Renato Ortiz[1]
19 de junho de 2025
Leia a primeira parte do texto aqui.
O processo de politização
Fanon completa seus estudos médicos em 1951. Após trabalhar durante alguns anos na clínica de Saint Alban La Losère, em 1953 parte para Blida (Argélia), onde dirige o hospital psiquiátrico local. A mudança irá transformar-lhe a vida. Na Argélia ele entra em contato com o movimento de libertação, engajando-se na luta revolucionária. Devido a sua posição política, é expulso de Blida em 1957. Fanon parte então para a Tunísia, juntando-se aos militantes argelinos da Frente de Libertação Nacional. Ao lado do trabalho médico, desenvolvido no hospital psiquiátrico de Tunis, torna-se membro da equipe editorial de El Moudjahid, jornal que difunde as diretrizes políticas da FLN. O processo de politização tem implicações substantivas para seu pensamento. Os escritos desse período refletem o clima da guerra anticolonialista e em parte, mas não inteiramente, afastam-se das premissas fenomenológicas anteriores. Fanon aproxima-se do marxismo, e uma nova problemática emerge em seus textos: a questão nacional. O tema integra o “espírito da época”, pois os anos 1950 caracterizam-se sobretudo pela descolonização dos povos africanos e asiáticos. Dien-Bienphu e Bandung são datas-símbolo do declínio do colonialismo tradicional. A guerra da Argélia insere-se dentro deste movimento mais amplo. O nacionalismo árabe não se circunscreve ao mundo argelino; outros países, como a Síria, a Tunísia, o Egito de Nasser, firmam-se como nações independentes diante das antigas metrópoles. Dentro deste quadro, a questão nacional adquire toda sua relevância.
É preciso porém situar a luta anticolonial. Ela não se dá sem contradições, seja em relação ao bloco soviético, seja à teoria marxista. Se Fanon aproxima-se do marxismo, é bem verdade que a assimilação de novas categorias, como a de imperialismo, faz-se no contexto de uma configuração socioeconômica particular. Por isso, sua relação com a esquerda francesa é conflituosa, pois seu pensamento, em contato com a realidade das sociedades periféricas, afasta-se de uma tradição que compreende a questão nacional em termos exclusivamente de classes sociais.
Maxime Rodinson observa com justeza a inexistência de uma “teoria” marxista da nação. Na verdade, as preocupações do marxismo, no que diz respeito à problemática nacional, vincularam-se sobretudo às considerações táticas requeridas nas diferentes fases do movimento proletário internacional. Na medida em que a filosofia da práxis se apresenta como antiparticularista, a problemática nacional encontra-se subordinada aos objetivos mais amplos. Os escritos de Marx e Engels sobre o Estado moderno associam o conceito de classe nacional ao de classe dirigente, o que implica considerar a realidade das nações pelo prisma da ideologia dominante. A dificuldade torna-se ainda maior quando se observa que Marx e Engels tendem muitas vezes a compreender a situação colonial segundo a visão evolucionista em voga no século XIX. Neste sentido, a expansão dos valores burgueses é vista como um processo civilizatório. Torna-se assim problemático entender o movimento de independência dos povos colonizados. A II Internacional retoma os debates em torno da questão nacional, porém, embora existam alguns marxistas que apontem para direções novas, originais (por exemplo Otto Bauer), a tônica da discussão permanece o internacionalismo, do qual Kautsky é o representante mais autorizado. Somente com Lênin o problema do colonialismo e a questão nacional deixam de ser considerados em termos exclusivamente econômicos, ganhando uma dimensão política específica, a autodeterminação dos povos (Lenin, 1973). Entretanto, uma vez que a autodeterminação vincula-se às estratégias da política, a questão nacional passa a ser interpretada segundo os critérios de sua oportunidade e conveniência.
