Alex Sander Pires[1]
O honroso convite para colaborar com o Boletim Lua Nova sobre a vida, a obra e o legado de Hans Kelsen motivado pelo meio século de sua morte, prontamente aceito, impôs um desafio: como apresentar a vasta, multidisciplinar, interdisciplinar, densa, crítica, complexa e repetitiva produção intelectual de um indivíduo emblemático, comprometido com os valores e desafios de seu tempo, além de empenhado cientificamente na pretensão de solucionar problemas sociais a partir da independência metódica do Direito visto como norma (para além da lei e da ordem) em perspectiva de fortalecimento do direito interno do Estado diante da necessária reconstrução do Direito Internacional no entre — e pós — guerras mundiais?
Nas poucas páginas a seguir, poder-se-ia ser conservador e falar sobre as características pessoais (provir de família judia, ser simpatizante da social-democracia, cultuar a autoridade do Tribunal Constitucional, defender a supremacia da norma constitucional sobre os poderes constituídos do Estado, e sustentar o fortalecimento das normas de Direito Internacional em diálogo com o ordenamento interno dos Estados, sempre em atenção aos valores opostos da campanha sectária de um nacional-socialismo) ou autômato (referenciar o princípio da pureza diante da autoridade do Direito visto como Ciência em atenção à compatibilidade vertical possibilitada pela estrutura escalonada da norma jurídica que admite ser o Direito capaz de se constituir por si mesmo, o que permite visitar a legalidade do sistema de leis, a lógica por detrás da norma posta, a coerência da análise pelas constituições históricas e a controvérsia sobre a norma hipotética fundamental enquanto única norma suposta — ou pressuposta). As duas hipóteses, no entanto, seriam repetições do que já se disse, até com mais detalhes e quiçá mais qualidade; a intenção é outra.
Qual é, então, a proposta deste ensaio? A intenção é de romper com a leitura tradicionalmente reproduzida no Brasil que restringe a vasta produção de Hans Kelsen a Reine Rechtslehre (Teoria Pura do Direito), perseguindo-se as nuances da Grundnorm (norma básica/fundamental), renegando-se o fato de que foram produzidos quase quatrocentos textos, muitos dos quais traduzidos a vinte e quatro idiomas. Fugindo de tal modelo, vê-se que os contributos podem ser considerados como ilimitados e atemporais, ou, ao menos, polimórficos.
Aos que considerarem radical esta afirmação, sugere-se, de início, a leitura dos prefácios que inauguram a Reine Rechtslehre[2], em que, entre as duas edições (1934 e 1960), se pode perceber que, embora seja mantida a fidelidade ao princípio da pureza concebido para afastar qualquer elemento estranho ao Direito (tais quais as ideologias políticas e elementos de direito natural) em sua busca de resultados científicos centrados na objetividade e exatidão, há um desenvolvimento da teoria com o subsequente alargamento e reelaboração dos temas e institutos em análise, cujo ponto nodal admite a discussão se não se trata da passagem de um positivismo jurídico para um normativismo legal[3] preocupado com a ordem social.
Esta reflexão já desloca a análise para inúmeros caminhos, muitos dos quais já haviam sido previamente considerados na obra Hauptprobleme der Staatsrechtslehre[4] (Principais Problemas na Teoria do Direito Público), de 1911, quando Kelsen pondera se o Direito pertenceria às ciências sociais ou às ciências naturais, e, mais, se haveria realmente a divisão, partindo-se da razoável lógica pela qual as próprias relações humanas em sociedade já seriam naturais.
Neste ponto em particular, costuma-se apresentar Hans Kelsen como um anti-sociólogo, considerando a incompatibilidade entre a atuação do sociólogo e do jurista centrado no normativismo puro. Mas, será que Hans Kelsen seria realmente um opositor da Sociologia? Ou, em alternativa, não seria esta visão míope diante da inversão do paradigma do conhecimento imposto pela abertura racional iluminista de que cada área do saber deveria ter um método efetivamente comprovado para se autodeterminar como Ciência? E, mais, os debates não teriam contribuído para o fortalecimento tanto da Ciência do Direito como da Sociologia do Direito?
