Boletim n.5 – CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS
O texto abaixo é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e as Ciências Sociais que será publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta, que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando. Acompanhe e compartilhe!
Gustavo Lins Ribeiro*
A pandemia do coronavírus certamente inaugura uma nova classe de medo global. Não que não existissem anteriormente as angústias, os pânicos e temores globais. Mas, como a globalização é um processo histórico que se torna cada vez mais agudo, é de se esperar que o último medo global seja mais intenso e complexo do que os outros.
O que estou chamando de medo global? Aqui vai uma definição de trabalho: trata-se de todo temor totalizante sentido por todos os habitantes de um coletivo, na expectativa de uma enorme quantidade de mortes que potencialmente ou de fato atingirá a todos e acabará o mundo conforme foi conhecido até um determinado momento.
Deixo a definição assim, de maneira ampla, para poder incluir alguns medos coletivos – obviamente sem nenhuma pretensão de esgotar os exemplos – que, apesar de não serem planetários certamente incluíram a sensação de fim de mundo, em uma espécie de arqueologia dessa terrível sensação, um verdadeiro fato social total, como diria Marcel Mauss, que condensa respostas fisiológicas, biológicas, psicológicas, culturais, políticas, econômicas, sociais e científicas.
Começo com dois exemplos rápidos e relacionados. O primeiro foi uma das mais graves epidemias da história da humanidade que ocorreu justamente nos momentos iniciais do sistema mundial e dizimou todo um mundo, aquele que foi chamado de Novo Mundo. As primeiras décadas do colonialismo nas Américas, especialmente na chamada Mesoamérica por sua densidade populacional, foram responsáveis por um dos piores desastres demográficos da história da humanidade.
Milhões de pessoas morreram por força de doenças trazidas (isso do vírus ser estrangeiro, não é novo) pelos impiedosos conquistadores. Não se pode atribuir a debacle do mundo imperial azteca apenas às doenças, mas tampouco se pode falar dela sem considerá-las. Estamos diante de um processo que se prolongou e persiste, com intensidade menor, claro, até hoje, em diferentes países sul-americanos e asiáticos.
O segundo exemplo nos leva à Amazônia profunda. Quantas aldeias indígenas foram destroçadas pela chegada de gripes? Darcy Ribeiro relatava na década de 1950 a guerra bacteriológica perpetrada por fazendeiros que jogavam de aviões cobertores infectados em aldeias isoladas. Aqui a “queda do céu”, como diriam os ianomâmis em sua distopia, foi terrível e podemos pensar a agonia e angústia das pessoas que a sofreram ao ver seu mundo desaparecer impiedosamente.
Medos globais/planetários
Depois de saltos históricos e geográficos de certa forma arbitrários, me dedico a medos globais propriamente ditos. Eles supõem o funcionamento eficiente da compressão do espaço-tempo, a noção inventada por David Harvey em 1989. Estamos falando do encolhimento do mundo provocado pelo desenvolvimento das indústrias de comunicação e transporte nos últimos 250 anos (aproximadamente).
Possivelmente, os estudiosos de epidemias que me corrijam, o primeiro medo global foi produzido pela gripe espanhola (eis o vírus estrangeiro, de novo), uma pandemia em 1918, que infectou 500 milhões de pessoas, mais ou menos um quarto da população mundial de então, matando um número estimado de 50 milhões ou mais.
Pelo incremento da compressão do espaço-tempo (basta recordar o esforço atual de controlar aviões e aeroportos), o período do século XX em adiante tem sido pródigo em medos globais provocados por epidemias. Com a gripe espanhola, a AIDS e o ebola, para citar alguns, os vírus vão indicando nossa fragilidade como espécie.
Mas nem todos os medos globais se devem a doenças que se alastram com velocidade crescente e, ao menos em seus primeiros momentos, de forma incontrolável. Quero crer que as primeiras bombas atômicas jogadas, em 1945, pela Força Aérea Americana em Hiroshima e Nagasaki provocaram um novo tipo de medo global que acabou se transformando no medo da capacidade humana de destruir o planeta por meio de uma guerra.
O medo gerado pelos arsenais nucleares durante a Guerra Fria após a Segunda Guerra Mundial engatilhou cenários distópicos de inverno nuclear com o consequente desaparecimento da humanidade. Curiosamente, vivemos no presente pós-Guerra Fria outro cenário distópico, com temperaturas invertidas, o do aquecimento global e o do antropoceno que também causam medos globais sobre o destino da humanidade. Desta vez, o que está em jogo é a sociedade capitalista industrial e consumista com o seu modo de vida que impacta a sustentabilidade em escala planetária.
