Paolo Colosso [1]
Nos tempos pré-COVID, ações coletivas pautadas pela cooperação e solidariedade eram vistas como elementos residuais da vida social marcada pelos parâmetros liberais de conduta. Mas o trauma coletivo gerado pela pandemia tem sido um choque que suspende os nexos sedimentados. Nesse estado de emergência vem à tona, ao mesmo tempo, o que produzimos de melhor e de pior em termos civilizatórios. É preciso saber pensar contradições.
Setores da elite econômica contrariam avaliações científicas e recomendações de órgãos internacionais. Colocam o cálculo de curto prazo acima de vidas e, sem hesitação, vêm a público mostrar uma racionalidade inumana. Não raro, aqueles que em momentos de bonança se autodeclaravam lideranças, no momento difícil da pandemia lançam seus funcionários na instabilidade – sem mexer uma palha no lucro de seus acionistas ou em seus próprios caprichos. Outros tantos vão às ruas vociferar seus fanatismos, desejos autoritários e delírios persecutórios. Estimulam a fragmentação e o caos social, avalizados por um presidente irresponsável, que não enfrenta a realidade em sua gravidade[2] e flerta cotidianamente com aventuras autoritárias.
Mas em muitos outros atores sociais, a experiência de enfrentar um mal inédito tem sensibilizado, gerado disposição para o enfrentamento em ações coletivas cooperativas que surpreendem pelo nível de engajamento e pela escala que têm ganhado.
Com organização comunitária e por meio de doações, moradoras/es de Paraisópolis, bairro da periferia da cidade de São Paulo, conseguiram transformar duas escolas estaduais em hospitais de emergência e contrataram três ambulâncias, sendo uma de UTI. Há cerca de 420 jovens e adultos agora intitulados “presidentes de rua”. Cada uma desses cuida de 50 casas, com a função e conscientizar e monitorar o/a morador/a para o isolamento, distribuir doações, evitar aglomerações e oferecer outros cuidados. [3] Mas é preciso destacar que, mesmo com esse envolvimento ímpar, as populações periféricas ainda têm sido as mais castigadas.[4]
O Movimento de Sem Teto do Centro (MSTC), que atua na cidade, tem atendido 4.500 famílias. Aquela senhora, Carmen Silva, que ainda hoje sofre com a criminalização, está nesse momento adverso entre as lideranças que constroem e promovem as campanhas de solidariedade com a população mais vulnerável. Mostra que, de fato, muitas de nossas instituições públicas ainda tem poucas condições de entender quem de fato se empenha no avanço social.
As ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)[5] têm uma escala ainda mais impressionante. No dia 17 de abril, apenas o MST da Bahia fez uma doação de 200 toneladas de alimentos da reforma agrária. As cooperativas gaúchas do movimento doaram 12 toneladas de arroz orgânico para compor cestas básicas a famílias vulneráveis no Rio Grande do Sul. No estado de São Paulo, o movimento produziu mais de 300 litros de sabão e 107 kits de frutas distribuídos a caminhoneiros nas rodovias Transbrasiliana e Marechal Rondon, no noroeste do estado. O MST também entregou gratuitamente 2,5 toneladas de alimentos para 1500 famílias da Favela do Moinho, no centro da capital paulista.
Unidades do Armazém do Campo – lojas de distribuição e venda dos produtos orgânicos da Reforma Agrária – se voltaram às Marmitas Solidárias, em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Somente em Recife, estão sendo distribuídas 1.000 marmitas/dia.[6] Além disso, organizam campanhas de doação e solidariedade envolvendo outros atores, como nas campanhas Vamos Precisar de Todo Mundo e Periferia Viva[7]
Importante perceber que, em todos esses casos, movimentos sociais de sem teto, sem terra e comunitários aglutinam uma rede ampla. Lideranças religiosas, associações de bairro, institutos, ONGs, universidades, Fundações de Saúde (Fiocruz) e, ainda, movimentos de juventude que estão enraizados nos territórios através de cursinhos populares, coletivos etc. Trabalham em parceria com profissionais da saúde à frente do combate. Essas redes reconstroem um tecido social de atendimento, mas também de orientação e de cuidados para a saúde física e psíquica.
Quanto custaria para que uma empresa fizesse em Paraisópolis os trabalhos de acompanhamento de idosos, vigilância da ordem, instalação de equipamentos de emergência etc? Quanto custaria para uma empresa de logística realizar o que tem feito o Movimento de Sem Teto do Centro (MSTC) e o Movimento dos Sem Terra (MST)? Ou antes disso, será que alguma empresa se exporia a esse grau de risco com lucratividade tão incerta?
Nem é o caso de quantificar as respostas para tais questões. O ponto é que a racionalidade motivacional desses sujeitos não é a do cálculo de investimento e retorno. Esses sujeitos querem e precisam sobreviver, mas sentem o apelo de serem convocados a agir para responder a um mal que toca a todos e, portanto, a si mesmos. Não se trata de benevolência cristã de retirar de si em nome de outro. Trata-se de compreender situações em que as saídas coletivas são as mais eficientes e o resultado, por sua vez, é um bem comum. Aí reside um outro principio estruturador da vida social, qual seja, o de que o pessoal é político.
Nessas práticas que se multiplicam reside um movimento expansivo, uma onda de vida em meio ao risco de morte por COVID-19 e por intoxicação com a racionalidade inumana dos cálculos amesquinhados. Os sujeitos envolvidos nessa onda viva voltam a sentir o impacto real de suas ações e, ainda, atualizam a experiência de apostar em saídas coletivas. Isso explica o magnetismo das ações cooperativas e solidárias.