Atento à questão, Charles Eisenman (1958, p. 60) põe em causa aqueles que veem Kelsen simplesmente como anti-sociológo por ser um jurista dedicado à defesa do normativismo puro, sugerindo o desconhecimento por completo de sua obra. O alerta se justifica nos debates teóricos travados por Kelsen com a “escola das ciências sociais” focada na observação dos fatos sociais em perspectiva geral (Sociologia) e/ou pontual centrada na norma jurídica dentre as demais normas sociais (Sociologia do Direito), quer no âmbito do Zur Soziologie des Rechts. Kritische Bemerkungen[5] (Sobre a Sociologia do Direito. Observações críticas) opondo-se a Hermann Katorowicz, como o Eine Grundlegung der Rechtssoziologie[6] (Fundamentos da Sociologia do Direito) em resposta a Eugen Ehrlich.
De fato, os debates de Kelsen com Kantorowicz e Ehrlich permitem ao menos considerar que a Sociologia do Direito se desenvolveu a partir da refutação de Kelsen à forma com que os sociólogos do direito definiam a passagem do factual ao normativo, do descritivo à busca dos valores, seja em Kantorowicz quando sustentara a pertinência do valor das palavras no domínio da norma posta pela autoridade competente em oposição a ideia da ciência do direito ser à ciência dos valores a serviço da vida social, seja em Ehrlich quanto ao argumento de ser impeditivo o método sociológico se apropriar do método jurídico concebido sobre a relação entre o ser e o dever-ser consagrado na regra do agir social que também seria uma regra do dever agir[7].
Para além desta reflexão, em concreto, o período entre edições da Reine Rechtslehre (1934-1960) foi particularmente intenso na vida pessoal e acadêmica de Hans Kelsen. A mudança da Áustria para os Estados Unidos da América após passagem pela Suíça exigiu a reconsideração e reestruturação de vários dos elementos e institutos fundamentais inspirados no sistema de Civil Law diante das particularidades do Common Law de matriz estadunidense.
O dito ajuste teórico-científico foi noticiado pelo próprio Kelsen, seja na obra Law and Peace in International Relations (Direito e Paz nas Relações Internacionais), de 1942, quando fala da necessidade de instituir uma ordem jurídica fundamentada no Direito Internacional forte o suficiente para garantir (ou, melhor, impor) a paz, motivando a reformulação dos elementos de relações internacionais em perspectiva dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados (Kelsen, 1942, p. 1); seja na obra General Theory of Law and State (Teoria Geral do Direito e do Estado), de 1949, ao apresentar a teoria pura do direito concebida sobre os valores do Civil Law à comunidade anglófona assentada nos direitos positivos, inglês e estadunidense, propondo ajustes para o convívio harmônico da teoria com os elementos e institutos de Common Law (Kelsen, 1949, p. XIII).
Ponto interessante, nesta reflexão, que merecia ser mais bem explorado pela Academia no Brasil é a forma pessoal com que critica a separação de poderes em atuação prática, isto é, no domínio da judicial review enquanto traço característico do controle de constitucionalidade definido pela U.S. Supreme Court representada pelos seguintes elementos: primeiro, entende que a judicial review of legislation é incompatível com a separação de poderes por permitir que um ramo do governo, estadual ou federal, invada as funções públicas fundamentais de outro, mesmo que constitua princípio constitucional justificado nos elementos democráticos; segundo, anota que o conceito de separação de poderes deve indicar um princípio de organização política do Estado; e, terceiro, opõe-se a leitura linear que os poderes constituídos do Estado (legislativo, executivo e judiciário) devem ser independentes entre si, respeitando-se o que a Constituição determina como funções públicas fundamentais a cada um (em síntese, os limites constitucionais e as competências definidos na norma constitucional).
Especificamente sobre este terceiro ponto, Kelsen sustenta que a ideia de três poderes do Estado independentes entre si que atuariam em coordenação diante dos limites fixados pela Constituição como funções públicas fundamentais, simplesmente não seriam comprováveis de fato: a um, porquê as funções públicas não seriam três, mas duas (poder de criar leis — legis latio — e poder de aplicar e/ou executar as leis — legis executio); a dois, consequente da anterior, a relação entre estas duas funções seria de subordinação e de supra-ordenação, mas não de coordenação; e, a três, não seria possível determinar os limites absolutos de separação e de prática destas funções, considerando que são exercidas concomitantemente pelos órgãos, variando no grau de prevalência entre o dever de criar e o dever de aplicar, a lei (Kelsen, 1949, p. 269).
Outro tema sensível a Hans Kelsen, concebido no entre edições da Reine Rechtslehre (1934-1960), por vezes mal percebido, é a justiça enquanto fenômeno social. Neste domínio, em 1953, publicou o Was ist Gerechtigkeit? (O que é a Justiça?), cuja edição em língua inglesa de 1957 (What is Justice? — Justice, Law and Politics in the mirror of Science[8]) cuidou de divulgar a versão que reunia textos, inéditos e revistos, sobre as reflexões da justiça diante do Direito, Filosofia e Ciência.
