Charlotth Back[1]
O material que veio a público por meio do site The Intercept Brasil nestes últimos dias expõe, inequivocamente, os contornos espúrios da Operação Lava Jato e, principalmente, do julgamento do ex-presidente Lula (PT). Foi revelada a existência de manipulação e conluio entre membros do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal, com o claro objetivo de usar todos os meios existentes, lícitos ou ilícitos, para condenar Lula – considerado um inimigo que precisa ser combatido e massacrado –, destruir os grupos políticos ligados ao seu governo e de Dilma Rousseff (PT) e construir uma estratégia político eleitoral nas eleições de 2018, ainda que para isso tenha sido necessário macular o Direito, flexibilizar as garantias processuais e desnaturalizar os princípios constitucionais. Assim, foi aplicado de forma explícita o Direito Penal do Inimigo, mascarado por detrás do discurso de “combater a corrupção no Brasil”.
Essa doutrina jurídica foi criada na década de 1980 pelo jurista alemão Gunther Jakobs, mas ganhou força no governo de George W. Bush após o ataque às Torres Gêmeas de 2001, e, principalmente, a partir das invasões norte-americanas ao Afeganistão e ao Iraque. Sob o argumento de “segurança nacional”, “legítima defesa” ou de “combate ao terrorismo” – o proclamado mal do século XXI – certas pessoas, por serem consideradas inimigas da sociedade ou do Estado, não deteriam todas as garantias e proteções penais e processuais penais que asseguradas aos demais indivíduos. Em nome da “defesa da sociedade”, as garantias penais mínimas consagradas pelas constituições e pelos instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a presunção de inocência, a vedação da condenação sem provas, o princípio da legalidade, a neutralidade do julgador, a proibição da tortura, bem como o impedimento de obtenção de provas por meios ilícitos, não se aplicam aos proclamados “inimigos sociais”.
Jakobs propõe a distinção entre um Direito Penal do Cidadão, que se caracteriza pela manutenção das normas, das garantias penais e dos limites ao poder de punição e investigação do Estado, e um Direito Penal do Inimigo, totalmente orientado para combater os “perigos sociais”, que permite que qualquer meio disponível, lícito ao não, seja utilizado para punir esses “não-cidadãos”. Não se trata, portanto, de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de descrever dois polos de um só mundo e de visibilizar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal.
Nesse contexto, há o Direito Penal do Cidadão, cuja tarefa é garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade e o Direito Penal do Inimigo, ao qual cabe a missão de eliminar perigos. No último caso, ocorre uma verdadeira caçada ao autor de um suposto delito, pois o agente é punido pela sua identidade, por suas características e personalidade. Pune-se o autor, e não a conduta delitiva em si. Reprova-se a periculosidade do agente e não sua culpabilidade. A aplicação do Direito Penal do Inimigo significa a suspensão de “certas normas” para “certas pessoas”, o que é justificado pela necessidade de proteger os “homens de bem”, a sociedade ou o Estado contra determinadas ameaças coletivas.
No pós-11 de setembro, o terrorismo passa a ser processado com leis de guerra e seus acusados, considerados prisioneiros de guerra. O sentido garantista e limitador dos poderes punitivos do Estado, assegurado pelo Direito Penal, dá lugar a uma perseguição, na qual as leis passam a ser de combate, situação análoga ao que ocorreu nos regimes fascistas. As pessoas processadas criminalmente já não estão mais protegidas pela constituição ou pelos princípios mínimos dos direitos humanos. Aos considerados infratores ou contrários à ordem não se lhes aplica o Direito – combate-lhes com o Direito. Sua aplicação passa a ser, ao invés de protetiva, combativa e com o intuito de vencer o “inimigo da sociedade”.