Alguém para quem “não existe almoço grátis” e é convicto no lema “time is money”, certamente acha isso ingenuidade ou romantismo. Mas quem já esteve ao lado desses movimentos sabe que isso é justamente o que os mantém vivos. Porém, o que pretendemos aqui não é saber se esperança, empatia e compaixão de fato existem, mas simplesmente reconhecer a força social e competência engendrados sob essas motivações. Vale lembrarmos de outros exemplos.
Experiências da política habitacional mostram o que agora é reforçado no momento do combate à pandemia. Nos conjuntos habitacionais feitos por grandes construtoras no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), espaços coletivos não cabem no orçamento. As unidades têm 50m2 ou um pouco menos, caixilhos e acabamentos são de segunda linha. Usualmente, nos primeiros dois anos reboco e pintura se desfazem. Não por acaso, segundo a Caixa Econômica Federal cerca de 50% das edificações têm vícios construtivos, o que se traduz em reclamações dos beneficiários e processos litigiosos[8].
Quando os conjuntos habitacionais são feitos com participação e algum grau de autogestão dos movimentos populares – uma minoria dos empreendimentos –, há verbas para construir espaços de convívio, as unidades costumam passar de 60m2 e os materiais também são melhores, porque são escolhidos pelos próprios beneficiários. Não raro, os edifícios projetados deixam de ser obra de engenharia e ganham qualidade de arquitetura, porque tais movimentos trabalham com cooperativas técnicas e laboratórios de universidades mais comprometidas com o espaço vivido pela coletividade.
Nesse processo, moradoras e moradores se tornam sujeitos ativos, partícipes nas decisões a respeito de algo que será deles/as também. Além de espaço habitável, é construído um tecido social que gera pertencimento, cooperação, competência e, ainda, institui um bem comum. Esta é uma experiência coletiva muito distinta daquela de ser lançado numa caixa de fósforo impessoal na qual os vizinhos são estranhos entre si.
O ponto central é o seguinte: por razões diversas, tínhamos sido convencidos de que a figura social que encarna a eficiência é a grande empresa e a saída para as políticas públicas seria a Parceria-Público-Privada – sob a forma de concessões, privatizações etc. Isso precisa ser relativizado em muitas situações.
Quando o poder público é capaz de perceber a legitimidade e competência técnica de movimentos sociais e organizações populares, todas as partes são beneficiadas. No caso da politica habitacional, esses próprios movimentos – em rede com outros atores do projeto BrCidades – já buscam esse reconhecimento a fim de replicar suas experiências pioneiras. Denominam de Parceria-Público-Populares, ou simplesmente PPPOP, a figura jurídica para esses processos.
No momento da pandemia, tem-se usado a ideia de governança compartilhada. Quando conseguirmos vencer a COVID-19, as autoridades capazes de escuta certamente atentarão para essa realidade, não apenas por convicção democrática, mas, sobretudo, porque reside aí possibilidades de enfrentar precariedades urbanas das periferias invisibilizadas e injustiças cometidas com populações secundarizadas.
E sabemos que, para a ideia de governança compartilhada ser levada a sério, será necessário assumir que esses mesmos movimentos e organizações tem competência e conhecimento de causa para deliberar sobre os investimentos públicos. Os exemplos de Paraisópolis e das habitações autogeridas mostram que ninguém melhor do que eles próprios sabe identificar as demandas de seus territórios. Se colocarmos em diálogo essa inteligência coletiva com os avanços em tecnologias participativas, teremos experimentos importantes para a democracia urbana do século XXI.
Em suma, a crise também pode ser o momento de avançar em aspectos antes desapercebidos. Nesse momento, estão desacreditadas tanto o Estado mínimo, a eficiência de mercado quanto a liderança da burguesia nacional, que tem mostrado suas irracionalidades – quando não sua irresponsabilidade e obtusidade. Mesmo num cenário com sérios riscos de fechamento institucional, as práticas cooperativas do poder popular enraizado ganham outra escala, outros espaços na vida urbana e podem se tornar polos aglutinadores na construção, desde já, de um outro futuro em comum.
Notas:
[1] Urbanista, graduado em filosofia pela Unicamp, tem mestrado e doutorado em filosofia pela USP. Atualmente é professor na Universidade Federal de Santa Catarina e está na coordenação do BrCidades – um projeto para as cidades do Brasil.
[2] https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/tacanha-e-picareta-um-retrato-de-nossa-elite/
[3] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/15/paraisopolis-contra-covid-favela-tem-presidentes-de-rua-e-sistema-de-saude.htm
[4] Gráficos a respeito de São Paulo mostram que os bairros de alta renda tem maior numero de infectados, mas os das periferias é maior o número de mortes. Cf SIMONI, C. “Como estrelas no céu: a epidemia pelo número de mortes”. Carta Maior, 19 de abril 2020. https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Como-estrelas-no-ceu-a-epidemia-pelo-numero-de-mortes/4/47211
[5] Vale conferir a entrevista de João Pedro Stedile a https://tutameia.jor.br/soberania-alimentar-e-resposta-a-crise/
[6] https://www.instagram.com/tv/B-hj5CAHNw2/?igshid=1sfqnpf73yt4r
[7]https://todomundo.org/#querodoar
[8] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,quase-50-das-casas-do-minha-casa-minha-minha-vida-tem-falhas-de-construcao,70001654211