Joaquim Shiraishi Neto[1]
Introdução
Durante a Assembleia Nacional Constituinte, a mobilização protagonizada pelos povos indígenas resultou em um Capítulo da Constituição Federal dedicado às suas coletividades (arts. 231 e 232). A inserção de tais direitos no modelo de Constituição, caraterizado por um extenso programa social, universalizante, focado nos cidadãos[2], possibilitou a mobilização de grupos culturalmente diferenciados em prol de direitos específicos relacionados aos modos de viver, criar e fazer. A posterior incorporação de declarações e tratados de direitos humanos pelo Brasil impulsionou o processo de organização e de lutas por direitos.
Diferentemente de outros estudos sobre mobilização legal no Brasil (LOSEKANN, 2013; VASQUES, 2020), que focalizam os usos dos tribunais[3], este texto aborda de forma breve a mobilização nos espaços legislativos municipais, isto é, a produção de leis, diante das dificuldades enfrentadas pelos grupos para serem reconhecidos e terem os seus direitos específicos garantidos. Outro elemento distintivo é que me refiro a sujeitos coletivos, denominados pelo direito como povos e comunidades tradicionais.
As lutas protagonizadas nos planos locais e regionais constituem repertórios da ação coletiva desses grupos culturalmente diferenciados. Assim, este texto objetiva descrever as estratégias de mobilização dos grupos, seguindo as questões lançadas por Maciel (2011): quando, por que e como decidiram promover a luta nos espaços legislativos como recurso e estratégia de mobilização?
Estrutura de oportunidades políticas
À exceção dos povos indígenas, cujas organizações tiveram um papel ativo durante a Assembleia Nacional Constituinte, pois prepararam-se para participar e influir na redação do texto[4], os demais grupos culturalmente diferenciados do país (comunidades negras rurais[5], seringueiros[6], quebradeiras de coco[7]) estavam submetidos à categoria trabalhador, que se fazia representar por suas organizações. Mesmo assim, as comunidades negras rurais e os seringueiros lograram conquistas no texto (arts. 68 e 54 do ADCT).
Todas essas lutas, que resultaram em uma Constituição plural e aberta, orientada para a promoção da igual dignidade da pessoa humana, serviram de inspiração para que muitos grupos se organizassem em movimentos sociais, por meio de uma agenda específica de lutas, como é o caso dos seringueiros autônomos e das quebradeiras de coco babaçu[8]. As quebradeiras de coco acrescentaram à sua luta a questão identitária, já que essas mulheres estão em processo de construção de sua identidade, que é múltipla e complexa.
Não podemos esquecer que, após a promulgação da Constituição, houve toda uma agenda internacional de eventos que redundaram em acordos para a elaboração de tratados internacionais de direitos humanos, sobretudo de proteção da Natureza. Cabe citar: a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992; a Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992; o Protocolo de Nagoia, além da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989; e, mais recentemente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2008.
Tais instrumentos de direitos humanos, que delimitaram um novo ciclo nas preocupações da sociedade internacional, serviram para legitimar as lutas e estabelecer uma nova relação com o Poder Executivo e o sistema de justiça. Quando apropriados, esses dispositivos deram densidade às normas contidas no texto constitucional, servindo, inclusive, para reorientar as políticas destinadas a esses grupos (como a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto n.º 6.040/2007) e decisões judiciais. A Tabela 1 é ilustrativa dos processos em curso, que derivaram desses processos, expressando a enorme e difusa conflituosidade existente no país, hoje em dia agravada com a posse do novo presidente.
