Johnny Daniel M. Nogueira[1]
No dia 29 de junho de 2023, o fórum permanente Democracia, Direitos e Desenvolvimento (3D) promoveu, em parceria com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e o Centro Internacional Celso Furtado (CICEF), a terceira mesa de discussão, intitulada A difícil República. O convidado para promover o debate foi o professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Gabriel Cohn, que abordou o tema do seu último livro, publicado em 2015, pela editora Azougue, intitulado: A difícil República. A mesa contou com o debate dos professores André Botelho (UFRJ) e Leonardo Belinelli de Brito (UFRRJ) e mediação Maria Mello de Malta (UFRJ).
O fórum 3D, cujo subtítulo é Desafios do tempo presente, constitui-se como uma rede nacional de pesquisadoras/es, em contato há alguns anos, que trabalham nas linhas de teoria política, pensamento político brasileiro, pensamento econômico brasileiro, entre outras. Seu intuito é manter um projeto comum de reflexão sobre os desafios da atualidade, estimulando a produção intelectual, de memória e diálogo com a sociedade. Atualmente é coordenado pelos professores José Artigas de Godoy (UFPB), Carlos Pinkusfeld Bastos (UFRJ) e a professora Vera Cepêda (UFSCar).
O propósito deste relato é salientar os pontos-chaves do debate que ocorreu. Dado que não é possível abordar a totalidade da profundidade e dos pormenores da discussão, irei enfatizar os principais temas discutidos.
A dinâmica da mesa se desenvolveu primeiro com os comentários dos debatedores a respeito da obra de Cohn. Leonardo Belinelli (UFRRJ) deu início ao debate ao introduzir sua perspectiva, que se baseou na conexão entre as ideias de Cohn e a abordagem da Escola de Sociologia Paulista, como exposto em um artigo de sua autoria publicado em 2020.[2] Além disso, incluiu observações adicionais provenientes da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, com destaque para as contribuições de Theodor Adorno (1903-1969), renomado sociólogo alemão que Gabriel Cohn apresentou em um de seus cursos, cujas aulas foram publicadas pela editora UNESP em 2003.[3]
O tema da República tem sido uma constante no pensamento político e social brasileiro, especialmente após a promulgação da Constituição de 1988. A difícil República é uma obra de um intelectual profundamente envolvido com o destino da sociedade em que vive. O que realmente distingue a contribuição teórica de Cohn é a sua ambição. Embora a obra aborde questões relacionadas ao Brasil contemporâneo, é necessário ir além e compreender que o país em análise não se limita apenas à contemporaneidade. Ela se estende a processos sociais de longa duração, com suas diversas temporalidades, em um esforço concentrado para conectar o todo e suas partes, por meio da análise do que é essencial nessas interligações. Nesse sentido, afirma Belinelli que “são as exigências e dificuldades da vida civilizada e da República em contextos como o brasileiro que formam o núcleo de artigos da obra.”
A análise de processos sociais de longa duração é uma abordagem teórica que Cohn adota da Escola de Frankfurt ao formular sua concepção da Sociologia. Ele ressalta que, desde os tempos clássicos, a Sociologia tem se preocupado com as transformações sociais de maneira abrangente. Inspirado por Adorno, Cohn argumenta que a Sociologia se caracteriza pela busca do que é fundamental na vida social e pela compreensão de como os processos sociais estão intrinsecamente ligados a questões cruciais para a sobrevivência e a liberdade da espécie humana. Para cumprir esse papel, a Sociologia deve se envolver em diálogo com outras disciplinas, uma característica proeminente da Escola Paulista de Sociologia.
Em um tema com debate de longa data e que contou com a participação de cientistas políticos, Cohn empreende uma análise sociológica da República, habilmente captando também sua dimensão política. O sociólogo brasileiro atribui à República o significado de uma existência livre e a relaciona intimamente com a democracia, não apenas em seu sentido institucional, mas como um padrão de sociabilidade, ou seja, como um modo de vida. A difícil República é uma coletânea de ensaios que, mais do que se preocupar com questões estilísticas, enfatiza sutis distinções e nuances no entendimento do tema. Ou, conforme a fala de Belinelli, “a forma ensaio é reveladora porque capta aspectos mais finos de processos sociais de fundo das experiências sociais”, aspecto chave para a leitura do livro.
O palestrante continua destacando que a abordagem de Gabriel Cohn no debate sobre a República se concentra no aspecto da civilidade, que ele define como a habilidade de se relacionar com o outro de maneira completa e com total respeito, representando assim um modo específico de agir e uma orientação de conduta. A República, para Cohn, é tanto uma forma de sociabilidade quanto uma forma de individualidade, o que, por sua vez, levanta questionamentos sobre os limites da ação dos indivíduos.
