Júlia Hirschle[1]
Lidiane Vieira[2]
Mariane Matos[3]
O trabalho na esfera doméstica dificilmente é compreendido e valorizado enquanto tal. As atividades repetitivas que implicam a reprodução da vida, também, dificilmente são remuneradas. Ninguém nos paga por lavar nossas roupas e de nossa família, limpar o chão das nossas casas e cozinhar diariamente para todos. No entanto, nenhum de nós é capaz de viver sem que essas tarefas sejam cumpridas. Por isso, o trabalho no ambiente doméstico é invisível: está presente no nosso cotidiano, mas ocupa um não-lugar. Isto decorre do fato de que não o enxergamos como um trabalho produtivo,mas seria possível pensar a organização e o andar da economia e do mundo do trabalho formal na ausência de pessoas responsáveis pelas atividades domésticas?
Em sua última edição, o ENEM propôs o seguinte tema para redação: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Indiscutivelmente, o país atravessa um período de diversos avanços em relação à igualdade de gênero e de raça. Apesar disso, a divisão do trabalho de cuidado, não remunerado e mal pago, ainda é majoritariamente assumido por mulheres e meninas, especialmente as em situação de pobreza. A este desafio, soma-se a maior vulnerabilidade das mulheres negras. Diante de informações e dados, os estudantes foram convidados a refletir e propor uma intervenção a esta questão social, política e econômica que respeitasse os direitos humanos. Este debate é pauta central do feminismo, e principalmente do feminismo negro, ao lançar luz sobre a desigual responsabilização das mulheres pelo cuidado com as crianças, os idosos, os deficientes e o ambiente doméstico.
Recentemente, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, elaborada e executada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), incorporou uma série de dados sobre atividades não remuneradas – entre essas, afazeres domésticos e o cuidado de pessoas. Segundo o Instituto, esses trabalhos são “invisíveis” porque podem passar despercebidos o tempo dedicado a eles. Os dados coletados mostram que em 2022 a população com 14 anos ou mais dedicou, em média, 17 horas semanais para atividades domésticas e/ou cuidado de pessoas. O mais interessante é que, entre estas, há uma clivagem de gênero: enquanto homens dedicaram 11,7 horas semanais, as mulheres dedicaram 21,3 horas semanais – quase o dobro do tempo de trabalho. Além disso, os dados apontam que pelo menos 85,4% da população de 14 anos ou mais realizaram afazeres domésticos no próprio domicílio ou em domicílio de parente. Daqui podemos tirar duas conclusões um tanto óbvias: os afazeres domésticos são parte fundamental da vida ativa da população brasileira, mas esta atividade é fundamentalmente exercida por mulheres.
Outros destaques importantes da PNAD: as mulheres são as maiores responsáveis por atividades como preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar a louça, cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos e limpar ou arrumar o domicílio, a garagem, o quintal ou o jardim. Além disso, se responsabilizam por esses trabalhos quando moram sozinhas, mas especialmente em coabitação ou com cônjuge – aqui, a taxa para os homens cai consideravelmente. Isto é, a divisão sexual do trabalho no ambiente doméstico é uma realidade pouco inalterada. O aumento das mulheres no mercado de trabalho formal não foi capaz de modificar o cenário, como muitos esperavam há décadas atrás. Isso porque os dados mostram que as mulheres ocupadas dedicaram, em média, 6,8 horas a mais que os homens ocupados aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas. Somado a isso, as trabalhadoras domésticas remuneradas ainda são predominantemente mulheres negras e pobres (Dados da PNAD Contínua/IBGE, 2022). Este cenário nos remete a uma importante e clássica obra de Susan Moller Okin, Justiça, Gênero e a Família. Neste livro a autora se pergunta: gênero é justo?
