Maria de Fátima Goulart Capela[1]
Márcia Inês Schaefer[2]
Enquanto em organizações da sociedade civil brasileira a atuação de mulheres é elevada, nos espaços de representação política eleitoral o cenário é o inverso: poucas são as mulheres eleitas para cargos do executivo e do legislativo. Considerando que a presença de diversos setores da população nos espaços político-decisórios representa um ganho para a democracia, ações institucionais e sociais são realizadas com vistas a aumentar a presença de mulheres na política eleitoral. Neste texto iremos tratar especificamente sobre cursos de formação política para mulheres realizados por movimentos sociais, coletivos e institutos. O estudo foi apresentado no GT8 – Gênero, raças e identidade do VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política[3], tendo recebido menção honrosa por ter sido avaliado como um dos melhores trabalhos do evento.
Não é novidade que a baixa presença de mulheres nos espaços políticos eleitorais é um fenômeno difundido entre as principais democracias do mundo. Dos 190 países em análise pelo The Inter Parliamentary Union 2021, 51 países possuem entre 31,1% a 65% de representantes políticas mulheres nas Câmaras Baixas[4] em relação a 139 países que possuem de 29,6% a 0% de representação política feminina[5].
Para superar essa desigualdade, há estímulos legais e sociais para aumentar a participação política de mulheres nestes espaços. No caso do Brasil, é possível destacarmos impulsos gerados pela adoção das agendas internacionais capitaneadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), com esforços de instituições políticas e judiciárias, movimentos sociais e organizações da sociedade civil na promoção de ações como campanhas educativas, campanhas publicitárias e o fomento à criação de leis.
Em nosso estudo, optamos por analisar os cursos de formação política promovidos por movimentos sociais, coletivos e institutos, direcionados a mulheres que sejam potenciais candidatas, mas que no momento da formação não necessariamente estejam filiadas a um partido político. A escolha justifica-se devido à significativa notoriedade alcançada por estas iniciativas no espaço público, em especial pelo uso de redes sociais como Instagram, Facebook e Youtube para divulgação de suas atividades, bem como, por estas organizações realizarem um papel tradicionalmente atribuído aos institutos partidários – os quais têm como prerrogativa realizar a formação política de seus filiados. Contudo, o público buscado e alcançado com as formações dessas organizações sociais ultrapassa aquele que é o foco dos partidos políticos, possibilitando, assim, que pessoas que não tenham ainda vínculo partidário possam participar das formações.
Cabe ainda enfatizar que a literatura sobre participação tem destacado o cunho pedagógico da atuação de organizações da sociedade civil, no sentido de promoção de processos de educação política por meio da construção de laços de confiança, cooperação e espírito público (PUTNAM, 1995; WARREN, 2021; LÜCHMANN, 2011). Além disso, destaca-se a importância do entrelaçamento entre participação e representação para o fortalecimento do próprio exercício de representação política (YOUNG, 2006; LÜCHMANN, 2007). Assim, nosso objeto de estudo torna-se de grande relevância para refletir sobre o papel das organizações da sociedade civil na arena eleitoral.
Como ponto de partida para o mapeamento dos cursos de formação de candidatas no Brasil, realizado entre julho e agosto de 2021, refletimos sobre os meios pelos quais as mulheres conseguiriam acesso a informações sobre cursos e palestras, em especial, quando estas não teriam ainda vinculação partidária. Iniciamos o levantamento por meio da plataforma de buscas Google com os descritores “curso de formação política para mulheres”, “mulheres e política”, “eleições e mulheres” e “participação política de mulheres”. Muitos foram os links que apareceram quando realizamos as buscas com essas palavras-chave, todas referentes a notícias sobre mulheres na política, apresentando percentuais de participação, falando da importância da presença de mais mulheres na política, mas nenhum resultado da busca simples direcionou diretamente às plataformas de formação.
Foi por meio das principais notícias[6] sobre mulheres na política eleitoral que encontramos depoimentos das representantes de organizações sociais, institutos e movimentos sociais que promovem cursos de formação de candidatas. Então, com o nome destas organizações, foi possível localizar sites e redes sociais das iniciativas de formação política. As primeiras plataformas que encontramos foram A Tenda das Candidatas, Vote Nelas e Meu voto será feminista[7].
Com o uso da técnica “bola de neve”, foram mapeadas 47 iniciativas que classificamos por anos de criação e por tipo de atividade desempenhada, sendo três os principais tipos de atividades identificadas: 1) Curso de formação política para mulheres (15 iniciativas); 2) Curso de formação política bandeira da renovação e promoção do conhecimento sem recorte específico de gênero (5 iniciativas) e 3) Plataformas de promoção de debates políticos, conscientização sobre participação política e campanhas publicitárias (27 iniciativas)[8].
A partir dos dados levantados, é possível observar a concentração de cursos formativos para as mulheres na política a partir do ano de 2017. Antes deste ano, houve maior registro de cursos sem o recorte de gênero e promoção de campanhas de estímulo à participação.