As posições do PCF refletem necessariamente as contradições da própria tradição marxista, assim como os princípios táticos que dominam o cenário comunista internacional. Predomina ainda, junto à esquerda francesa, devido às lutas recentes contra o nazismo, uma certa desconfiança em relação a qualquer tipo de nacionalismo. Tem-se assim um conjunto de elementos que impedem uma melhor compreensão da problemática nacional. Na verdade, teoricamente, a ideologia do PCF não se contrapõe à ideia da independência argelina. No entanto, a formação de uma Argélia livre, autônoma é vista em termos evolucionistas. Os comunistas acreditavam que a nação argelina estaria “em constituição”. Num futuro ainda incerto ela poderia se tornar uma realidade. Na prática, esse entendimento equivalia a uma oposição às diretrizes da FLN. Com efeito, os comunistas retomam o mito da Argélia francesa reinterpretando-o. Eles recuperam a antiga oposição entre colônia de povoamento e colônia de exploração elaborada por Kautsky. Dentro desta perspectiva, o conflito de classes superaria o antagonismo entre colonizador e colonizado. A Argélia pode então ser considerada uma colônia de povoamento na qual a opressão unificaria, sob uma mesma bandeira, trabalhadores franceses e povo colonizado. A noção de argelino adquire portanto uma conotação abrangente: ela englobaria uma população de origem árabe e francesa explorada pela burguesia industrial. Associa-se desta forma o proletariado argelino ao proletariado europeu. Toda política do PCF consistia em alimentar um projeto de assimilação das raças que permitiria no futuro a afirmação da nação argelina.
Em contrapartida, a posição do partido socialista em relação à independência era ainda mais difícil. Minados por um sentimento nacionalista exacerbado, os socialistas procuravam a todo custo impor à Argélia uma estratégia de integração. Próximos da visão evolucionista do século XIX, acreditavam que a colonização trazia em seu bojo um “projeto de civilização”. A guerra é dessa maneira vista como um problema interno do governo francês. Seria suficiente moralizar a política para que os excessos de violência colonial se esgotassem. Por isso, os socialistas se recusam a abandonar o projeto de colonização, sugerindo como solução aos problemas a criação de uma Argélia como unidade federativa vinculada à metrópole francesa.
A situação colonial
Para entender a realidade argelina, Fanon retoma de Sartre (1956) e de Balandier (1955) o conceito de situação colonial. Isto significa que a metrópole e a colônia estariam envolvidas por uma totalidade social, transpassando a todos, colonizadores e colonizados. A dominação colonial manifesta-se assim em vários níveis, estendendo-se da vida ideológica à constituição da personalidade do homem colonizado. Essa totalidade formaria ainda um universo sui generis, específico. Sua primeira característica: a ausência de mediação. O mundo colonial é compartimentado e divide-se em partes excludentes. Por isso Fanon o qualifica como “aristotélico”, “maniqueísta”. Uma comparação com o mundo ocidental revela seu traço essencial:
Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder se interpõe uma variedade de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, pelo contrário, o policial e o soldado, por sua presença imediata, suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e o aconselham, a golpes de coronha e napalm , a não se mexer (Fanon, 1961: 8).
A citação pode ser interpretada em termos gramscianos; o colonialismo define-se pela ausência de uma sociedade civil articulada, e como tal caracteriza-se pela força e não pelo consenso. O embate entre colonizador e colonizado prescinde de qualquer mediação, manifesta-se diretamente. Não há zonas intermediárias para amortecer o conflito. Isso requer inclusive uma reorientação do diagnóstico da luta revolucionária. Dirá Fanon:
Nas colônias, a infraestrutura é igualmente superestrutura. A causa é a consequência: é-se rico porque branco, é-se branco porque rico. Por isso as análises marxistas devem sempre ser levemente modificadas cada vez que se aborda o problema colonial. Não são as usinas, nem as propriedades, nem as contas no banco que caracterizam a classe dirigente. A espécie dirigente é primeiramente aquela que vem de fora, aquela que não se assemelha aos autóctones, os outros (ibid.: 9).
A luta pela libertação deve pois se sustentar sobre forças sociais distintas daquelas analisadas por Marx. Não existe na colônia um operariado desenvolvido, todo o sistema econômico baseia-se na exploração de matérias-primas exportadas para o exterior. Por outro lado, a pequena parcela operária que trabalha nas zonas urbanas é vista como “privilegiada” em relação ao restante da população. A causa da revolução recruta seus adeptos fora da cidade, e se por acaso volta-se para os centros urbanos é junto ao lumpemproletariado que ela ganha forças. A revolução africana é a realização dos “condenados da terra”, dessa população deserdada que ocupa a posição mais ínfima na hierarquia social.