Para que servem os medos globais
Para muita coisa. Não poderei explorar todas aqui. Não quero recorrer a uma explicação totalmente foucaultiana apelando para uma espécie de biopolítica global. De toda forma, chama a atenção a guerra híbrida que o coronavírus está causando entre os Estados Unidos, potência imperialista declinante, e a China, potência imperialista ascendente. Também são interessantes as diferentes indigenizações feitas por governos de direita ou de esquerda.
Os casos do Brasil e dos EUA bem ilustram os primeiros e a Argentina, com a resposta exemplar do novo governo, ilustra os segundos. De toda forma, está claro o poder que se transfere aos Estados e suas elites de intervir maciçamente em todos os âmbitos da vida, inclusive no direito a viver como se viu na Itália com as escolhas dos médicos sobre quem salvar.
Se aproveita para montar um aparato militar de controle e vigilância sobre as populações, toques de queda, controles de circulação e do direito de reunião. Sem direito a manifestações massivas, o Chile, por exemplo, sofreu uma inflexão grande do movimento político desatado por sua população contra o neoliberalismo. No Brasil, aproveita-se para fazer passar decretos ainda mais prejudiciais aos mais vulneráveis, beneficiando, ao mesmo tempo, o grande capital financeiro.
A pandemia do coronavírus é a primeira que se vive no tempo on-line. A internet, com sua multiplicação da capacidade de comunicação capilar, ao mesmo tempo em que propicia uma tomada de consciência global cria uma expectativa e uma paranoia na espera de que os grandes números de doentes e mortos, supostamente definidos de forma milimétrica diariamente, não atinjam com a mesma intensidade os locais em que vivemos.
Estamos diante de mais uma potencialização do que chamei, em 2003, de espaço-público-virtual. Comprova-se que o isolamento (o pior castigo, sem contar a morte, que se pode infligir a uma pessoa) nos leva a compreender a necessidade dos contatos sociais – ainda que virtuais – sem os quais não conseguimos viver.
É necessário ver as estatísticas sobre os números de usuários de Whatsapp e Skype nos diferentes períodos de quarentena. Revela-se, mais uma vez, e fortemente, a importância que o espaço-público-virtual adquiriu em nossas vidas.
O coronavírus deveria servir para nos ensinar lições que, é provável, serão rapidamente esquecidas pelas elites político-econômicas, com algumas possíveis exceções, depois do evento crítico atual. Primeira lição: a interdependência da vida social humana, mais obviamente demonstrável nas cidades, reclama concepções políticas que vão muito além do individualismo e das políticas neoliberais destruidoras dos serviços públicos. Reclama em especial um fortalecimento da saúde e da educação públicas como partes estratégicas da rede de proteção necessária a todos e não apenas aos menos privilegiados.
Segunda lição: em uma época em que há grupos politicamente atuantes, alguns com poder, que cultuam a ignorância anticientífica e anti-intelectualista, a expectativa de uma devastação mortal em todo o planeta reafirma a importância e a autoridade da ciência como forma de compreensão, aferição e intervenção, a despeito da persistência de alguns núcleos obscurantistas que resistem a toda e qualquer evidência.
A terceira lição refere-se à existência de um claro vínculo entre pandemias e destruição ambiental. Os vírus estão migrando de animais não humanos para humanos. São animais que têm sido hospedeiros de patógenos para os quais não temos imunidade adequada. Com a intrusão humana e a destruição de seus habitats originais, terminam entrando em contato mais íntimo com as pessoas e até se tornando alimento humano.
Infelizmente, dado que a reversão da destruição ambiental em escala planetária parece estar longe de se tornar realidade, tudo indica que os medos globais provocados por pandemias continuarão a existir. A presença de elites políticas e econômicas irresponsáveis quanto à sorte do planeta também nos leva à mesma conclusão.
* Gustavo Lins Ribeiro é professor titular no Departamento de Estudos Culturais da Universidad Autónoma Metropolitana – Unidade Lerma (México) e Pesquisador Nacional Nível III do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONACYT – México). Foi professor no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília por 26 anos. Foi presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Referência imagética: “Nada. Ello dirá.” Goya y Lucientes, Francisco de. Copyright de la imagen ©Museo Nacional del Prado.