Okin é uma feminista e filósofa política da Nova Zelândia que marcou as discussões sobre justiça e teoria política normativa no século passado. Seu livro foi escrito e lançado no final dos anos 1980 na busca por um diálogo com a literatura que estava pensando a justiça naquele momento. O cerne da sua reflexão está na importância da igualdade para as democracias, nessas sociedades em que as pessoas não são – ou não deveriam ser – constrangidas pelas suas diferenças inatas. Isto significa que podem conquistar diferentes posições no mercado de trabalho, nas instituições escolares, entre outros, de acordo com seus talentos, desejos e predisposições. No entanto, o que a autora observa é que as democracias, ainda que assentadas no princípio da igualdade, resguardam desigualdades estruturantes, entre elas as de gênero.
As teorias da justiça são um campo de estudo específico dentro da grande área do que chamamos teoria política normativa. Essas reflexões partem de um exercício mental de abstração para sistematizar possíveis princípios organizadores de uma sociedade justa. Nesse caso especificamente, a questão central dessas teorias é: como a igualdade e possíveis desigualdades legítimas devem organizar a democracia? John Rawls, filósofo político e principal referencial de Okin, propõe que a sociedade seja regulada pela igualdade de oportunidades e pela justiça. Okin argumenta que, apesar desses teóricos da justiça não tratarem de gênero diretamente, seus trabalhos dependem de uma leitura generificada da sociedade.
A maioria dos teóricos da justiça concebem a família como justa e a pressupõe como primeiro espaço de aprendizado moral. Diante da importância do papel formativo que o ambiente familiar possui na vida de todas as pessoas, Okin contesta a sua configuração profundamente marcada por gênero. Como foi apresentado inicialmente, os dados apontam que a divisão sexual do trabalho doméstico no ambiente familiar é desigual, portanto, injusta. A audacidade de Okin reside exatamente no seu questionamento sobre essa estrutura. Para ela, a distribuição do trabalho não pago na família é a pedra fundamental das desigualdades vividas pelas mulheres, porque estrutura suas oportunidades de vida. Por isso, a autora se dedica a pensar como a família deve ser objeto da justiça.
Como mencionado acima, é comum que a família seja compreendida e tratada como um ambiente separado dos conflitos sociais. Nesse sentido, a família comporia exclusivamente a esfera privada: o lugar da vida reprodutiva e doméstica. Desse modo, a esfera familiar é considerada uma relação naturalmente justa, de interesses compartilhados, regulados pelo amor sincero e sem a necessidade de qualquer intervenção estatal e/ou política. Em suma, a família seria assunto privado, não público. O pensamento feminista, como um todo, e a contribuição de Okin em particular, vão enfrentar essa ideia com a seguinte afirmação: “O pessoal é político”. Essa formulação representa a compreensão da interdependência entre o público e o privado, já que os padrões estabelecidos numa dessas esferas têm impactos vantajosos e desvantajosos para as relações e oportunidades estabelecidas na outra. Portanto, exigências de dedicação ao trabalho formal só são possíveis de serem cumpridas porque as tarefas do cuidado estão sendo exercidas por outras pessoas.
A idealização da família como âmbito inviolável resultou em uma maior desproteção dos indivíduos mais vulneráveis nessa relação, as mulheres e as crianças. O que a autora argumenta é que, na família, as mulheres carregam há séculos a responsabilidade do trabalho doméstico e do cuidado. Além disso, pode ser um lugar de violências, agressões e adoecimento, mascarados sob o signo do afeto e da privacidade. Na concepção de Okin, as disparidades de gênero nesse ambiente são o maior obstáculo para a igualdade de oportunidades, porque o lugar que ocupamos na família depende do nosso gênero e essa posição constitui quem nos tornamos.