No primeiro ensaio que deu origem ao título da obra, observa que a pergunta, “o que é a justiça?” representaria mais uma questão retórica do que propriamente um problema científico, afinal constituiria uma eterna e constante busca de respostas pela humanidade, sem efetiva comprovação teorética, tanto quanto a questão “o que é a verdade?”. Deste argumento há quem entenda que Kelsen não se preocupou com a justiça.
No entanto, retornando a Eisenman, tal constatação renova o sentimento de se estar diante de uma nova leitura diminuta e incompleta de sua obra. Em realidade, por se preocupar com a justiça em perspectiva prática diante do rigor metodológico que definiu para sua investigação sobre o Direito visto como norma (possível de extensão à lei e ordem), é que refuta um sentido absoluto de justiça comprovável cientificamente e com valor universal (a Justiça), para lhe reconhecer um sentido relativo cingido a percepção do observador (aquele que se predispõe a observar as dimensões e aplicações do fenômeno) que permitiria conceber uma justiça de liberdade, uma justiça de paz, uma justiça de democracia, uma justiça de tolerância, etc[9].
Chega-se ao final com a certeza de cumprimento da promessa de estimular a leitura e o estudo da vasta produção intelectual e científica de Hans Kelsen para além da Reine Rechtslehre (Teoria Pura do Direito). Por coerência, desde as primeiras linhas, apresentou-se a pretensão de quebra do paradigma da dita teoria ter sido criada de uma única vez, perpetuando-se no tempo; em concreto, o novo paradigma propõe que a teoria que nos chega, atualmente, é fruto da reflexão sobre todo o processo de formulação, reconstrução, revisitação e desenvolvimento, tendencialmente ligado a multidisciplinaridade e interdisciplinaridade que marca o pensamento kelseniano, desde 1905.
Em palavras finais, portanto, confirma-se ao atento leitor, que este ensaio pretendeu se posicionar sobre três eixos: o primeiro, sobre o debate com a escola das ciências sociais; o segundo, cingido a revisitação dos princípios para fortalecimento da ordem jurídica interna, cuja transposição permitiria o desenvolvimento das relações entre os Estados diante da comunidade internacional garantido pelo Direito Internacional; e, o terceiro, dedicado à comprovação da justiça relativa em detrimento da justiça absoluta.
Restrito a estes termos, a primeira reflexão sobre o debate com a escola das ciências sociais poderia ser resumida na contribuição, mediante recíprocos aportes, para o desenvolvimento tanto da Ciência do Direito assentada no princípio da pureza, como da Sociologia do Direito mediante o reconhecimento do valor social da norma jurídica em sua relação com as demais normas sociais, como se depreende das revisões das obras de Hans Kelsen, Hermann Kantorowicz e Eugen Ehrlich.
De igual modo, a segunda reflexão pretendeu estimular a investigação e a pesquisa sobre a reconstrução dos princípios de direito para fortalecimento da ordem jurídica interna dos Estados, baseada na supremacia e na estabilidade da Constituição, cujos valores possam ser transpostos à ordem jurídica internacional com lastro no Direito Internacional favorecido pelos princípios.
E, ainda, o terceiro eixo se propôs a reflexão sobre a relatividade da justiça que permita perceber, na teoria, o que se observa na prática, ou seja, a constatação de falta de universalidade e presença de valores morais abstraídos dos princípios que formam a justiça relativa, como, por exemplo, o reconhecimento da justiça da paz, a partir do cumprimento dos elementos orientados pelo princípio da paz.
Talvez, neste derradeiro parágrafo, construa-se um paradoxo: embora sirva este ensaio para registro do legado de Hans Kelsen diante do marco de cinquenta anos de sua morte, em concreto o que se percebe é a constatação da obra viva do genial cientista que permite lançá-lo no rol dos imortais; enfim, obrigado por nos garantir, ainda hoje, elementos de reflexão e observação para desenvolvimento da Ciência que nos ocupa!
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
Eisenmann, C. (1958), Science du droit et sociologie dans la pensée de Kelsen. IN: Batiffol, Bobbio et al., Méthode sociologique et droit, Paris.
Kelsen, H. (1911), Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, Tubingen.
Kelsen, H. (1942), Law and Peace in International Relations, Harvard University Press.