No contexto geral das 20 iniciativas de formação política, considerando todas as modalidades de formação e sem recorte de gênero, duas foram fundadas em 2012, duas em 2017, seis em 2018, quatro em 2019 e cinco em 2020.
Das 27 iniciativas voltadas para campanhas de conscientização e compartilhamento de conteúdo político, é possível perceber maior surgimento de organizações, com concentração a partir de 2017[9]. Percebe-se que isso corresponde ao período de ampliação das regras eleitorais que asseguraram recursos públicos para as candidaturas femininas e tempo de televisão.
No Quadro 1, na primeira coluna da esquerda para a direita, apresentamos os tipos de atividades de formação política conforme classificação adotada. Nas colunas seguintes, encontram-se os anos de fundação dos coletivos, movimentos ou institutos que promoveram estas atividades de formação.
Quadro 1. Organizações promotoras de atividades de formação política para mulheres
Ao analisar as iniciativas mapeadas e os coletivos, movimentos sociais e institutos que as promovem, observamos que há um papel fundamental das redes sociais para a realização do processo formativo, pois a maioria das iniciativas ocorreu através de plataformas digitais. As páginas das iniciativas mais recentes não possuem registro de atividades presenciais, o que muito se deve, certamente, ao contexto político-eleitoral de pandemia de Covid-19 em que ocorreram as eleições de 2020.
O compartilhamento do conteúdo de formação política possui uma cobertura bastante ampla. Todas as iniciativas disponibilizam material de forma gratuita nos seus sites, a exemplo de manuais sobre como fazer uma campanha, orientações para formular políticas públicas, informações sobre a legislação eleitoral e os direitos das candidatas, vídeos curtos, cursos densos, tutoriais, videoaulas, dicas de comunicação e outros assuntos atinentes ao ambiente da política eleitoral.
Consideramos como positivo o fato de o conteúdo disponibilizado nos sites e redes sociais poder ser acessado de forma gratuita por qualquer pessoa com acesso à internet. Contudo, é necessário problematizar três aspectos importantes: 1) o acesso a essas plataformas; 2) o acesso à internet e 3) o perfil sociodemográfico das selecionadas para participação nos cursos.
Conforme anteriormente salientado, somente a partir de notícias sobre desigualdade de gênero na política é que foi possível encontrar algumas iniciativas e, a partir destas, conseguimos mapear as demais. Se levarmos em conta que várias das mulheres que procuram formação política são, muitas vezes, aquelas que estão ainda em processo de familiarização com a política eleitoral, o difícil acesso pode ser um fator que naturalmente selecione o perfil das participantes e possa gerar, também, efeitos de exclusão do público-alvo: as mulheres mais inexperientes.
Além disso, a forte ênfase na atuação online pressupõe que todas as mulheres com interesse em se tornar candidatas tenham acesso facilitado à internet e entendimento mínimo do uso das redes sociais e outras plataformas. E isso não necessariamente ocorre na prática, uma vez que há o fator da desigualdade digital a ser considerado para problematização no caso brasileiro (HANSEN, 2021).
Ainda, para pesquisas futuras, cumpre conhecer o perfil das mulheres que se inscrevem nestes cursos e que são selecionadas, a quais partidos pertencem (ou pretendem pertencer) e quais os critérios de seleção dos movimentos sociais, coletivos e institutos nos processos seletivos destes cursos de formação. Além disso, acreditamos que conhecer e analisar efeitos quantitativos e qualitativos gerados por essas iniciativas será fundamental para mensurar a efetividade dessas ações.
Para concluir nosso texto, destacamos que enquanto muitos estudos são direcionados para entender as causas do problema da baixa presença de mulheres nos espaços da política eleitoral, a indagação posta aqui buscou focar em outro aspecto: o que está sendo feito para que mais mulheres sejam eleitas? Além de apontar as ausências das mulheres nos espaços de poder, buscamos apresentar dados sobre um conjunto de organizações da sociedade civil que exercem o papel de formação política das mulheres, ressaltando a importância de que essas saibam competir eleitoralmente. Mais do que ensinar sobre política, ensinam a fazer política.
Com o apoio de literatura do campo, mas também atentas ao que circula nas mídias e às ações de instituições políticas e organizações sociais, observamos que, fundamentalmente, há dois tipos de estratégias para incentivar que mais mulheres concorram a cargos políticos: uma pela via legal e institucional por meio da edição de leis, resoluções, programas e políticas, e a outra pela via social, com a atuação de organizações sociais, tais como movimentos, coletivos e institutos, que contribuem para a socialização política das mulheres.