Atualmente aparatos legais como a Lei Maria da Penha (nº 11.340) e Lei da Palmada (nº 13.010) demonstram a importância da sociedade poder “meter a colher” em conflitos familiares. Para além da violência física, o domínio familiar e doméstico também é lugar de reprodução de desigualdades que afetam os postos de poder no mundo público. Afinal, o fato de mulheres dedicarem mais tempo a tarefas domésticas e ao cuidado de terceiros, como demonstram os dados do PNAD, reforça que gênero não é apenas uma questão simbólica, mas material. O desequilíbrio na distribuição dos afazeres domésticos entre os gêneros produz desvantagens para as mulheres e assimetrias públicas.
Então, se na família estão as raízes das desigualdades sociais e econômicas, para alcançarmos uma sociedade mais justa precisamos aboli-la? A resposta de Okin é não! Segundo a autora, “Nós nos recusamos a desistir da instituição da família e nos recusamos a aceitar a divisão do trabalho entre os sexos como natural e imutável” (Okin, 1989, p. 125). Ela conclui que gênero implica em desigualdade e, sendo assim, o caminho para a justiça estaria em sua abolição. O gênero é um caso de domínio onipresente, seu impacto na distribuição do trabalho doméstico estrutura inclusive as posições no mercado de trabalho. Embora seja invisível e não remunerado, esta função movimenta a economia ao garantir que trabalhadores produtivos estejam aptos a exercerem suas funções.
A discussão sobre a relação entre economia e divisão sexual do trabalho nesse campo é recente. Pensar justiça é também refletir sobre a divisão dos encargos e benefícios na sociedade. Como podemos dizer que as mulheres possuem as mesmas oportunidades de carreira que os homens se semanalmente estas se dedicam 9,6 horas a mais aos afazeres domésticos? Segundo demonstra a PNAD, em 2022, as mulheres realizaram a maioria dos trabalhos domésticos independentemente da raça — mulheres brancas (90,5%), negras (91,9%) e pardas (91,9%). Por isso, é fundamental que mais políticas sejam dedicadas para equalizar a distribuição do trabalho nas esferas pública e privada. Importante ressaltar que a inserção de mulheres negras no mercado de trabalho acontece de maneira desigual se comparado aos demais grupos demográficos. Microdados da PNADC/IBGE demonstram que mulheres negras possuem baixa participação no mercado como um todo e menor representação entre os 10% com maiores rendimentos, enquanto homens brancos ocupam o topo da lista, seguidos por mulheres brancas. Além disso, esse grupo também apresenta altos índices de desemprego e informalidade.
Gênero, interseccionado por raça, classe, idade, regionalidade, entre outros marcadores, ameaça o princípio de igualdade resguardado pelas teorias da justiça – e tão fundamental para as sociedades democráticas. Se a dedicação dos homens ao emprego depende necessariamente de mulheres que, mesmo com múltiplas jornadas, são responsáveis pela esfera privada, esse não é um problema somente das feministas. Precisamos nos indagar, enquanto sociedade, como as responsabilidades do cuidado devem ser exercidas, distribuídas e sob quais condições. Como Okin propôs, “Um futuro justo seria aquele sem gênero. Em suas estruturas e práticas sociais, o sexo de alguém não teria mais relevância do que a cor dos olhos ou o comprimento dos dedos dos pés” (Okin, 1989, p. 171). Nesse sentido, a busca por igualdade de gênero é um projeto de aperfeiçoamento das democracias, por meio de políticas que assegurem que nossas desigualdades inatas não impactem tão profundamente em nossas oportunidades de vida.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Cientista social e mestra em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), atualmente doutoranda em ciência política pelo mesmo instituto. Email: juliathr@iesp.uerj.br
[2] Doutora em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), atualmente é pós-doc no mesmo instituto. Email: lidianerevieira@gmail.com
[3] Mestra em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense), atualmente doutoranda em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Email: marianecmatos@gmail.com
Fonte Imagética: Agência Brasil. Dupla jornada para mulheres leva a ciclo de pobreza. 11 ago. 2023. Fotografia de Arquivo/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-08/dupla-jornada-para-mulheres-leva-ciclo-de-pobreza>. Acesso em 12 nov. 2023.