Kelsen, H. (1949), General Theory of Law and State, Harvard University Press.
Kelsen, H. (1953), Was ist Gerechtigkeit?, Franz Deuticke.
Kelsen, H. (2000), What is justice? Justice, Law and Politics in the mirror of Science, The Lawbook Exchange Ltd.
Kelsen, H. (2006), Teoria Pura do Direito (Trad. do Alemão), Martins Fontes.
Kelsen, H. (2008), Reine Rechtslehre, Mohr Siebeck.
Pires, A. (2013), Justiça na Perspectiva kelseniana, Freitas Bastos.
Treves, R. (1985), Hans Kelsen et la sociologie du droit. IN: Droit et Société, n°1, pp. 15-23.
[1] Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais com estudos pós-doutorais em justiça constitucional europeia, Doutor em Ciência Política, Professor vinculado à Universidade Autónoma de Lisboa, Coordenador e Investigador Integrado do Ratio Legis — Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa [Projeto: Cultura de Paz e Democracia], Investigador Doutorado no Grupo de Investigação sobre Globalização, Democracia e Poder (GLOB) vinculado ao Centro de Investigação em Justiça e Governação (JUSGOV) da Universidade do Minho, Pesquisador no Centro de Investigação Baiano sobre Direito, Educação e Políticas Públicas (CIDEP/CESG) no âmbito do GP sobre Democracia, Processo e Efetividade do Direito, e Pesquisador na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) no âmbito do GP sobre Cultura, Direito & Sociedade. E-mail: asxpires@gmail.com
[2] Kelsen, H. (2008), Reine Rechtslehre, Mohr Siebeck.
[3] Há uma interessante tradução do alemão à língua portuguesa: Kelsen, H. (2006), Teoria Pura do Direito (Trad. do Alemão), Martins Fontes.
[4] Kelsen, H. (1911), Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, Tubingen.
[5] Kelsen, H. (1912), Zur Soziologie des Rechts. Kritische Bemerkungen. IN: Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, XXXIX, pp. 601-607.
[6] Kelsen, H. (1915), Eine Grundlegung der Rechtssoziologie. IN: Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, pp. 839-876.
[7] Cf. Renato Treves (1985, p. 17).
[8] Tradução livre e pessoal: “O que é a Justiça? — Justiça, Direito e Política no espelho da Ciência”.
[9] “Comecei este ensaio com a pergunta sobre o que é justiça. Agora, no final, tenho plena consciência de que não a respondi. Minha única desculpa é que, nesse aspecto, estou na melhor das companhias. Teria sido mais do que presunçoso fazer o leitor acreditar que eu poderia ter sucesso onde os mais ilustres pensadores falharam. E, de fato, eu não sei e não posso dizer o que é justiça, a justiça absoluta pela qual a humanidade anseia. Tenho de concordar com uma justiça relativa e só posso dizer o que é justiça para mim. Como a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, a justiça, para mim, é aquela ordem social sob cuja proteção a busca pela verdade pode prosperar. A ‘minha’ justiça, portanto, é a justiça da liberdade, a justiça da paz, a justiça da democracia, a justiça da tolerância.”; tradução livre e pessoal de: “I started this essay with the question as to what is justice. Now, at its end I am quite aware that I have not answered it. My only excuse is that in this respect I am in the best of company. It would have been more than presumptuous to make the reader believe that I could succeed where the most illustrious thinkers have failed. And, indeed, I do not know, and I cannot say what justice is, the absolute justice for which mankind is longing. I must acquiesce in a relative justice and I can only say what justice is to me. Since science is my profession, and hence the most important thing in my life, justice, to me, is that social order under whose protection the search for truth can prosper. ‘My’ justice, then, is the justice of freedom, the justice of peace, the justice of democracy, the justice of tolerance.” (Kelsen, 2000, p. 24).
Fonte Imagética: Hans Kelsen (1881-1973), bust (dark bronze) in the Arkadenhof of the University of Vienna, (Maisel# 17). Artist: Ferdinand Welz (1915-2008), unveiled 1984 (Wikimedia Commons). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hans_Kelsen_%28Nr._17%29_-_Bust_in_the_Arkadenhof,_University_of_Vienna_-_0290.jpg#/media/File:Hans_Kelsen_(Nr._17)_-_Bust_in_the_Arkadenhof,_University_of_Vienna_-_0290.jpg>. Acesso em 18 maio 2023. Esta imagem foi escolhida pela Equipe Editorial do Boletim Lua Nova.