A temática da revolução introduz um aspecto central do pensamento de Fanon: a violência. O tema é em si polêmico. Envolve não apenas a compreensão de uma realidade específica mas nossas próprias posições morais. Por isso é necessário deixar claro sua perspectiva. Contrariamente a Sorel, que pensa a violência como algo inerente à natureza humana, Fanon a considera um traço de determinada situação histórica. Ela é produzida socialmente e de forma alguma poderia ser associada a uma dimensão imanente ao homem. A violência decorre da própria dualidade da situação colonial na qual os opositores afrontam-se diretamente, sem mediações. Sua sedimentação gera uma agressividade que manifesta-se inclusive na atividade psíquica dos indivíduos. Como psiquiatra, Fanon dirá que “os sonhos dos indígenas são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Eu sonho que salto, nado, corro, subo em árvores… Durante a colonização, o colonizado não cessa de se liberar entre nove horas da noite e seis horas da manhã” (Fanon, 1961: 18). Devemos porém diferenciar, como o faz Marcuse, uma violência como defesa da vida e outra como agressão. O movimento de libertação nacional é uma resposta à opressão. Dirá Fanon em linguagem newtoniana:
A violência do regime colonial e a contraviolência do colonizado se equilibram e se respondem numa homogeneidade recíproca extraordinária. O desenvolvimento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial contestado (ibid: 47). A intensidade da reação é igual e contrária à ação violentadora.
O processo de libertação se configura portanto como violento, ele realiza o que Fanon denomina “agressividade atmosférica”, sedimentada pela situação colonial. Entretanto, esta violência-resposta possui uma qualidade nova, ela não é pura violência. Fanon acredita que o movimento de libertação carrega em seu bojo o germe de uma “nova” espécie humana. Sua análise insere-se dentro da perspectiva hegeliana e revela um profundo humanismo, a crença de que o homem só pode se realizar enquanto liberdade. A violência do senhor oprime, mas, como ensina a dialética do senhor e do escravo, a resposta do escravo transcende e abole a sua própria condição de oprimido. A morte do colonizador é também a morte do escravo. Por isso a eliminação da violência só pode ocorrer com a superação do sistema colonial. Neste sentido, as lutas nacionais não dizem respeito apenas à política (a independência dos povos), elas consubstanciariam uma etapa necessária da condição humana.
A questão nacional
Vimos como o conceito de situação colonial tem uma importância capital para o pensamento de Fanon. Entretanto, essa presença opressiva existe para ser negada. Isto significa que o mundo colonial só pode ser corretamente entendido quando contraposto a uma outra referência, a unidade nacional. A nação é a categoria através da qual se realiza sua superação. A independência configura dessa forma o processo de descolonização, a luta contra o colonialismo e, talvez mais importante ainda, a desalienação do próprio homem.
Evidentemente, um primeiro significado da categoria nação é de natureza sociopolítica. Libertação nacional quer dizer criação de um Estado argelino independente. A questão nacional insere-se assim no quadro dual do sistema colonialista. A realidade colonial apresenta-se em sua inteireza e contrasta em bloco com a dominação exterior. A nação argelina representa a polaridade antagônica à nação francesa. Dentro desta perspectiva, o mundo colonial é percebido como homogêneo, sem fissuras ou conflitos. Entretanto, uma leitura cuidadosa de Os condenados da terra revela algumas diferenças em relação aos escritos políticos anteriores. Escrito depois da guerra colonial, o livro introduz algumas preocupações que encontravam-se ausentes do pensamento de Fanon. O capítulo “Desaventuras da consciência nacional” aponta para novos rumos. Contrariamente à totalidade homogênea, postulada anteriormente pelo conceito de situação colonial, temos agora uma nação fragmentada fissurada por interesses díspares. Conflitos surgem entre a burguesia nacional e massas populares, e as desavenças étnicas e religiosas parecem predominar. As manifestações anti-sudanesas no Congo, o racismo contra os senegaleses na Costa do Marfim, a discriminação contra os senegaleses no Congo mostram uma África dilacerada, permeada por contradições tribais. Os conflitos latentes, sufocados pela dominação colonial, emergem, mostrando toda a sua radicalidade e crueza. Sintomático, se a noção de situação colonial tinha permitido a Fanon diagnosticar com perspicácia os problemas de uma sociedade periférica, após a independência ele torna-se insuficiente para captar o processo de construção nacional. Por isso, em seus escritos começam a surgir conceitos oriundos da literatura marxista, em particular a ideia de burguesia nacional. No entanto, para Fanon essa burguesia possui unicamente um papel negativo. Ela seria apenas uma classe incapaz de conduzir organicamente o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos. Ele afirma:
A vocação da burguesia nacional autêntica nos países subdesenvolvidos seria de se negar enquanto burguesia, de se negar enquanto instrumento do capital para se tornar totalmente escrava do capital revolucionário que constitui o povo (ibid.: 96).
