Gabriel de Matos Garcia[1]
Há certa controvérsia a respeito da relação entre John Milton e o republicanismo. Em sentido “prático”, apenas tardiamente Milton se posicionou ao lado dos republicanos durante os turbulentos acontecimentos da Inglaterra de seu tempo. Como destacado por Dzelzainis, “sempre que os republicanos eram levados à oposição pelos eventos – o expurgo do exército do ‘Long Parliament’ em dezembro de 1648, o regicídio, a dissolução do ‘Rump’, a elevação de Cromwell a Protetor – Milton se apegava aos poderes constituídos” (DZELZAINIS, 2016, p. 325)[2]. Milton se posicionou de forma manifestamente republicana apenas poucos meses antes da Restauração promovida por Carlos II, já em meados de 1660.
Porém, essa conversão tardia de Milton ao republicanismo não é o único aspecto da controvérsia. O outro aspecto está relacionado a uma observação realizada por Thomas Corns, na qual ele sustenta que: “há pouco em sua escrita vernácula de 1649 e quase nada em suas defesas em Latim para mostrar que Milton procurou ativamente argumentar a favor da República Inglesa em termos derivados de modelos clássicos ou da teoria política de Maquiavel” (CORNS, 1995, p. 26).
Dzelzainis sustenta que para lidarmos com os dois aspectos dessa controvérsia, precisamos considerar duas observações. Em primeiro lugar, ele destaca não haver consenso entre estudiosos do início do período moderno, sobre quais são (se é que existem) os elementos constitutivos do republicanismo. Em vez disso, coexistem diversas definições que competem entre si. Em segundo lugar, Dzelzainis sustenta que a nossa visão a respeito da relação entre Milton e o republicanismo dependerá de qual dessas definições for escolhida, pois, isso determinará se devemos procurar por algum momento no qual Milton passa a aderir ao republicanismo ou se podemos identificar um compromisso com o republicanismo em seus escritos ao longo do tempo. (DZELZAINIS, 2016).
A primeira, e talvez mais importante, dessas definições sustenta que ser republicano exige uma oposição direta à monarquia enquanto tal. Por esse critério, as obras mais importantes de Milton escritas durante o período da Guerra Civil não podem ser consideradas republicanas. Nesses escritos, Milton não se opõe à monarquia enquanto tal, mas apenas à tirania, que ele acreditava estar sendo praticada por Carlos I. Em escritos posteriores, entre 1659 e 1660, Milton passa a se opor não somente à tirania (representada pela Restauração), mas também à monarquia enquanto tal. Entretanto, até mesmo nesses escritos, Milton revela certas inconsistências em seu posicionamento antimonárquico. Na primeira edição de The Readie and Easie Way, Milton admite que uma monarquia (eletiva) pode governar em nome do interesse público e que pode ser conveniente para determinados países, ainda que ele a considere inconveniente para a Inglaterra. De qualquer forma, Dzelzainis considera que essa definição é inadequada porque ela é muito exigente. Muitos autores considerados republicanos, inclusive Maquiavel, seriam excluídos por essa definição, uma vez que eles admitem a possibilidade de um regime monárquico legítimo.
Uma segunda definição, menos rigorosa que a primeira, sustenta que o republicanismo não se baseia em uma oposição à monarquia, mas sim na defesa do governo misto, ou seja, a combinação, em um mesmo arranjo político, dos elementos monárquico, aristocrático e democrático. A teoria do governo misto era muito disseminada entre os humanistas ingleses do século XV e Milton com certeza a conhecia. Porém, como Dzelzainis argumenta, nem a posição de que Milton analisava a política totalmente em termos da teoria do governo misto, nem a posição de que ele apoiava de forma inabalável essa teoria, são plausíveis (DZELZAINIS, 2016, p. 328). Além disso, a teoria do governo misto era tão disseminada nesse período que dificilmente se poderia identificá-la com o republicanismo.
Neste sentido, dadas essas dificuldades de definição, muitos autores passaram a considerar o republicanismo não em termos “formais”, mas como uma tradição moral. Esta procura defender uma série de valores, principalmente a virtude política. É possível interpretar melhor a relação de Milton com o republicanismo através dessa lente. Milton estava muito mais preocupado com a moralidade do Estado do que com as suas instituições. Seu republicanismo, portanto, “é mais uma atitude de pensamento do que qualquer configuração governamental” (CORNS, 1995, p. 41).
Se considerarmos o republicanismo de Milton por essa ótica, Dzelzainis argumenta que o ano de 1649 não pode ser considerado um divisor de águas, pois essa política da virtude já estava presente em obras que Milton escreveu até mesmo antes do início da Guerra Civil.
Em um verbete escrito por Milton na obra Commonplace Book, citando Maquiavel, ele considera que:
Uma república é preferível a uma monarquia: ‘porque mais homens excelentes vêm das repúblicas do que dos reinos [kingdoms]; porque no primeiro a virtude é honrada a maior parte do tempo e não é temida como nas monarquias. (DZELZAINIS, 2016, p. 330 Apud Milton, 1931-8).
Neste sentido, Milton, como Maquiavel, acreditava que a liberdade é a condição necessária para o florescimento do Estado. Roma é o exemplo clássico dessa afirmação. Os tarquínios reinaram em Roma entre 600 e 509 a.C.. Sua expulsão pelos senadores romanos e a fundação de uma República desinibiram as ações dos homens virtuosos que antes permaneciam intimidados pela desconfiança dos reis.