Tabela 1 – Levantamento preliminar das leis
N.º de ordem | Povos ou comunidades tradicionais | Lei municipal ou estadual | Ementa da Lei |
01 | Quebradeiras de coco babaçu | Lei Municipal n.º 005/1996 Município de Lago do Junco (MA) | Autoriza o chefe do Poder Executivo municipal a tornar a atividade do babaçu uma atividade livre no município. |
02 | Comunidades de fundo de pasto | Lei Municipal n.º 04/2005 Município de Antônio Gonçalves (BA) | Cria a lei do licuri livre ou lei do ouricuri, que trata de sua preservação e comercialização, de “autoria” das comunidades de fundo de pasto. |
03 | Benzedeiras | Lei Municipal n.º 1.401/2010 Município de Rebouças (PR) | Dispõe sobre o processo de reconhecimento dos ofícios tradicionais de saúde popular em suas distintas modalidades: benzedeiro(a)s, curadore(a)s, costureiro(a)s de rendiduras ou machucaduras e regulamenta o livre acesso à coleta de plantas medicinais no município de Rebouças, Estado do Paraná, conforme especifica. De “autoria” das benzedeiras. |
04 | Catadoras de mangaba | Lei Estadual n.º 7.802/2010 Estado de Sergipe | Reconhece as catadoras de mangaba como grupo culturalmente diferenciado e estabelece o autorreconhecimento como critério do direito. |
05 | Povos indígenas | Lei Municipal n.º 145/2002 Município de São Gabriel da Cachoeira (AM) | Dispõe sobre a “co-oficialização das Línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa à Língua Portuguesa no município de São Gabriel da Cachoeira” (AM). |
06 | Povos indígenas | Lei Municipal n.º 900, de 7 de julho de 2020 Município de Barra do Corda (MA) | Dispõe sobre a cooficialização da língua Tenetehara-Guajajara no município de Barra do Corda (MA) |
07* | Povo pomerano | Lei Municipal n.º 1.136/2009 Município de Santa Maria de Jetibá (ES) | Dispõe sobre a co-oficialização da Língua Pomerana, no município de Santa Maria de Jetibá, Estado do Espírito Santo. |
08** | Quebradeiras de coco babaçu | Lei Estadual n.º 9.428/2011 Estado do Maranhão | Cria o dia estadual das quebradeiras de coco e reconhece a autoatribuição como critério válido para o reconhecimento das quebradeiras como povo tradicional. |
09 | Faxinalenses | Lei Estadual n.º 15.673/2007 Estado do Paraná | Reconhece os faxinais e sua territorialidade. |
10 | Ciganos | Decreto Estadual n.º 889/2004 Estado do Paraná | Outorga e concessão de uso de uma área para a implementação do memorial da cultura cigana. |
Fonte: Dados organizados pelo pesquisador a partir de fontes diversas, como livros, reportagens, conversas com assessores e pesquisadores (2021). * Em outros dois municípios do Brasil – Itarana (ES) e Pomerode (SC) –, foram aprovadas leis semelhantes. ** Nos estados do Piauí e do Tocantins, foram aprovadas leis semelhantes, mas no Tocantins a data comemorativa é 7 de novembro, em homenagem à quebradeira Raimunda Gomes da Silva, conhecida como dona Raimunda.
A estratégia do movimento interestadual das quebradeiras de coco babaçu (MIQCB) em trazer a disputa para os espaços das Câmaras Municipais ganhou força, após a promulgação de uma lei no município de Lago do Junco, estado do Maranhão. A seguir, analiso esse processo que foi incorporado nas lutas e se expandiu no âmbito de atuação do movimento.
Dinâmicas da mobilização legal: o caso das leis do “babaçu livre”
Desde a sua constituição enquanto movimento social no final da década de 80 do século XX, as quebradeiras de coco babaçu mobilizam-se por duas bandeiras: o fim dos desmatamentos generalizados nas áreas de ocorrência do babaçu e o livre acesso e uso comum das palmeiras (SHIRAISHI NETO, 2006). São motivadas por um sentimento de injustiça (HONNETH, 2003), porque suas terras, ocupadas tradicionalmente, foram cercadas e apropriadas de modo ilegal[9], colocando em risco a sua reprodução física e cultural.
Diante do conflito, o MIQCB priorizou a elaboração de um projeto de lei a ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Ao mesmo tempo, empenhou-se na construção de um discurso – renovado cotidianamente, incorporando novas questões (direitos humanos, ambiental, gênero etc.) – que legitimasse as suas pretensões contra a sistemática violação de direitos preexistentes aos cercamentos e a apropriação ilegal. Por isso, foi atrás de aliados importantes, deputados que pudessem encaminhar a proposição por elas elaborada a partir de sucessivas reuniões. Em 1996, o Projeto de Lei n.º 1.428 passou a tramitar na Câmara dos Deputados, mas foi arquivado ao final da legislatura por força regimental.
