Junho de 2013 no Brasil foram marcados por vários tipos de demandas, mas em geral todos tiveram uma crítica comum à política institucional. Este desapontamento gerou, de diferentes maneiras, uma busca por algo que seria uma política genuína, verdadeira. “A verdadeira participação” é uma adjetivação que apareceu muito nos diversos espaços públicos criados durante os protestos daquele mês, sobretudo, nas chamadas “Assembleias Populares”. Essas assembleias ocorriam antes e depois das manifestações de rua, e nelas dezenas de pessoas se reuniam para discutir e decidir sobre o dia e o local das próximas manifestações, além de debater fatos ocorridos nos protestos. Ainda que seja possível observar diferenças importantes nas gramáticas ideológicas nesse período, podemos assumir que alguns elementos eram comuns: crítica à autoridade, ao Estado e à corrupção; vontade de participação, de influenciar decisões, de ser reconhecido pela sociedade. Ou seja, os diversos públicos são formados pela elaboração da experiência política atual como um problema e pela demanda de uma experiência política autêntica, que agregue os desejos sentidos nos corpos e mentes com as ações praticadas.
No cerne da autenticidade está a busca por algo original, a busca pela verdade ou, a busca por uma experiência restituída de sentidos que foram perdidos ou desgastados com o tempo. Em uma dimensão política, a busca pela autenticidade gera uma espécie de busca pela renovação política, uma nova experiência política. Mas isso é apenas o impulso, o começo. Como esse processo se desenvolve dependerá de vários aspectos das características estruturais e das interações que cada indivíduo tem com a sociedade.
Para Hochschild (2012), as sociedades capitalistas têm como uma de suas características o “trabalho das emoções”, um jogo por meio do qual nós simulamos certas emoções e escondemos aquilo que sentimos e pensamos verdadeiramente. Isso gera em nossa sociedade, segundo a autora, um sentimento de perda de autenticidade e um impulso por recuperar essa “verdade” das emoções. Em 2013 encontramos muitos jovens tendo suas primeiras experiências políticas e denunciando exatamente a falsidade das relações na política, a demagogia e até a artificialidade de instâncias participativas. O problema segundo Hochschild é que o próprio sistema capitalista já criou formas de responder a essa insatisfação produzindo discursos que simulam a autenticidade. Certamente, isso também ocorre na esfera da política.
A autora desenvolve o argumento do desejo pela autenticidade no contexto das sociedades capitalistas atuais, observando uma crescente vontade de ser autêntico nas relações sociais de diversas ordens (Hochschild, 2012). O fenômeno que ela observa é o retorno renovado da sinceridade como um sentimento valorizado socialmente após um longo período de desvalorização. No momento atual, esse sentimento retorna como vontade por autenticidade, o que na argumentação da autora sobre as relações de trabalho no mundo corporativo, tem mais relação com parecer autêntico, parecer espontâneo ou natural. Ainda assim, coaduna-se com a valorização de discursos que desmascaram aquele que é considerado inautêntico, falso, mentiroso. Esse aspecto pode se relacionar às dinâmicas de oposição constitutivas da afetividade proposta por Mouffe (2018) e nos ajuda a entender como foram possíveis as formações de pares de oposição afetivas no contexto de busca pela autenticidade que marcou o período de 2013 a 2018.
A política autêntica implica a exposição de tudo. Todos os defeitos e incompetências são expostos, causando uma distorção grave na forma como tradicionalmente se opera a política institucional, baseada em jogos de adaptação e estratégia onde a autenticidade não só é insustentável como impossível. Mas também gera distorções nas formas como estamos habituados a lidar com as relações políticas nos públicos não estatais, onde a autenticidade implica não apenas na forma, mas nos princípios que estão em questão e onde, geralmente, nos colocamos em confrontação pela defesa desses princípios.
Os caminhos para a busca da autenticidade dependem das experiências políticas de cada um e das dinâmicas emocionais envolvidas. É possível identificar dois caminhos principais pelos quais a busca pela autenticidade se desenvolveu, a partir de junho de 2013:
i. Uma radicalização de demandas progressistas, em que várias tendências surgiram demandando espaço, afirmação de valores, identidades e disputando quais as formas mais certeiras de ruptura com o status quo. Nesse caminho, há um clima de grande tensão, contestação e até competição interna.
ii. Em outra direção houve a construção de um novo processo político conservador: certas elites descobriram a política fora das instituições se apropriando de um repertório político típico da esquerda, especialmente no uso de demonstrações de rua e da mídia alternativa.
