Eduardo de Borba[1]
Nesse texto tentarei evidenciar algumas relações entre categorias que, por si só, mereceriam teses. Para essa tarefa me apoiarei no livro A construção da sociedade do trabalho no Brasil, do sociólogo Adalberto Moreira Cardoso, e em sua investigação que analisa a ligação entre a legitimidade das ordens sociais e o sentimento de justiça de seus concernidos. A ideia é defender que uma sociedade extremamente desigual, como a nossa, embaralha esse sentimento de justiça por meio da própria percepção da desigualdade social. Relacionarei a seguir ideias sobre legitimação, justiça, liberalismo e desigualdade, partindo de duas razões que sustentam a tese de Cardoso.
A primeira, a tese sociológica, estabelece uma ligação entre a percepção da desigualdade e o sentimento de justiça; se percebemos a desigualdade como um problema, isso teria a ver com o fato de que ela acaba por ferir nosso sentimento de justiça mais elementar. Esse “fundo interpretativo” define os julgamentos que indivíduos e a coletividade mobilizam quando avaliam tanto suas próprias condições de vida, como aquelas estruturas da sociedade como um todo. Mas, além dos julgamentos, a percepção da desigualdade estrutura as próprias perspectivas dos indivíduos, ou em linguagem mais liberal, seus “horizontes de expectativas”.
É de se esperar, normativamente falando, “que a correlação entre percepção da desigualdade, sentido de justiça e legitimação da ordem social deveria adquirir um sinal positivo (e intenso) com a modernidade e seus ideais de liberdade, solidariedade, autonomia, provisão material, etc. Igualdade, justiça e legitimidade passam a ser termos intimamente conectados, seja no discurso político, seja na prática cotidiana, de tal modo que as três categorias são por vezes intercambiáveis.” [2]
Já a segunda razão que baseia o argumento tem extração filosófica: se o liberalismo consiste em uma visão a respeito da justificação dos arranjos sociais, como advoga Jeremy Waldron (2012), temos que entendê-lo como o projeto teórico no qual, ao menos idealmente, os ganhos e encargos da cooperação social sejam justificados a todas e todos atingidos. Além disso, àquele que se sentiu vítima da injustiça, deveria dispor de um direito a receber justificações (assim como um dever de fornecê-las) frente às diferentes possibilidades de arranjos sociais. Como meu interesse é a desigualdade, deve ficar evidente que estou preocupado com o potencial crítico do “projeto moderno” que o liberalismo busca avançar[3]. E como falo sobre a desigualdade no Brasil, minha preocupação se volta para essas promessas não cumpridas de nosso liberalismo.
Minha inquietação busca responder uma pergunta muito simples: como pode um país extremamente desigual e violento não explodir? E, mais que isso, o que explicaria essa “segunda natureza” das relações sociais no Brasil? Isto é, como nossa extrema desigualdade, nossa arbitrária diferenciação social, adquire uma funcionalidade para a própria reprodução das estruturas desiguais? [4]
Antes disso, volto rapidamente à desigualdade. Mas o que faz dela um problema? Não somos todas e todos, como marca distintiva, diferentes e, portanto, desiguais? A comparação entre diferença e desigualdade, embora pareça empiricamente intuitiva, analiticamente se mostra falaciosa. A desigualdade, mais do que referir-se aos atributos pessoais de cada mulher e homem, refere-se ao acesso de grupos aos direitos básicos de cidadania, e, por consequência, às próprias oportunidades de vida, sonhos e anseios dos membros desses grupos. A desigualdade social é um problema porque estabelece relações de injustiça, nas quais oportunidades são negadas a uns e ofertadas a outros. Desigualdade social existe, então, quando em nossa sociedade, quase sempre sabemos o gênero, a classe, a raça – algo que no Brasil chamamos de “procedência” – de quem ganha e de quem perde na divisão do produto social do trabalho.