Esse mesmo projeto foi reapresentado diversas vezes. Na penúltima (2003-2007), chegou à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, mas nem sequer foi colocado em pauta por seu presidente, o então deputado Michel Temer, a despeito de um parecer do ministro Luiz Edson Fachin, na época professor da Universidade Federal do Paraná, acerca da constitucionalidade do projeto de lei. Dadas as dificuldades institucionais e operacionais, as quebradeiras de coco decidiram deslocar a luta para o plano municipal; assim, projetos tornaram-se leis municipais e, mais recentemente, estaduais (como as leis que criam o Dia Estadual das Quebradeiras de Coco no MA, PI e TO). Ao todo, somam-se mais de 14 leis municipais que dispõem sobre a proibição da derrubada e o livre acesso e uso comum das palmeiras de babaçu.
Da elaboração da proposta à lei municipal, o trâmite envolve a análise da oportunidade política: identificar o vereador que pode apresentar o projeto de lei, discutir previamente o projeto com pessoas ligadas ao prefeito (espécie de lobby junto aos secretários mais influentes) e organizar a pressão política em vários momentos. No dia da votação, as mulheres desenvolvem uma performance: descem das caçambas e vans e dirigem-se juntas à Câmara de Vereadores, com o seu material de trabalho (cestos, abanos, porretes e machados), para acompanhar a votação. Durante a sessão, entoam cantos e protestam contra as falas de vereadores contrários ao projeto.
Os projetos de lei apresentados são modificados e, a depender do grau de organização e de mobilização das quebradeiras de coco, ganham contornos distintos. Algumas leis aprovadas, por exemplo, condicionam o livre acesso e o uso comum à autorização do proprietário da terra. Em um contexto de acirradas disputas, projetos não foram aprovados pelos vereadores; alguns, mesmo aprovados, não foram promulgados pelo prefeito.
As discussões das propostas dos projetos de leis municipais, que antecedem à sua apresentação e tramitação, constituem um processo rico: as quebradeiras de coco recordam as maneiras como eram realizadas as atividades de coleta e da quebra do coco babaçu, lembrando ainda o local e quem as realizava. Na memória coletiva, ficavam os lugares, as histórias, as brincadeiras, as canções, as sensações e os cheiros, partilhados com as famílias. Assim, em uma discussão para a elaboração da proposta da lei do babaçu livre, veio-me à lembrança a fala de uma liderança que apontava a mata hoje cercada, onde a sua mãe, juntamente com tantas outras mulheres, quebrava o coco. A memória e a tradição acumuladas dos vários momentos são fundamentais para identificar os usos do território, fortalecendo as relações identitárias. A produção de leis, pelo visto, tem um duplo resultado prático: a lei em si e o processo que contribui com a organização política para a construção da identidade da quebradeira de coco.
Enquanto experiência, as leis do “babaçu livre”, de autoria das quebradeiras de coco babaçu, inauguraram uma forma de mobilização legal. Elas têm inspirado as estratégias de outros grupos sociais (como os povos indígenas no Amazonas e no Maranhão, faxinalenses no Paraná, comunidades de fundo e fecho de pastos na Bahia, catadoras de mangaba em Sergipe). Ressalte-se que as experiências foram compartilhadas em espaços institucionalizados (Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, hoje, Rede de Povos e Comunidades Tradicionais).
Considerações finais
As experiências relatadas demonstram a profunda consciência que os grupos têm das injustiças sofridas e da necessidade de mobilização do direito para “resolver” os problemas enfrentados, que têm se acirrado nos últimos anos, diante do desmanche das políticas ambientais patrocinado pelo governo; tanto é verdade que esses grupos têm pleno conhecimento de que a eficácia da lei está condicionada à continuidade das mobilizações políticas. A ideia do “direito vivo” ou do “direito em movimento” norteia essas ações. As leis do babaçu livre, por sua vez, que disciplinam o livre acesso às palmeiras de babaçu e a preservação das áreas de ocorrência de babaçu, refletem as necessidades imediatas de reprodução física e cultural das quebradeiras de coco e suas famílias, bem como os anseios do MIQCB, que tem protagonizado essa luta.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; MOURÃO, Laís. Questões agrárias no Maranhão contemporâneo. Pesquisa Antropológica, Brasília, DF, n. 9/10, p. 1-27, 1976.