É crucial ter em mente essa concepção da República como um modo de vida para a construção de uma esfera pública plena no Brasil. Esta tem sido, conforme a obra de Gabriel Cohn, uma esfera possessiva, predatória e punitiva, estruturada em torno de uma sociedade em que as instituições políticas são permeáveis e as relações sociais frágeis, ambas influenciadas pela simulação e pela fachada da ordem. Isso resulta no que Cohn chama de “democracia senhorial”, ressaltando que o que está em jogo são os limites da ação individual e coletiva.
Embora o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque não seja mencionado, como observa Belinelli, é possível ler a obra de Cohn como um sutil diálogo com os temas da cordialidade e da autocracia burguesa, propostos por Florestan Fernandes e Roberto Schwarcz. Belinelli conclui seu comentário de abertura da mesa com uma pergunta intrigante dirigida a Gabriel Cohn: considerando a afirmação de Adorno de que a civilidade é uma forma de sociabilidade e individualidade originada em uma fase muito específica da transição do feudalismo para o capitalismo, como é possível analisar o caso brasileiro que não seguiu essa sequência histórica?
O comentário seguinte sobre a obra foi feito por André Botelho, professor da UFRJ, que começou sua intervenção parabenizando Gabriel Cohn pelo livro e oferecendo algumas observações breves. Sua abordagem se baseou na ideia de que Cohn não se limita a examinar apenas o produto, ou seja, a vida social, mas sim o modo como essa vida social é produzida, especialmente dentro do contexto republicano, que se apresenta como um desafio significativo para a realidade brasileira.
Botelho ressalta que Gabriel Cohn coloca questões profundamente desafiadoras para os pesquisadores que estudam o tema, mas o faz de forma acessível. Cohn é notavelmente bem-sucedido ao realizar uma brilhante mediação entre a teoria social e o desafio de compreender o Brasil. Sua base teórica, como também enfatizado por Belinelli em seu comentário anterior, encontra inspiração em Adorno e seus aforismos.
A obra de Cohn representa uma transição de uma perspectiva condicionada socialmente para um programa de pesquisa crítico que toma forma por meio de uma notável capacidade de absorção e criação conceitual. Se revela um mestre na reconstrução histórica, enxergando o passado não como um mero fluxo, mas como um campo de oportunidades que se apresentam de maneira específica, permitindo a ação racional e consciente por parte dos indivíduos. Da mesma forma, ele percebe o presente como um campo de forças em constante disputa, enquanto o futuro se revela como um conjunto de possibilidades em potencial.
O livro de Cohn aborda um dos temas fundamentais da teoria sociológica: como é possível estabelecer uma ordem social que não dependa da fraude ou da força física violenta. O problema da ordem social costumava ser predominantemente associado ao pensamento conservador, mas Cohn demonstra que vai além dessa forma de pensamento, sendo intrínseco à existência da sociedade como um todo. A questão central que permeia cada linha dos textos de Cohn é: como a vida social pode existir? Esta é uma indagação que ele revisita constantemente, disponibilizando-nos uma oportunidade de desnaturalizar noções básicas que, mesmo para pesquisadores experientes, muitas vezes são adotadas sem uma reflexão profunda.
Ao concluir seu comentário, André Botelho destaca a importância de pensar sobre a “vida política”. Ele observa que os dois termos, “vida” e “política”, não são conceitos triviais e que Gabriel Cohn os aborda de maneira conjunta. Botelho ressalta que Cohn reconhece a interconexão entre “vida” e “política” como uma unidade, o que torna explícito o conteúdo das normatividades, sem recorrer a construções fantasiosas. Isso ajuda a revelar as tendências supostamente realistas de posições em que as referências empíricas ocultam as implicações normativas subjacentes. Essa é uma das lições mais notáveis de sua obra.
Após os comentários realizados durante o debate, Gabriel Cohn, ao tomar a palavra, começa expressando sua afinidade com o tema das diferentes configurações da vida social e os meios pelos quais são produzidas, retomando o ponto abordado por Botelho. Ele destaca que a análise das formas de sociabilidade ao longo das diversas temporalidades representa um tema de grande relevância e central na Sociologia.
Quando aborda o conceito de forma, Cohn direciona nossa atenção para a questão do ensaio como estilo de escrita, possivelmente inspirado pelo renomado Theodor Adorno e seu famoso ensaio O Ensaio como Forma. Para o autor homenageado, ao definir o ensaio, ele o descreve primordialmente como uma tentativa, uma exploração, uma busca por compreender até onde se pode chegar ao discutir determinado assunto. Essa pergunta desafiadora coloca o indivíduo diante da tarefa de se expressar sobre um tema sem depender estritamente de dados empíricos ou bibliografias, entre outros recursos. No contexto atual, Cohn critica a escassez de textos ensaísticos e observa que muitos colegas reagem com aversão à mera menção da palavra “ensaio”, o que, em sua perspectiva, resulta na subestimação de outras formas de conhecimento. Ele caracteriza essa atitude como “uma armadilha”. A incursão na reflexão, em certos momentos, requer sair das convenções impostas pela ciência tradicional.
