Thayza Matos1
07 de agosto de 2024
No marco dos 100 anos de nascimento de James Baldwin, completados no último dia 2 de agosto, o Boletim Lua Nova inicia com este texto a publicação de uma série sobre a atualidade, o legado e o impacto político de sua obra.
“A primeira coisa que um escritor tem que enfrentar é que não lhe pode ser dito o que escrever” 2
James Baldwin
Falar sobre James Baldwin nem sempre é fácil e compreender as diferentes nuances de um artista tão complexo e prolífero é atividade para uma vida inteira. Em diversos romances, ensaios, peças de teatro, críticas literárias e sociais, Baldwin aborda de forma incisiva as diferentes camadas nas quais o racismo pode ser percebido e sentido por corpos negros.
Nascido em 1924, o mais velho de nove irmãos, James Arthur Baldwin cresceu durante a discriminação racial regulamentada pelo conjunto de leis conhecido como Jim Crow, em meio à pobreza degradante que assolava o bairro negro do Harlem, em Nova York, conhecido também pela sua efervescência cultural. Para além das questões sociais que se apresentavam, Baldwin também vivenciou o cristianismo fundamentalista arraigado em seu círculo familiar.
Em 1948, buscando se desvencilhar das amarras racistas e homofóbicas da sociedade estadunidense, Baldwin deixa seu país e parte para Paris. Esse período na cidade luz se mostrou transformador para o autor, permitindo que ele experimentasse uma nova perspectiva sobre raça e identidade e que se concentrasse completamente em sua arte. Isso possibilitou a publicação de seu primeiro romance, Go Tell it to the Mountain, em 1953, que, aclamado pela crítica especializada e com ótima aceitação entre o público geral, tornou-se um clássico da literatura afro-estadunidense. Após sua estreia, Baldwin também apresentou ao público a coleção de ensaios Notas de um filho nativo (1955), e um novo romance, O quarto de Giovanni (1956), consolidando-se como escritor independente.
Anos mais tarde, em entrevista ao The Dick Cavett Show (1969), James Baldwin expressa que sua saída dos Estados Unidos se deu por um profundo desespero causado pela vivência traumática da construção do racismo e da segregação social no país. Crescer no Harlem, em Nova York, marcou-o profundamente pois a segregação racial delimitava a vivência de pessoas negras, tratando-os como cidadãos de segunda classe.
Durante os anos em Paris, Baldwin teve a chance de expandir seus horizontes não só no meio literário, mas também na sua compreensão das complexidades raciais e sociais. Sua experiencia como um homem negro, homossexual e periférico influenciou profundamente a sua percepção sobre identidade e opressão. As obras de Baldwin, em suas narrativas, apresentam ao leitor múltiplos sistemas de opressão que se sobrepõem desencadeando reflexões únicas, em consonância com a essência do conceito de interseccionalidade3, porém décadas antes dele ser cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 1989.
De seu exílio em Paris, Baldwin acompanha o desenvolvimento da mais recente onda do movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos4 e sua determinação em não retornar ao país, entretanto, é transformada pelo levante provocado por ela:
Mas foi naquela tarde clara que eu soube que estava partindo da França. Eu não poderia, simplesmente, ficar sentado em Paris discutindo o problema do negro argelino e do americano. Todo mundo estava pagando suas dívidas e era hora de eu voltar para casa e pagar as minhas. Eu, enfim, voltaria para casa. Se havia nisso alguma ilusão, havia também muita verdade5 (BALDWIN apud PECK, 2017, p. 13).
Em 1957, após ver jornais com imagens de Dorothy Counts, uma das primeiras jovens negras a participar do processo de integração das escolas estadunidenses, na Carolina do Norte, Baldwin toma a decisão de retornar ao seu país e se juntar à luta por direitos civis. O julgamento na Suprema Corte dos Estados Unidos do caso Brown x Board of Education, em 1954, decidiu pela inconstitucionalidade da divisão entre estudantes brancos e negros nas escolas públicas em território estadunidense e possibilitou que crianças negras tivessem acesso à educação de forma mais igualitária, revertendo a decisão do caso Plessy x Ferguson de 1896, que abria precedente para a interpretação de constitucionalidade dos Black Codes6.
Ao retornar para os Estados Unidos, em 1957, como um jovem autor de sucesso, ele encontrou seu tema inicial de reconciliação consigo mesmo e o mundo mais amadurecido. Sua rígida distinção entre literatura e sociologia, arte e propaganda, que pretendia libertá-lo da sombra perturbadora de seu grande antecessor e antigo benfeitor, Richard Wright, havia perdido seu poder de persuasão e sentido diante da realidade de seu país natal.