ARRUTI, José Maurício. Quilombos. In: PINHO, Osmundo (Org.). Raça: perspectivas antropológicas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 1-33. Disponível em: http://files.ufgd.edu.br/arquivos/arquivos/78/NEAB/ARRUTI-%20Jose.%20Quilombos.pdf. Acesso em: 24 abr. 2020.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
Especial Direitos Indígenas/ Episódio 01. Justiça Federal em Debate. AJUF. Brasília, Canal de Podcast da AJUFE. 2022. Acesso em: 19 de abril de 2022. Disponível em: https://podcasts.google.com/feed/aHR0cHM6Ly9hbmNob3IuZm0vcy8zZWQ2OTkyNC9wb2RjYXN0L3Jzcw/episode/MmI3MDlmODItYTA4Ny00M2E2LTk0NWYtMzQ4YmM2MjM4Mjlh?hl=pt-BR&ved=2ahUKEwiJl97ruqD3AhWtG7kGHRVrDVAQjrkEegQICxAF&ep=6
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: editora 34, 2003.
LOSEKANN, Cristiana. Mobilização do direito como repertório de ação coletiva e crítica institucional no campo ambiental brasileiro. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 2, p. 311-349, 2013.
MACIEL, Débora Alves. Ação coletiva, mobilização do direito e instituições políticas: O caso da Campanha da Lei Maria da Penha. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 77, p. 97-112, out. 2011.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Leis do Babaçu Livre: práticas jurídicas das quebradeiras de coco e normas correlatas. Manaus: PPGSCA-UFAM; Fundação Ford, 2006.
SHIRAISHI NETO, Joaquim. Direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. 2. ed. Manaus: UEA Edições, 2010.
VASQUES, Pedro Henrique. Siderúrgica, sujeitos e justiça: um estudo de caso sobre a tentativa de incidência processual por atores sociais na fase pericial de ação individual e coletiva. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 44., 2020, na forma remota. Anais… 2020. Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/44-encontro-anual-da-anpocs/gt-32/gt03-18. Acesso em: 24 abr. 2021.
[1] Advogado, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFMA. Associado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH). E-mail: joaquim.shiraishi@ufma.br. Texto escrito para a conclusão do curso “Direito Internacional dos Direitos Humanos: Uma Abordagem Multidimensional”.
[2] O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho aponta problemas desse projeto, fruto da modernidade, denominado “Constituição Dirigente”, em uma época de “cidadanias múltiplas e de múltiplos cidadãos” (CANOTILHO, 2001, p. XXXII).
[3] No caso de Vasques, ressaltamos que sua análise é abrangente, trazendo o uso da mídia e a mobilização entre os próprios moradores.
[4] A esse respeito, sugerimos o podcast Especial Direitos Indígenas (2022).
[5] Arruti (2008) recorda que as comunidades negras rurais no Pará e no Maranhão vinham se organizando desde 1985-1986, tendo em vista as discussões da redação do novo texto constitucional.
[6] Vale recuperar a organização dos seringueiros autônomos desde 1985, no 4.º Congresso Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, organizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), em Brasília (DF).
[7] As quebradeiras de coco babaçu, por sua vez, organizam-se como grupo desde 1989, quando da realização do 1.º Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, em São Luís (MA), mas somente em 1992 constituíram-se formalmente.
[8] Sobre a emergência e os direitos desses grupos sociais, sugiro a leitura de Direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil (SHIRAISHI NETO, 2010).
[9] No Estado do Maranhão, a Lei n.º 2.979, de 17 de julho de 1969 – denominada Lei Sarney de Terras – possibilitou o açambarcamento das terras devolutas do estado (ALMEIDA; MOURÃO, 1976).
Fonte Imagética: Do coco babaçu à emancipação: o poder das quebradeiras do Maranhão. Foto de Thomas Bauer/CPT. Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4439-do-coco-babacu-a-emancipacao-o-poder-das-quebradeiras-do-maranhao>. Acesso em: 18 abr. 2022.