Cohn deixa ao seu público uma questão intrigante, uma reflexão que ele próprio confessa não ter conseguido abordar totalmente, sobre a ideia de experiência social. O que exatamente significa falar de uma experiência social? Ele a define como “a capacidade de sair de si mesmo, mergulhar no mundo e retornar enriquecido”. O sociólogo brasileiro mostra palavras de incerteza quanto à preservação dessa capacidade no mundo contemporâneo.
Além disso, Cohn compartilha outra paixão que o inspira: o conceito de latência. Este termo, longe de ser trivial, oferece uma abertura para analisar a sociedade em várias dimensões. É um tema destacado nas Ciências Sociais, especialmente na Sociologia dos Estados Unidos, evocando a memória de acadêmicos notáveis como Robert Merton e Parsons.
Ao discutir os temas essenciais que moldam sua abordagem, o autor levanta uma questão intrigante sobre a complexidade de descrever os padrões de ação e pensamento, especialmente quando se considera a democracia como um modo de vida, um estilo de existência. Nesse contexto, ele faz menção ao seu mentor, Florestan Fernandes, que foi pioneiro ao introduzir esse tema no Brasil.
Caminhando em seu comentário sobre a história social do Brasil, suas formas de convivência e estruturas organizacionais, o autor levanta a seguinte indagação: de que maneira a ligação histórica entre a monocultura expansiva e o trabalho escravo ressoa em nossas realidades contemporâneas, com suas devidas adaptações? O que o autor pretende sugerir é que esse modelo de organização do espaço, da economia e das relações laborais coloca de forma bastante evidente a questão dos limites. Isso envolve limites para ação e percepção do mundo, que desafia a ideia de uma abundância inesgotável, ou seja, a noção de que não há motivo para a pobreza, já que as condições para a riqueza existem e basta buscá-las. Essa questão tem influenciado a mentalidade das pessoas ao longo do tempo e continua a alimentar grande parte do nosso imaginário social.
A questão dos limites da ação deve ser contextualizada em uma trajetória específica. Ela está intrinsecamente ligada a um percurso que é caracterizado por múltiplas variações. Essa abordagem foi inicialmente proposta por Marx e, segundo Cohn, brilhantemente compreendida por Gramsci. Ambos perceberam que os grandes processos sociais não seguem uma linha de desenvolvimento linear e direta, mas, em vez disso, são representados de diversas maneiras. Não é possível analisar o mundo social de forma direta e clara; tudo é filtrado e passa por múltiplas formas de refração. Isso impõe um desafio complexo. A ideia central é que não podemos simplesmente chegar a um momento de audácia para apreender os processos sociais e históricos, mas sim percorrer toda uma constelação que, em última instância, nos conduzem ao destino desejado, passando por várias imagens ao longo do caminho.
Em outras palavras, não adianta afirmar que o passado escravista faz com que os atores hoje ajam como se fossem senhores de escravos, o problema real é saber quais são os movimentos e as dinâmicas que produzem essa percepção. Por que, entre as múltiplas visões possíveis que se apresentam no mundo para o desenlace de uma configuração social e política, uma delas acaba sendo a selecionada?
Pensar o modo como essas relações e outras relações foram e são produzidas, essa é uma das mais belas lições que Cohn ensina aos sociólogos e sociólogas ao encerrar a palestra sobre o seu livro sobre a nossa (ainda) difícil República.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: UNESP, 2003.
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Adorno, Theodor, Notas de Literatura I. Ed. 34, 2003, (págs 13-45).
BELINELLI, Leonardo Octávio. Gabriel Cohn e a Escola Paulista de Sociologia. Revista Sociologia e Antropologia, v.10.02: 467–492, mai.–ago., 2020.
COHN, Gabriel. A difícil República. Rio de Janeiro, Azougue, 2023.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Integrante do grupo de estudos Ideias e Intelectuais para o Desenvolvimento e a Democracia (CNPq/UFSCar). Email: johnny.cp.ufscar@gmail.com
[2] BELINELLI, Leonardo Octávio. Gabriel Cohn e a Escola Paulista de Sociologia. Revista Sociologia e Antropologia, v.10.02: 467–492, mai.–ago., 2020.
[3] ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: UNESP, 2003.