Apesar desta doutrina ser controversa e sujeita a críticas, a realidade nos mostra que ela tem sido aplicada de maneira sistemática tanto em contextos de guerra – como no Iraque, sob a justificativa de segurança nacional – como nas instalações carcerárias de Guantánamo. Essa prisão é um exemplo inequívoco de jurisdição para “combatentes irregulares” – suspeitos de terrorismo -, na qual se permite toda sorte de exceções aos princípios da persecução penal constitucional. Nesse sentido, há a suspensão de direitos humanos mínimos em nome do “combate ao terrorismo” e da proteção da “segurança nacional”.
Em Estados latino-americanos, não atingidos pelo terrorismo, a criação do inimigo passa pelo retorno da demonização das esquerdas e pela criminalização dos movimentos sociais. Os novos golpes contra a democracia, agora travestidos de golpes jurídico-parlamentares, são um sintoma de que há uma nova ofensiva contra as conquistas sociais. Em ambos, ocorre uma inversão ideológica do Direito que passa a macular os direitos humanos ao invés de protegê-los.
No contexto brasileiro, o Direito Penal do Inimigo tem sido usado na autoproclamada missão do Judiciário e do Ministério Público de “combate à corrupção”. Lula e demais políticos da esquerda estão sendo tratados como verdadeiros inimigos e não como cidadãos acusados em um processo crime; ou seja, os réus aqui não são sujeitos de direito, ou mesmo alvos de proteção jurídica. São, na verdade, objetos de coação, desprovidos de direitos e da proteção jurídica mínima a que todos os seres humanos têm direito, mesmo aqueles investigados por crimes. Cabe lembrar que a utilização do Direito Penal do Inimigo no Brasil não é uma inovação da Operação Lava Jato e de seus articuladores – nas operações policiais nas comunidades mais pobres e nas periferias, a regra é tratar tanto os criminosos como a população em geral de maneira equiparada a “inimigos sociais”, vide o episódio dos 80 tiros contra uma família negra no Rio de Janeiro.
Os métodos jurídicos que têm sido usados na Operação Lava Jato, principalmente quando se refere à investigação penal, são extremamente questionáveis face à nossa Constituição e às garantias mínimas do devido processo legal do Direito Internacional. Obtenção de delação premiada por meio de acosso, grampos em escritório de advocacia, divulgação de áudios obtidos de forma ilícita, como no caso da conversa entre Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, e a exibição pública dos acusados, configuram uma série de condutas claramente ilegais.
A franca utilização do Direito Penal do Inimigo ao longo de toda Operação ficou evidenciada nos áudios e nas mensagens trocadas entre o ex-juiz Sérgio Moro. o procurador federal Deltan Dallagnol e membros do MPF, responsáveis pela condução dos processos, e foi identificada principalmente pela persecução seletiva, pela assimetria entre a defesa e a acusação, pela parcialidade do juízo, em todas as instâncias, e pela colaboração estreita com a mídia. Em primeiro lugar, é inegável que há uma persecução seletiva, minuciosamente instruída pelo ex-juiz e combinada nos mínimos detalhes com o MPF, por meio de sugestões sobre encaminhamentos, reprovação sobre a atuação de procuradores, criação de denúncia anônima, entre outras. Todas elas denotam uma conduta incestuosa: o Poder Judiciário, que deveria ser o garantidor de direitos é que viola as principais garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do julgamento imparcial.
Em segundo lugar, existe um completo desequilíbrio entre a defesa e a acusação, a qual sabe de antemão quais serão as decisões do Juízo, recebe orientações processuais sobre supostas provas e evidências e combina estratégias jurídicas e políticas com o ex-magistrado. Essa situação é típica de uma jurisdição inquisitória, que se arroga das funções de investigar, acusar e julgar, e que trata a defesa dos réus como se fosse uma mera formalidade, desprovida de qualquer possibilidade de influência nos rumos do processo, mitigando sua real importância no exercício da justiça e das garantias democráticas.