Se há dúvidas sobre nossa vida comum desigual, como classificaríamos um país onde 6 (seis!) homens brancos detém a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, metade da população? Ou onde 0,1% da população ganha em um mês o mesmo que uma pessoa que recebe salário mínimo (algo próximo de ¼ da população) acumularia em 19 anos de seguidos de trabalho? [5]
A relação entre desigualdade social e injustiça parece berrar nas ruas, becos, vielas e aeroportos brasileiros. Entretanto, apesar da minha formação em economia, tenho uma estranha mania de achar que os números não falam por si. Talvez num rompante filosófico, eu realmente acredite que por trás de dados e datas, existam mulheres e homens que vivem suas vidas assim como eu e você que me lê agora. O que faz com que esses mesmos homens e mulheres aceitem a ordem social tal qual ela se apresenta? Nós não enxergamos essa mazela ou nós a naturalizamos? Tentarei aventar algumas possibilidades de relação entre essas percepções, e para isso, me baseio em uma pesquisa publicada em abril último pela organização OXFAM. Nela, 86% dos entrevistados acreditam que a desigualdade é um fator de entrave para o desenvolvimento econômico nacional. Mais que isso, 77% dos entrevistados concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais (ante 71% em 2017). E não para aí: 84% concordam que o imposto pago deve beneficiar os mais pobres, o mesmo percentual que também concorda que é obrigação dos governos diminuir a diferença entre muito ricos e muito pobres, ante 79% em 2017. Ou seja, nós, brasileiros não somos apenas cidadãos de bem, mas também extremamente igualitários. Deve ter sido por isso que elegemos na eleição última um projeto que tinha como bandeira a diminuição da desigualdade social…
No entanto, a própria pesquisa aponta uma direção para essa aparente contradição: dois em cada três entrevistados acham que a linha da pobreza começa aos R$ 701 mensais de renda, sendo que 53% acham que ela está entre R$ 701 e R$ 1.000 – este último próximo ao valor do salário mínimo atual. A economista Laura Carvalho assim elucida: “Os brasileiros ultrapassam a renda dos 50% mais pobres quando ganham mais de R$ 1.800 por mês per capita (para cada pessoa do domicílio). A partir da renda mensal de R$ 5.137, o indivíduo já faz parte da faixa dos 10% mais ricos. Quem ganha mais de R$ 20 mil ou R$ 30 mil por mês está na faixa dos 2% ou 1% mais ricos, respectivamente”.[6] Muito a grosso modo: a desigualdade é reconhecida, é vista como injusta, mas como mal percebida, é mal estimada.
Quais seriam as explicações para a persistência histórica da desigualdade no Brasil, e para, em função também disso, o capitalismo nunca ter se implementado aqui sob os auspícios do que antes chamei de promessas do liberalismo? Por mais que tenhamos ensaiado a construção de nosso Estado de Bem-Estar, jamais fomos capazes de universalizá-lo. Bem verdade, talvez fosse mais correto falar de tentativas redistributivas.
O ponto é que a imensa desigualdade, retornando à tese normativa do início do argumento, faria esperar um país politicamente agitado, revoltoso e clivado por lutas emancipatórias. Elas existiram e ainda existem. Significativa produção historiográfica recente vem enfatizando o caráter contestador e conflituoso das relações sociais no país, vingando o suor e sangue de mulheres e homens que dedicaram suas vidas à tentativa de tornar nossa sociedade mais justa[7]. No entanto, toda essa luta nunca ofereceu um real perigo ao que há de estrutural em nosso cotidiano desigual. Por quê?
Adalberto Cardoso, amparado em longa revisão historiográfica, aponta como um fato gerador dessa “estabilidade desigual” a raiz escravocrata de nossa socialização. Isso porque “em torno dela [escravidão] construiu-se uma ética do trabalho degradado, uma imagem depreciativa do povo, ou do elemento nacional, uma indiferença moral das elites em relação às carências da maioria, e uma hierarquia social de grande rigidez e vazada por enormes desigualdades.”[8] De nosso pecado original escravocrata, outros fatores decorrerão para inviabilizar o avanço dos patamares civilizatórios no Brasil: o padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista no início do século XX; a incapacidade estrutural de atuação do Estado; a violência ao trabalho organizado maior que sua própria capacidade de ameaça à ordem vigente; a baixa participação do operariado industrial na estrutura social e a condição de informalidade do mercado do trabalho em geral; o baixo nível de riqueza social produzida (isto é, ainda que tenha ocorrido um expressivo aumento do produto nacional, este foi apropriado de forma gritantemente desigual); e a abdicação, pelo Estado, da função de regular o mundo do campo, gerando uma incorporação precária dos trabalhadores no mercado de trabalho urbano a partir da década de 1940[9].