Acreditamos que as ações isoladas têm menor chance de alcançarem resultados mais significativos. Mas o entrecruzamento entre os incentivos legais e institucionais com os incentivos sociais, podem com o decorrer do tempo, favorecer que mais mulheres sejam eleitas. Dessa forma, o envolvimento de diversos atores e instituições na realização de ações para alcançar a igualdade de gênero na política, trabalhando nas várias “raízes do problema”, investindo em informação e formação política, pode vir a possibilitar melhores condições àquelas mulheres que queiram se candidatar a cargos eletivos.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Bibliografia
HANSEN, Jaqueline Resmini. Desigualdades digitais, políticas e sociais no Brasil: um diálogo entre as abordagens do comportamento político e dos estudos de internet. Tese de Doutorado em Ciência Política, UFMG, 2021.
LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn. Associações, participação e representação: combinações e tensões. Lua Nova, n. 84, pp. 141-174, 2011.
________. A representação no interior das experiências de participação. Lua Nova, 70: 139-170, 2007.
PUTNAM, Robert. Bowling Alone:America’s Declining Social Capital. Journal of Democracy, pp. 65-78, January, 1995.
WARREN, M. Inovações democráticas e democracias representativas. Revista Debates, 2021.
YOUNG, I. M. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. 2006, n.67, pp. 139-190.
[1] Doutoranda em Sociologia e Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Comportamento e Instituições Políticas (NECIP/UFSC). Tem interesse em pesquisas sobre partidos políticos e participação política de mulheres. E-mail: fatimacapela.ufsc@gmail.com
[2] Doutoranda em Sociologia e Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Movimentos Sociais (NPMS/UFSC). Tem interesse em pesquisas sobre participação e representação política de minorias sociais, com atenção principal à inclusão social e política das pessoas com deficiência no Brasil. E-mail para contato: marciainesschaefer@gmail.com
[3] Um relato sobre o evento pode ser lido em um texto publicado em março no Boletim Lua Nova: <https://boletimluanova.org/a-ciencia-politica-em-crise-um-relato-do-vii-forum-brasileiro-de-pos-graduacao-em-ciencia-politica/>. Acesso em 25 de maio de 2022.
[4] Optou-se por apresentar dados referentes à Câmara Baixa considerando que muitos países não possuem Câmaras Altas e, portanto, vir a interferir para fins comparativos. Disponível em <https://www.ipu.org/women-in-politics-2021> acesso em 10 de setembro de 2021.
[5] De acordo ainda com os dados do relatório Women in Parliament in 2021, do The Inter Parliamentary Union, este cenário é interpretado de forma positiva porque aponta o aumento de 0,6 pontos percentuais totalizando 26,1% de mulheres parlamentares no mundo. Apesar do aumento percentual, importa destacar que esses valores totais não alcançam 30% que costuma ser o valor percentual estabelecido como mínimo pelas cotas de gênero de participação e, nesse caso, os valores totais podem esconder discrepâncias na distribuição de representação feminina entre os países e regiões. Disponível em <https://www.ipu.org/news/press-releases/2022-03/new-ipu-report-more-women-in-parliament-and-more-countries-with-gender-parity> acesso em 25 de maio de 2022.
[6] Endereço online das reportagens que forneceram as primeiras iniciativas de formação política <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/10/20/iniciativas-se-reunem-para-eleger-mais-mulheres-nestas-eleicoes.htm> e presente em
<https://delas.ig.com.br/comportamento/2021-03-08/especialistas-comentam-aumento-da-participacao-feminina-na-politica.html>. Acesso em 04 de agosto de 2021.
[7] A partir dessas, chegamos nas demais iniciativas, principalmente por haver indicação em rede, na qual os sites disponibilizam os ícones com projetos semelhantes como um sistema de divulgação mútua, a exemplo do Instituto Update. Disponível em <https://www.institutoupdate.org.br/projetos/>. Acesso 27 de janeiro de 2022.
[8] Além dessas 47 iniciativas, mapeamos quatro cursos de formação política para mulheres organizadas por instituições políticas e fundações partidárias: Elas por Elas (PT) (criada em 2018), Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL), Eleições 2020: planejando a vitória da Fundação João Mangabeira (PSB) e Escola Virtual de Cidadania da Câmara dos Deputados. Embora não entrem no escopo do nosso estudo, citamos estas iniciativas, pois foram mapeadas a partir da metodologia adotada neste trabalho, o que não significa que outros institutos partidários ou instituições políticas não promovam cursos de formação política para mulheres candidatas.
[9] Com o detalhamento das informações temos: 2020 com quatro iniciativas, 2019 com duas, 2018 com quatro e 2017 com cinco. Os anos de 2015 contam com a fundação de duas iniciativas, 2012 com três, 2014 e 2013 correspondem a uma iniciativa cada ano, 2010 possui duas, e a mais antiga de todo o mapeamento é a campanha “Mulher seu voto tem poder” organizada pela UBM desde 1993.
Fonte Imagética: Iniciativa Brasilianas. A política do futuro: mulheres no poder. 22 de julho de 2019. Disponível em: <https://www.facebook.com/iniciativabrasilianas/posts/pfbid08E68QYdoWaxAbp9dvKeDRiskPPcbybZZqSL5hVena2z2GGo7jpB2U2xxA5iyi8a4l>. Acesso em: 5 maio 2022.