Eduardo Rezende Melo[1]
Flávia Schilling[2]
Maria José de Rezende[3]
Este texto é um resumo do artigo publicado na Revista Lua Nova n. 117. O texto completo pode ser acessado aqui.
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Neste artigo colocamos em vizinhança alguns tópicos do pensamento de autores como Amartya Sen, Nancy Fraser, Luc Boltanski e Judith Butler. Fomos orientados pela ideia da imaginação política – como exercício potente e de liberdade – sobre os dilemas do presente em torno da política, da crítica democrática, da justiça e das possibilidades de emancipação, em uma atitude de “lucidez desencantada” (Boltanski, 2013, p. 451). A riqueza do encontro aparecerá nas diferenças, na pluralidade, na singularidade das abordagens e pelo esforço de uma crítica que recusa um mundo que teria se tornado imutável e natural, regido pela necessidade. Estes autores ensaiam caminhos para pensar a solidariedade, as alianças, a emancipação, um outro mundo possível.
Este texto nasceu da angústia do presente. Neste tempo presente aceitaríamos a constatação de que o tempo da emancipação já passou (Rancière, 2011, p. 73)? Aparentemente, os jogos estariam feitos, estariam fechadas as possibilidades de outras formas de viver e de estar no mundo. “Os tempos mudaram”: esta afirmação indicaria a impossibilidade de mudar o estado das coisas, haveria futuros que não mais poderíamos imaginar (Rancière, 2011, p. 74).
Lidando com essa angústia e contrariando as ideias de que deveríamos nos conformar ao que aí está dado, posto que inevitável, exercitamos imaginações políticas sobre a crítica e sua efetividade; sobre a possibilidade de justiça, sobre o que seria o justo e quem poderia participar de tal enunciação; sobre a solidariedade, a possibilidade de reuniões, assembleias, coletivos que recusam o filantrocapitalismo do atual capitalismo canibal. Estaremos, assim, imaginando a viabilidade de outros mundos possíveis.
Pois:
De fato, a densidade do mundo deve ser imaginada. Só́ pode ser tocada, olhada, escutada ou pensada. A imaginação volta à densidade do mundo quando se torna capaz de abrir os possíveis, estas “utopias concretas” das quais falava Ernst Bloch, ou estas “heterotopias” às quais Michel Foucault se referiu. […]Abrir os possíveis não é, precisamente, dar o tom para nossas formas de apreender o mundo a fim de reinventá-lo melhor, reiniciá-lo melhor? (Didi-Huberman, 2020, p. 11, tradução nossa).[4]
Há, portanto, o desafio de recorrer ao exercício das imaginações políticas para tentar entender e reinventar o mundo.
Não há qualquer solidão no percurso que este texto propõe: percebe-se que este movimento em busca de outros mundos percorre diversos pensamentos, permeia os debates contemporâneos mais potentes. Escolhemos, como companhia, os autores já citados, que buscam imaginar a política como práticas de lutas com seu horizonte de emancipação, entendida esta como a possibilidade de viver em vários tempos radicalmente iguais em um mundo da desigualdade que nunca é estático, natural, dado, imutável (Rancière, 2011, p. 94). Imaginando um comum que seria um espaço de inclusão ou de abertura ao “desconhecido comum”, que seria a “articulação que desfaz a exclusão mútua, polarizada, desses termos, um contra o outro” (Silva, 2011, p. 24). São pensamentos que tentam o mais difícil, pensar o comum “enquanto figura daquilo que une ou liga os homens entre si sem assemelhar suas dessemelhanças e sem subsumir as suas diferenças” (Silva, 2011, p. 16). Sem essa tentativa de imaginação, daquilo que poderemos fazer juntos, da construção do comum, não haveria como tentar a política, a justiça, a mudança.
Mesmo com nossos autores percebendo os limites da crítica nestes dias que nos foram dados para viver, “como se ela não tivesse mais impacto sobre a realidade” (Boltanski, 2013, p. 442), há, em todos, a atitude de problematizar a aceitação da sujeição, a dificuldade em reconhecer as causas do que nos acontece, a dificuldade em imaginar como lutar e com quem lutar e, claro, se haveria uma possibilidade de sucesso nestas lutas.
Nancy Fraser e Amartya Sen são autores por nós escolhidos para pensar o presente e que desenvolvem conceitos substantivos de justiça, dos novos dilemas da justiça na atualidade e como seria possível a constituição de um “nós”, de um comum, de uma vida democrática que não anulasse as singularidades. Luc Boltanski e, em maior medida, Judith Butler, refletem sobre os limites ético-políticos desses conceitos substantivos de justiça e as condições e possibilidades de denunciação da injustiça e de formação de alianças resistentes. Se trata do desafio de imaginar novas formas de associação e estar-em-conjunto mantendo seu caráter indeterminável e interminável (Silva, 2011, p. 28). Nesse sentido,
A imaginação seria então um de nossos bens comuns mais preciosos e frutíferos. Ou melhor: é uma de nossas grandes faculdades comuns […] em suma, a imaginação revelaria na humanidade a potência de sua própria liberdade (Didi- Huberman, 2020, p. 9, tradução nossa)[5].