Em terceiro lugar, o julgamento de Sergio Moro se mostra totalmente parcial e pendente à condenação dos réus da Lava Jato, independentemente de qualquer prova concreta, por razões mais políticas do que jurídicas. Esse aspecto é corroborado por declarações contrárias aos réus e pela busca de evidências e de informantes por parte do ex-juiz para auxiliar a acusação. Em quarto lugar, com a finalidade de criar uma mobilização popular a favor da Operação Lava Jato e de algum apelo social por conta da dita missão de “combate à corrupção”, houve – e há – uma íntima cooperação com setores da mídia, demonstrada pela articulação na ocasião da possível concessão de entrevista pelo ex-presidente às vésperas das eleições de 2018, o que nos dá a certeza de que este processo passa muito distante de um processo penal jurídico; é um processo penal político, com objetivo explícito de influenciar diretamente as últimas eleições e de garantir o retorno dos grupos conservadores ao poder.
Por trás de um discurso pretensamente democrático e de “defesa dos bens públicos”, está um autoritarismo judicial dissimulado, típico de Estado de Exceção e da aplicação do Direito Penal do Inimigo. No contexto da globalização neoliberal, o Direito, cada vez mais, tem sido usado para consolidar a exclusão e a subalternização de certos grupos sociais, raciais e políticos a favor do privilégio de outros. As normas e instituições jurídicas são empregadas de forma traiçoeira, visando minar os processos políticos emergentes e tendendo à violação sistemática dos direitos, o que constitui a prática do lawfare: a guerra por via jurídica, trazida da jurisprudência do direito militar, na qual se neutraliza o inimigo sem recorrer à guerra, somente por meio da lei e de outros instrumentos jurídicos institucionalizados. O Direito serve como uma arma para atacar grupos adversários, retirar-lhes a possibilidade de defesa e diminuir – vale dizer, “legalmente” – suas possibilidades de reação.
O combate aparentemente neutro da corrupção a nível internacional, transmutado para dentro das jurisdições nacionais, neste contexto, mascara um verdadeiro “imperialismo jurídico”, que é utilizado para impor interesses geopolíticos e geoeconômicos, frear potenciais concorrentes e destruir projetos soberanos de autonomia político-econômicos. No Brasil, a perversidade autoritária do Poder Judiciário foi bastante eficiente nesse sentido, pois conseguiu diluir-se e confundir-se no interior de uma proposta discursivamente democrática e idônea, que, razão pela qual não pode ser contraposta a nenhum outro argumento sem que seus interlocutores sejam considerados “a favor da corrupção” e um “perigo aos homens de bem”. De acordo com essa narrativa de senso comum, baseada na ideologia da “defesa da sociedade” e no lema de que “ninguém está acima da lei”, é plenamente aceitável mitigar direitos e garantias fundamentais, assim como abusar da autoridade, “em nome da moralidade, da família e da sociedade”.
Todos concordamos que a corrupção precisa ser firmemente combatida no Brasil, mas não às custas da destruição da economia brasileira e muito menos às expensas das mínimas garantias fundamentais conquistadas com tanta luta. Os envolvidos neste material do The Intercept Brasil claramente se prestam a esta farsa jurídica que tem tido consequências muito graves não apenas na economia brasileira, arrasada nos últimos anos, mas também na sociedade, cada vez mais favorável ao autoritarismo, ao punitivismo e à violência como as únicas formas políticas capazes de transformar o Brasil, como revelaram as eleições de 2018.
[1] Professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências Jurídicas e Políticas, Universidade Pablo de Olavide (Espanha); Membro da Associação Brasileira de Jurista pela Democracia (ABJD); Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ; Advogada.
Referência imagética:
http://www.bandnewsfm.com.br/2019/06/16/o-mpf-desmente-especulacoes-de-que-o-procurador-diogo-castor-de-mattos-seria-suposta-fonte-do-vazamento-de-mensagens-divulgadas-pelo-the-intercept/ (Acesso em 17 de junho de 2019)