Esse aspecto do pensamento político de Milton se torna o mais interessante para investigação, pois apresenta a maior possibilidade de descobrirmos os aspectos em comum das várias obras de Milton, assim como o que ele compartilhava com seus contemporâneos. Dzelzainis sustenta que o principal aspecto, nesse sentido, é o que ele denomina, tomando o termo emprestado de Skinner, “uma teoria neorromana da liberdade” (SKINNER, 1999, p. 9).
A teoria neorromana da liberdade é uma adaptação e reformulação da teoria desenvolvida por moralistas e historiadores romanos. Como Skinner destaca, “as concepções dessas antigas autoridades havia, por sua vez, derivado quase que inteiramente da tradição legal romana finalmente preservada no Digesto de direito romano”. (Ibid., p. 41). Essa tradição legal também foi preservada de forma concisa nos Institutes, ao qual Milton teve acesso em seus estudos.
O primeiro livro dos Institutes estabelece a distinção entre pessoas livres e não livres. O indivíduo livre é aquele que “possui uma capacidade natural de fazer o que quiser, a menos que seja proibido de alguma forma” enquanto o indivíduo não livre “é um escravo e, portanto, sujeito ao domínio de – ou seja, você é propriedade de – alguém”. (DZELZAINIS, 2016, p. 331). Não há categoria intermediária, ou se é livre ou se é escravo.
É importante observar que o escravo não é somente aquele que sofre coerção de seu proprietário ou senhor. Mesmo um escravo que não é coagido permanece sendo um escravo, dada a sua condição legal. Nesse sentido, os indivíduos livres são aqueles que estão sujeitos a sua própria jurisdição, enquanto os escravos estão submetidos à jurisdição de outra pessoa. Como sustentado por Skinner, “a essência do que significa ser um escravo, e, portanto, a falta de liberdade pessoal, é assim estar in potestate, dentro do poder de alguém mais”. (SKINNER, 1999, p. 43).
Esse entendimento sobre a liberdade e a escravidão já estava presente nos primeiros escritos de Milton. Em The Commonplace Book, Milton analisa diversos pontos dos Institutes sobre essa tradição legal romana. De forma importante, Milton analisa ainda o caso dos indivíduos que, apesar de serem livres (ou seja, não estarem submetidos ao poder de outrem), são considerados incapazes de conduzir suas próprias vidas e estão submetidos à tutela de outrem. Esse é o caso, por exemplo, de crianças que não atingiram a idade da puberdade e de pessoas que, mesmo atingindo essa idade, são consideradas mentalmente incapazes.
A partir disso, Dzelzainis considera possível analisar as obras escritas por Milton entre 1649 e 1651 como continuidades do desenvolvimento dessa teoria neorromana da liberdade. Em A tenência de reis e magistrados, por exemplo, Milton considera que:
Certamente os que se orgulham, como nós nos orgulhamos, de ser uma nação livre, e não lhes pertencer o poder de remover ou de abolir nas urgências algum governante supremo ou subordinado, juntamente com o próprio governo, poderão deleitar sua imaginação com uma ridícula e pintada liberdade, própria para enganar bebês, pois que de fato estão submetidos à tirania e à servidão: falta-lhes o poder, que é a raiz e fonte de toda a liberdade, de dispor e economizar da terra que Deus lhes deu, como chefes de família em sua própria casa e livre herança. Sem esse poder natural e essencial de nação livre, ainda que mantenham as cabeças erguidas, em boa conta eles nada mais são que escravos e vassalos por nascimento, em posse e ocupação de um outro senhor herdeiro, cujo governo, ainda que não seja ilegal ou intolerável, paira sobre eles como um flagelo do Senhor, não como um governo livre, a ser portanto revogado. (DZELZAINIS, 2005, p. 45-6, grifo meu).
Nessa passagem, Milton atinge uma conclusão muito importante. Como demonstrado acima, o que torna alguém escravo não é a coerção em si, mas estar submetido ao poder de outro, ainda que este não o utilize. Invertendo esse argumento, chegamos à conclusão de que, aquele que exerce poder, não importa quão bondoso e parcimonioso possa ser, sempre está escravizando quem está sujeito à sua vontade. Neste sentido, os indivíduos que não podem mudar o seu governo, ainda que este não seja exercido de forma “ilegal ou intolerável”, são sempre escravos, pois estão submetidos ao poder do governante. Desta forma, como afirma Dzelzainis, “a querela de Milton não é mais com a coerção atual na forma de tirania, mas com o potencial de escravização que parece ser inerente ao governo monárquico enquanto tal”. (DZELZAINIS, 2016, p. 336).
Portanto, ao analisarmos a relação entre Milton e o republicanismo de uma perspectiva mais voltada para um “republicanismo de valores”, principalmente direcionado à defesa de uma teoria neorromana da liberdade, podemos observar nos escritos de Milton ao longo do tempo um compromisso contínuo com o republicanismo.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
CORNS, T. N. “Milton and the characteristics of a free commonwealth”. In: ARMITAGE, D.; HIMY, A.; SKINNER, Q. (orgs.), Milton and Republicanism. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
DZELZAINIS, M. (ed.), John Milton: Escritos Políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DZELZAINIS, M. “Republicanism”. In: CORNS, T. N. (org.), A New Companion to Milton. Oxford: Willey-Blackwell, 2016.
SKINNER, Q. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: Unesp, 1999.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail para contato: gabriel.ggarcia87@gmail.com.
[2] Todas as traduções são de minha responsabilidade.
Fonte Imagética: John Milton by an unknown artist, National Portrait Gallery (British Library). Disponível em <https://www.bl.uk/people/john-milton>. Acesso em 03 abr 2023.