Gestou-se, desta forma, uma sociedade fluída, porém, extremamente inercial para as expectativas de vida fática dos mais pobres e trabalhadores em geral. Contudo, a legitimação da desigualdade expressa pela posição do trabalho em nossa sociedade permitiu o surgimento de um padrão motivacional ideológico. É essa expectativa que Cardoso chama de “utopia brasileira” e que assim se sintetiza: “A estrutura de posições não é naturalizada, no sentido de não ser percebida como desigual. Ela é simplesmente aceita como consequência esperada de meios vistos como aceitáveis. Os pobres aspiram a essas posições, mas concordam que não as merecem. É o mesmo que dizer que estariam nelas se tivessem feito por isso. A sociedade é vista como aberta. A frustração em relação à posição atual, se existe, não é vivida como resultado da injustiça social, ou da dinâmica coletiva, mas sim como fracasso pessoal.”[10]
É justamente nesse ponto da ideologia meritocrática que reside sua perversão: seja nas reconstruções da história do capitalismo, seja em nossa volta para casa após um dia de trabalho, é fácil perceber que nesse mundo de eternos competidores, os perdedores se acumulam às custas dos pingados vencedores. O requinte de crueldade se estabelece quando o discurso da honra ao mérito extrapola seus costumeiros apologistas neoliberais e torna-se também parte da própria auto-compreensão de suas vítimas mais diretas, como apontado na pesquisa “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo” publicada em 2016 pela Fundação Perseu Abramo.[11]
No entanto, é de se espantar que a meritocracia como um projeto de gestão do Estado tenha aparecido na cena política nacional em 2014, materializada na figura do esforçado e talentoso Aécio Neves (PSDB).[12] E se você lembra tanto quanto eu, em 2014, a despeito do nível rasteiro do debate, ainda havia um debate. E ouso dizer que ele tinha como tema a redução da desigualdade, ou melhor, sobre os meios desse combate: mercado ou Estado. É evidente que a dicotomia que isola Estado e mercado é uma falsa questão. Karl Polanyi, já em 1944, desmontou essa “fantasia liberalóide” ao demonstrar como mercado e o Estado formam um mesmo sistema, “a economia de mercado”. Sendo um cientista econômico (ao menos é isso que consta em meu diploma de graduação) não tenho alternativa a não ser me curvar aos fatos. E no Brasil, à luz da desigualdade que espero ter evidenciado com o amontoado de dados, o papo de menos Estado é uma pataquada que não se verifica na formação de nosso capitalismo,[13] tampouco pode ser defendida como um prognóstico para a superação de nossa grave crise social.
A narrativa meritocrática, no que tem de mais individualista e desagregadora, guarda uma importante função ideológica na implosão do Estado como condição organizadora da vida social. O processo que levou a meritocracia ao princípio de organização da boa sociedade foi sedimentando por uma narrativa negativa do Estado como lócus e agente da corrupção, pintando as forças econômicas como meros agentes passivos, joguete dos desígnios de um Estado irremediavelmente corruptor. Como apontou pesquisa Datafolha,[14] é exatamente em 2015 que a corrupção assume o posto de maior problema dos brasileiros – que sob a ótica meritocrática, torna-se uma disfunção fruto da interferência do Estado. Esse efeito oblitera um papel primordial do Estado que ainda se pretenda moderno: a urgente necessidade de mediar o impasse entre democracia e capitalismo. Aqui só se pode especular sobre como a próxima onda meritocrática pode desequilibrar o impasse. O que se sabe, é que para ensinar a pescar, é preciso que haja peixe. A fome por si só não há de bastar.
Bibliografia:
CARDOSO, Adalberto Moreira. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Amazon, 2019.
LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de Laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000 [1944].
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Rio de Janeiro: Penguin & Companhia das Letras, 2014.
WALDRON, Jeremy. Os fundamentos teóricos do liberalismo. Leviathan – Cadernos de Pesquisa Política, n.5, p. 102-132, 2012. Tradução de Lucas Petroni.
[1] Bacharel em Ciências Econômicas na UFSC, mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) da UFSC e doutorando em Filosofia no PPGFil – UFSC.
[2] CARDOSO, 2019, p. 13
[3] Embora Cardoso não faça menção a Waldron, sua leitura de Habermas e Rawls faz referência direta à tese do liberalismo como justificação recíproca entre livres e iguais (CARDOSO, 2019, p.14)
[4] Aqui, sigo o clássico ensaio de Roberto Schwarz, “Ideias fora do lugar”.
[5] Dados do relatório “Nós e a desigualdade”, da OXFAM Brasil (2018).
[6] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2019/04/a-tribo-perdedora.shtml.
[7] O programa estratégico da CAPES ‘Memórias Brasileiras: Conflitos Sociais”, por meio do edital 12/2015, deu impulso aos estudos que buscavam desmontar a tese da “cordialidade” e da “passividade social” brasileira.
[8] CARDOSO, 2019, p. 35
[9] Estes elementos são amplamente desenvolvidos ao longo da primeira parte do livro de Cardoso, “O lugar do trabalho na sociedade desigual, ou um ensaio sobre inércia e mudança social”. (CARDOSO, 2019, p. 33-263)
[10] CARDOSO, 2019, p. 434-435
[11] Disponível em: https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Pesquisa-Periferia-FPA-040420172.pdf
[12] O pico de buscas pelo termo “meritocracia” deu-se justamente em outubro de 2014, mês da eleição presidencial.
[13] Como desvela, ainda que colateralmente, Sérgio Lazzarini em “Capitalismo de Laços” (2011).
[14] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1712475-pela-1-vez-corrupcao-e-vista-como-maior-problema-do-pais.shtml
Referência imagética:
http://www.chuvaacida.info/2017/10/meritocracia.html (Acesso em 13 de agosto de 2019)