Para acrescentar logo em seguida: a burguesia trilha um caminho antinacional para se transformar “numa burguesia burguesa, estupidamente, cinicamente burguesa”. Mas poderia ser de outra forma? Seria plausível imaginar uma classe que se negasse enquanto tal? Não bastaria a ela aplicar a dialética do senhor e do escravo para lembrar que toda negação necessita de seu contrário?
Uma ambiguidade se introduz na análise proposta. Penso que ela decorre da própria ideia que Fanon alimenta em relação à construção nacional. Na verdade, o conceito de nação não é apenas político-social, ele possui um significado ontológico. A nação é para Fanon uma utopia. Talvez a influência de Sartre tenha acentuado essa dimensão de “projeto”, o que faz que a utopia nacional não coincida com a realidade nacional. Quando Fanon, por exemplo, afirma que a velha Argélia está morta, ele procura imediatamente vinculá-la ao nascimento de um novo homem:
As relações novas não são a substituição de uma barbárie por outra, de um esmagamento do homem por outro esmagamento do homem. O que nós argelinos queremos é descobrir o homem por trás do colonizador; este homem é ao mesmo tempo ordenador e vítima de um sistema que o havia sufocado e reduzido ao silêncio (Fanon, 1966).
Neste sentido, a superação da situação colonial reabilita inclusive o antigo opressor. Por isso, a questão nacional fundamenta-se na existência do homem em geral, contrapondo-se ao nacionalismo e ao chauvinismo. Enquanto totalidade indivisa, isto é, como utopia, ela é o projeto de realização de uma “outra” sociedade. Ao criticar a burguesia nacional Fanon observa: “A consciência nacional deveria ser a cristalização das aspirações mais íntimas do conjunto do povo, produto mais palpável da mobilização popular” (Fanon, 1961: 95). A citação, enunciada no condicional, é reveladora. Ela nos remete para um tempo futuro. Neste sentido, os conflitos entre classes e etnias não decorrem tanto da multiplicidade do real, mas sobretudo da inadequação entre utopia e realidade. Por isso Fanon pode imaginar a existência de uma burguesia que em princípio recusaria negar-se a si mesma. Ele denuncia o espírito chauvinista dessa burguesia, desmistifica sua política nacionalista de “africanização dos quadros”, resolvendo-se apenas pela afirmação de um humanismo radical. O projeto se sobrepõe assim à realidade, reconduzindo Fanon às suas antigas preocupações sobre a autenticidade do homem. Seja ele negro ou colonizado, senhor ou escravo, sua realização como liberdade, seria uma promessa, uma esperança, uma abertura para um tempo futuro.
Referências bibliográficas
BALANDIER, Georges. Sociologie actuelle de l’Afrique Noire. 1. ed. Paris, PUF, 1955.
FANON, Frantz. Les damnés de la Terre. Paris, Maspero, 1961.
FANON, Frantz. Sociologie d’une révolution. Paris, Maspero, 1966.
KAUTSKY, Karl. Socialismo y política colonial. In: MARMORA, Leopoldo (Org.). La Internacional y el problema nacional y colonial. Mexico, Cuadernos Pasado y Presente, 1978.
LENIN, Vladimir. Obras escogidas. Buenos Aires, Cartago, 1973, t. III e VI.
MARCUSE, Herbert. The problems of violence and the radical opposition. In: Five Lectures. Boston, Beacon Press, 1970.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Marxisme et Algérie. Paris, 10/18, 1976.
RODINSON, Maxime. El marxismo y la nación. In: Sobre la cuestión nacional. Barcelona, Anagrama, 1975.
SARTRE, Jean Paul. Le colonialisme est un système. Les Temps Modernes, n. 123, março–abril 1956.
SOREL, Georges. Refléxions sur la violence. Paris, Marcel Riviére, 1936.
[1] Departamento de Sociologia – Universidade Estdadual de Campinas (UNICAMP) – Pesquisador do CNPq – Campinas – Brasil – rena1311@terra.com.br