Durante a década de 1960, Baldwin se tornou uma figura pública no Movimento de Direitos Civis, atingindo uma popularidade estrondosa por sua habilidade retórica e diplomática. No auge de sua fama, Baldwin lança sua única coletânea de contos intitulada Going to meet the man, em 1965. Algumas das narrativas contidas nessa coleção já haviam sido publicadas em revistas como Mademoiselle e Partisan Review entre 1948 e 1962.
A coletânea foi um sucesso com o grande público, porém, teve críticas divergentes dentro do campo especializado. Sonny’s Blues, por exemplo, foi um dos contos mais aclamados pela crítica por explorar temas como a fraternidade, o sofrimento e o poder da música como forma de resistência. Já outros contos, como o que nomeia a coletânea, não tiveram uma crítica tão receptiva por escandalizar leitores mais sensíveis com suas descrições detalhadas de violência e do ódio profundamente arraigado nas personagens brancas.
No mesmo período que a coletânea Going to meet the man foi originalmente publicada, os trabalhos de Franz Fanon (1925-1961), Jacques Lacan (1901-1981) e Sigmund Freud (1856-1939) eram altamente influentes nos campos dos estudos pós-coloniais, da teoria crítica da raça e da psicanálise. As obras seminais de Fanon, tais como Pele negra, máscaras brancas (1952) e Condenados da terra (1961) ofertaram reflexões profundas a respeito do impacto psicológico do colonialismo e do racismo, dissertando sobre os processos de desumanização tanto dos oprimidos quando dos opressores.
As teorias psicanalíticas de Freud, principalmente aquelas que versam sobre as dinâmicas de repressão de sentimentos e do funcionamento do inconsciente dialogam de forma particular com os movimentos articulados pelas personagens de Baldwin. Da mesma forma, a reinterpretação de Freud por Lacan, em especial o conceito de outro enriquece as discussões em torno da construção de identidade.
A escolha de Baldwin de narrar Going to meet the man pela perspectiva de Jesse, um xerife branco de quarenta e dois anos realça a psicologia por detrás do ódio racial ao permitir que uma personagem branca e racista exprima o seu medo e ódio por meio de uma sucessão contínua de pensamentos, o que não se traduz necessariamente na construção de algum nível de simpatia pela personagem. Para isso, Baldwin se vale de uma sequência de flashback dentro de flashback, emulando um fluxo de consciência.
No conto, pode-se inferir que aproximadamente três horas se passam na vida de Jesse, porém, elas são dilatadas com o uso dos flashbacks que englobam momentos distintos da vida da personagem. Assim, como apontado pelo pesquisador Peter Freeser, essa não linearidade possibilita que Baldwin demonstre de que forma o passado continua a invadir o presente, moldando cosmovisões, identidades e ações:
Baldwin, como em toda a sua obra, não pode renunciar a sua convicção de “que o passado é tudo aquilo que faz o presente ser coerente”, e com a finalidade de reforçar essa mensagem central, ele usa do seu recurso estilístico favorito, os flashbacks (FREESER, 1975, p. 174).
O uso desses flashbacks possui funções distintas dentro da narrativa. Em um primeiro momento, expõem a natureza cíclica do racismo, mostrando que o comportamento preconceituoso e violento é passado de geração para geração, o que pode ser observado nas atitudes de Jesse que reproduzem os comportamentos racistas e violentos aprendidos com seu pai.
Ao utilizar essa técnica, Baldwin fornece não só um contexto histórico para as ações de Jesse, como também possibilita a criação de um panorama das dinâmicas estabelecidas pelas relações de poder e a natureza do ódio racial no Sul dos Estados Unidos. Benoît Depardieu aponta que o conto de Baldwin exemplifica os discursos inconscientes e conscientes em jogo, particularmente a forma pela qual a identidade e o sentido de poder de Jesse estão inextricavelmente ligados à subjugação dos negros (Depardieu, 2003).
O conto se inicia com Jesse deitado em seu leito conjugal, incapaz de performar sexualmente. Ao mesmo tempo que entra em conflito com sua impotência, a mente de Jesse se desdobra em uma sequência de flashbacks que dão ao leitor acesso a vários momentos significativos na construção da identidade e visão de mundo da personagem. Um dos flashbacks mais expressivos é uma memória de infância de Jesse na qual ele testemunha o linchamento extremamente violento de um homem negro, organizado por cidadãos brancos da pequena cidade, contando com a participação direta de seu pai.