É o que procuraremos evidenciar neste percurso, pois:
Não é necessário amarmos uns aos outros para termos a obrigação de construir um mundo em que todas as vidas são sustentáveis. O direito de continuar existindo só pode ser entendido como um direito social, como instância subjetiva de uma obrigação social e global que temos uns com os outros. Interdependente, nossa continuidade é relacional, frágil, às vezes conflituosa e insuportável, às vezes gratificante e feliz. (…) Conter a destruição é fazer uma das afirmações mais importantes que podemos fazer neste mundo. É a afirmação desta vida, ligada à sua, leitor ou leitora, e ao reino dos vivos: uma afirmação atrelada ao potencial de destruição e à sua força contrária (Butler, 2021, p. 63).
Se contrapondo, a partir de diferentes posições, à destruição das vidas, de todas elas, opondo-se às lógicas das guerras, da ideia de que há vidas descartáveis, de que cada um deve salvar-se como puder e encarar o outro como seu inimigo e competidor, como se vivêssemos em um reality show permanente que nos colocaria em um quadro/tela impenetrável e imutável, nossos autores apresentaram ideias sobre mudança, política, direitos e justiça.
O retorno da crítica, da sua possibilidade, de uma crítica que tenha um efeito, é uma das questões que permeia todos os escritos que apresentamos. Não consideram que a crítica ao poder seja inerte, apesar de reconhecerem seus limites. Por meio da crítica, perfuram as muralhas do óbvio, daquilo que se apresenta como natural. Criam um intervalo para que se questione o “tudo sempre foi assim e sempre será”, o conformismo e a resignação. Reativam, partindo de linguagens diferentes, a possibilidade da não servidão voluntária. Dizem, em sua singularidade, que o tempo da emancipação pode estar presente, mas para isso seria preciso romper “com uma visão de história como processo global que a associa a uma ideia de impossível, ideia essa que coincide com a de uma incapacidade das pluralidades” (Rancière, 2011, p. 86).
Com oscilações e deslocamentos, fazem o exercício da imaginação política, recuperando a agência, o sujeito, as classes, os coletivos, as alianças, as assembleias, o pronome “nós” que poderia alicerçar um projeto que comportasse a emancipação, uma extensão da vida comum, obrigações globais que sirvam a todos os habitantes.
Se fosse possível uma síntese (que não pretendemos, pois é melhor sustentar as pluralidades e as singularidades e imaginar o que há como comum a ser construído) esta seria dada pela frase: “O “eu” não é você, mas é inconcebível “sem você” – sem mundo, insustentável” (Butler, 2021, p. 155).
*Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências:
BOLTANSKI, Luc. 2013. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária. Sociologia &Antropologia. Rio de Janeiro, vol. 03-06, pp. 441- 463.
BUTLER, Judith. 2001. Qué es la crítica? Un ensayo sobre la virtud en Foucault. Traducción de Marcelo Expósito e Joaquín Barriendos. 2001. Disponível em: http://eipcp.net/transversal/0806/butler/es. Acesso em: 15 out. 2019.
BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa, Edições 70, 2021.
DIDI-HUBERMAN, Georges. 2020. La imaginación, nuestra Comuna. Theory Now: Journal of Literature, Critique and Thought. Vol.3, n.2, pp.1-21.
RANCIÈRE, Jacques. 2011. O tempo da emancipação já passou? IN: A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
SILVA, Rodrigo. 2011. Apresentação (elegia do comum). In: Didi- Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 11-37.
[1] Pós-doutorado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo na área de Direitos Humanos. Juiz de Direito em São Paulo. Orcid: 0000-0003-3779-1814.
[2] Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Orcid: 0000-0001-5126-8507.
[3] Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Orcid: 0000-0002- 3426-910X.
[4] “Efectivamente, la densidad del mundo ha de imaginarse. No hace otra cosa que tocarse, mirarse, escucharse o pensarse. La imaginación vuelve a la densidad del mundo cuando se hace capaz de abrir los posibles, estas “utopías concretas” de las que hablaba Ernst Bloch o estas “heterotopías” a las que se refirió́ Michel Foucault. (…) ¿Abrir los posibles no es, precisamente, marcar el tono a nuestras formas de aprehender el mundo para reinventarlo mejor, para reiniciarlo mejor?” (Didi-Huberman, 2020, p.11)
[5] La imaginación seria entonces uno de nuestros bienes comunes más preciados y fecundos. O, mejor dicho: es una de nuestras grandes facultades comunes (…) En resumen, la imaginación revelaría en la humanidad la potencia misma de su propia libertad. (Didi-Huberman, 2020, p.9)
Fonte Imagética: Foto de cyrus gomez na Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/pt-br/fotografias/pYdqyf4uMUA>. Acesso em 10 fev 2023.