A diferença na segunda direção é que eles construíram um discurso comum de autenticidade baseado na identificação de um problema público comum, notadamente a corrupção na política. Assim, elaborando uma resposta específica para a busca de autenticidade política, eles também reagiram às várias tendências de protesto que gradualmente emergiram da esquerda.
Essas direções de tensionamento nos levaram às situações em que nos encontramos hoje na política: por um lado a busca pela autenticidade política pela via progressiva gerou fragmentação de posições e até competição entre movimentos sociais. Por outro lado, a busca pela autenticidade da direita gerou um discurso unificado de raiva que encontrou corpo na figura política de Jair Bolsonaro, personificando a política autêntica da direita por meio de um discurso simples e de aparente franqueza.
O processo emocional à direita foi mais articulado, circulando em torno de emoções mais parelhas que constituíram um verdadeiro bloco de ódio contra o outro. Ainda que boa parte dos elementos formadores desse discurso tenham sido as notícias falsas, essas operaram no lugar de evidências e cumpriram a função de operadores lógicos que deram, assim, suporte aos raciocínios fortalecedores do ódio. Vale ressaltar que mesmo uma emoção como a raiva, para ser instituída como afeto e durar, precisa encontrar elementos que produzam sentido e cumpram a função de verdade, abastecendo, assim, o ódio incentivado.
O desafio é, portanto, saber como elaborações lógicas se conectam a mecanismos emocionais, construindo um raciocínio que fornece justificativas para a ação. Algo que se processa no indivíduo, mas é fundamentado e alimentado externamente.
Precisamos admitir as emoções, paixões e dinâmicas afetivas que levaram milhões de pessoas pelo Brasil afora em junho de 2013 a protestar contra certas formas de fazer política, buscando progressivamente uma autenticidade na política. Só admitindo e observando esses afetos é que vamos poder chegar a um ponto ainda mais importante que é a compreensão da forma como experiências políticas são construídas e conectadas com as experiências em geral dos sujeitos, as quais constituem sua vida psíquica e também suas formas de conhecer o mundo e de elaborar seus problemas públicos. Se, no contexto analisado, a busca pela política autêntica pode ser entendida como a expectativa de reagregar o desejo (tudo o que esperamos da política) com ação (as formas por meio das quais realizamos a política), talvez a pergunta que devemos fazer seja mais sobre a natureza do desejo público das pessoas e sobre como se pode refundar esse desejo público dentro de nossas sociedades.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
Dewey, John. The theory of emotion. Psychological review, v. 2, n. 1, p. 13, 1895. Disponível em: https://brocku.ca/MeadProject/Dewey/Dewey_1895.html
Dewey, John; ZASK, Joëlle. Le public et ses problèmes. Hermès, La Revue, n. 3, p. 77-91, 2001.
Goodwin, Jeff; Jasper, James; Polletta, Francesca. The return of the repressed: The fall and rise of emotions in social movement theory. Mobilization: An International Quarterly, v. 5, n. 1, p. 65-83, 2000.
Hochschild, Arlie Russell. The managed heart: Commercialization of human feeling. Univ of California Press, 2012.
Jasper, James M. Las emociones y los movimientos sociales: veinte años de teoría e investigación. Revista latinoamericana de estudios sobre cuerpos, emociones y sociedad, v. 3, n. 10, p. 48-68, 2012.
Losekann, Cristiana. Reaproximando o desejo da ação: as emoções e a busca pela experiência política autêntica no contexto político entre os protestos de 2013 e as eleições presidenciais de 2018. In: Francisco Mata Machado Tavares; Luciana Ballestrin; Ricardo Fabrino Mendonça. (Org.). Junho de 2013: sociedade, política e democracia no Brasil. 1ed.Rio de Janeiro: EDUERJ, 2022, v. 1, p. 1-20.
Mouffe, Chantal. The affects of democracy. Eurozine, 2018 Published 23 November 2018
Original in English First published by Critique&Humanism 49 (2018). https://www.eurozine.com/the-affects-of-democracy/
Fontes imagéticas: Português: Manifestações de junho de 2013 em Salvador, Bahia, Brasil, 22 de Junho de 2013 (Créditos Brasil x Itália – Arena fonte Nova). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brasil_x_It%C3%A1lia_-_Arena_fonte_Nova_(9108568833).jpg>. Acesso em 19 jun 2023.
[1] Uma versão ampliada deste texto encontra-se publicada na obra: Francisco Mata Machado Tavares; Luciana Ballestrin; Ricardo Fabrino Mendonça. (Org.). Junho de 2013: sociedade, política e democracia no Brasil. 1ed.Rio de Janeiro: EDUERJ, 2022, v. 1, p. 1-20.
[2] Professora de Ciência Política da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: cristianalosekann@gmail.com