O momento do linchamento público não é somente uma lembrança aleatória, mas uma descrição rica em detalhes, não somente dos elementos físicos (as cores, o cenário, a multidão, os odores), mas também psicológicos e do impacto que causaram em Jesse que, então, tinha por volta de oito anos de idade.
Agora ele via o fogo de gravetos e caixas empilhados; chamas feitas de pálido laranja e amarelo e finas como um véu sob a luz mais constante do sol. Fumaça cinza-azulada subia em espiral e derramava-se sobre suas cabeças. Além da cortina instável de fogo e fumaça, ele avistou, a princípio, apenas um pedaço de corrente brilhante, presa a um grande galho da árvore; então ele viu aquela corrente unindo as mãos negras no pulso, palma amarela suja contra palma amarela suja. A fumaça subiu; as mãos saíram de vista; um clamor elevou-se da multidão. Então as mãos lentamente apareceram novamente, puxadas para cima pela corrente. Desta vez ele viu a cabeça crespa, suada e ensanguentada que nunca tinha visto antes, uma cabeça com tanto cabelo sobre ela, cabelo tão preto e tão emaranhado que parecia outra selva. A cabeça estava pendurada. Ele viu a testa, plana e alta, com uma espécie de flecha de cabelo no centro, como a que ele tinha, como o pai tinha; chamam de bico da viúva; e as sobrancelhas mutiladas, o nariz largo, os olhos fechados, os cílios brilhantes e os lábios caídos, todos escorrendo sangue e suor. Suas mãos estavam acima da cabeça. Todo o seu peso sustentado em suas mãos; e ele era um homem grande, um homem maior que seu pai, negro como um gato selvagem africano e nu. Jesse foi puxado para cima; as mãos de seu pai o seguraram firmemente pelos tornozelos. Ele queria dizer alguma coisa, não sabia o que, mas nada do que ele dissesse seria ouvido, naquele momento, a multidão rugiu novamente, um homem deu um passo à frente e colocou mais lenha no fogo (BALDWIN, 2004, p. 1759).
O detalhamento na construção da cena do linchamento fornece ao leitor as percepções de Jesse naquele momento. Um garoto de oito anos é exposto à violência como forma de espetáculo com grande naturalidade por parte de seus pais. Ao apontar que “Ele queria dizer alguma coisa, não sabia o que, mas nada do que ele disse poderia ter sido ouvido”, observa-se o estranhamento da criança diante da cena.
Ele pensou ter ouvido o homem enforcado gritar, mas não tinha certeza. Suor escorria dos pelos de suas axilas, escorria por seus flancos, sobre seu peito, dentro de seu umbigo e de suas virilhas. Ele foi baixado novamente; ele foi alçado novamente. Agora Jesse sabia que o ouvira gritar. A cabeça tombou para trás, a boca bem aberta, sangue borbulhando da boca; as veias do pescoço saltaram; Jesse agarrou-se ao pescoço do pai, aterrorizado, enquanto o grito ecoava pela multidão. O grito de todo o povo ergueu-se para responder ao grito do moribundo. Ele queria que a morte chegasse rapidamente. Eles queriam fazer a morte esperar: e eram eles que seguravam a morte, agora, numa coleira que pouco a pouco foram afrouxando. O que ele fez? Jesse se perguntou. O que o homem fez? O que ele fez? — mas não podia perguntar ao pai (BALDWIN, 2004, p. 1759-1760).
A tomada de consciência que Jesse tem no momento que questiona “o que ele fez?” ressalta o terror da criança diante da cena. Mas, no decorrer do episódio, o leitor observa o medo e o terror da criança sendo substituídos pelo sentimento de pertencimento ao grupo, de superioridade racial e masculinidade violenta. Baldwin não se esquiva de caracterizar a brutalidade com que o racismo se estrutura socialmente e, para isso, faz uso da personagem Jesse para evidenciar os mecanismos psicológicos que sustentam os preceitos ideológicos da supremacia branca.
As memórias de Jesse sobre o linchamento se apresentam como evidências do conflito racial até então instaurado no sul dos Estados Unidos. As imagens construídas por Baldwin representam a desumanização sistêmica de sujeitos negros, incorporando um trauma histórico e contínuo vivenciado por afro-estadunidenses, como forma de incutir o medo e manter a subjugação da comunidade negra.
Going to meet the man dialoga com as estruturas teóricas propostas por Franz Fanon e Sigmund Freud ao mergulhar na psique de Jesse e revelar ao leitor como a opressão sistêmica desumaniza sujeitos. A influência de Freud é notável na forma como Baldwin explora por meio dos flashbacks as memorias e desejos reprimidos, em especial por meio da cena do linchamento que Jesse testemunha, apresentado como um trauma formativo. A narrativa aqui proposta por Baldwin dialoga com as teorias contemporâneas à produção da obra, mas também critica as estruturas sociais que perpetuam as diversas formas de violência , físicas e psicológicas.
É admirável o quanto o trabalho de James Baldwin permanece relevante. Going to meet the man é um conto provocativo e angustiante que convida o leitor a ir além da superfície quando se trata das implicações que a opressão racial pode causar na sociedade como um todo. Atualmente, as questões de desigualdade racial e injustiça sistêmica continuam a gerar ondas de lutas por direitos civis e igualdade. O movimento por Direitos Civis nunca se encerrou e o trabalho de James Baldwin se reintroduz a cada oportunidade, demonstrando sua capacidade de articular traumas e feridas coletivas de forma a desafiar seus leitores a confrontar verdades incomodas e engajar ativamente na busca por igualdade e justiça.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Baldwin, James. Going to Meet the Man. In: The Norton Anthology of African American Literature/ Henry Louis Gate Jr. 2nd Edition. New York, 2004.
Crenshaw Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine. University of Chicago Legal Forum. 1989; 1989:139–168.
Depardieu, Benoît. “L’‘Interdit’ or the ‘Other’ text in James Baldwin’s ‘Going To Meet the Man’.” Journal of the Short Story in English, 40, Spring 2003.
Fanon, Frantz. The Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 1961.
Fanon, Frantz. White Skin, Black Masks. Grove Press, 1967.
Freese, Peter. “James Baldwin – Going to meet the man”. In: The Black American Short Story in the 20th Century: a Collection of Critical Essays, edited by Peter Bruck. Hamburg, Grüner Publishing Company, 1977, pp. 171-185.
Freud, Sigmund. The Interpretation of Dreams. New York: Macmillan, 1900.
Lacan, Jacques. Écrits: A Selection. New York: W.W. Norton & Company, 1966.
Kanost, Beazley. “The Agitating Power of Nonviolent Cool in ‘Going to Meet the Man’” James Baldwin: Challenging Authors, edited by A. Scott Henderson and P.L. Thomas. Sense Publishers, 2014, pp. 149-163.
1 PhD em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente realiza Pós-doutoramento no Departamento de Africana Studies na University of New Mexico (UNM). E-mail: tmatos15@unm.edu
2 Baldwin em entrevista com Nikki Giovani, 1975. (Tradução minha)
3 O conceito de interseccionalidade, apresentado por Kimberlé Crenshaw em 1989 pode ser compreendido como uma lente de análise, uma estrutura para compreender como várias formas de desigualdade muitas vezes operam juntas e se exacerbam mutuamente. Nas obras de Baldwin temos a oportunidade de observar como gênero, classe, raça e sexualidade, por exemplo, podem se entrepor.
4 É importante ressaltar que o popular Movimento pelos Direitos Civis que ocorreu nos Estados Unidos durante a década de 1960 faz parte de um movimento muito maior que tem início com mobilizações abolicionistas que datam do século XVIII. Mais informações em: https://www.britannica.com/topic/abolitionism-European-and-American-social-movement (Último acesso em 24 de junho de 2024).
5 But it was on that bright afternoon that I knew I was leaving France. I could, simply, no longer sit around in Paris discussing the Algerian and the black American problem. Everybody else was paying their dues, and it was time I went home and paid mine. I had at last come home. If there was, in this, some illusion, there was also much truth. (Tradução minha).
6 Os Black Codes ou Códigos negros (em uma tradução livre) foram um conjunto de leis articulado nos estados que fizeram parte da Confederação, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, que deram origem às práticas de segregação racial nos Estados Unidos. Mais informação em: https://www.britannica.com/topic/black-code (Último acesso em 26 de junho de 2024).
Referência imagética: Wikimedia Commons. James Baldwin. Fotografia de Allan Warren. 1969. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:James_Baldwin_37_Allan_Warren.jpg>. Acesso em: 26 jun. 2024.