Mércia Alves[1]
Joyce Miranda Leão Martins[2]
Na América Latina, uma nova temporalidade foi estabelecida a partir da “politização reativa da reprodução e da sexualidade” (Vaggione, Machado e Biroli, 2020, p. 17) com o ataque à emergência de novos direitos que colocam mulheres e homossexuais como sujeitos políticos[3]. Os autores denominam de neoconservadorismo o movimento que se relaciona à década de 1990 e que, a partir dos anos 2000, “se tornaria uma estratégia mais ampla para alianças conservadoras na política” (Biroli, 2020, p. 145). O recurso à chamada “ideologia de gênero” vem funcionando como “cola simbólica” (Corrêa, 2019) entre neoliberais e religiosos latino-americanos, unidos na defesa da família tradicional e de determinada visão de mundo, pois “não é o pluralismo das crenças o bem jurídico a se proteger, mas as próprias crenças religiosas ameaçadas por reformas legais que garantem os direitos sexuais e reprodutivos” (Vaggione, 2020, p. 77).
O neoconservadorismo, entendido como racionalidade política que se expressa em forte regulação da moralidade sexual (Brown, 2019) e “tática que permite reposicionar o Estado laico e a relação entre autoridade estatal, autoridade paterna e direitos individuais” (Biroli; Machado; Vaggione, 2020a, p. 8), tem dimensões transnacionais e jurídicas; opera dentro de contextos democráticos (Biroli: Machado; Vaggione, 2020b), e ganha diferentes contornos a depender do contexto em que é exercido. É nesse sentido que, segundo Corrêa (2019), a “cola da ideologia de gênero” juntou, no Brasil, não apenas conteúdos e atores hostis a questões de sexualidades e gênero, mas também elementos relacionados à contraface desse dispositivo: o espectro do comunismo, que alicerça ideologicamente o neoconservadorismo no Brasil contemporâneo.
Compreender a reação aos direitos sexuais e reprodutivos como fazendo parte de um novo tipo de conservadorismo “permite caracterizar o fenômeno em sua emergência no momento político atual, ressaltando as coalizões diversas que o sustentam em um contexto específico” (Vaggione; Machado; Biroli, 2020, p. 25). Além disso, possibilita chamar a atenção para uma novidade importante: “os posicionamentos em relação a gênero e sexualidade são medular no debate político da América Latina contemporânea” (Caminotti; Tabbusch, 2021).
Trazido à teoria política e social na década de 1970, uma das maiores potencialidades do conceito de gênero é permitir o questionamento dos papéis sociais responsáveis pelas desigualdades entre os sexos, bem como da inferiorização de determinados modos de vivenciar a sexualidade. Isso porque gênero é uma tentativa de diferenciar condicionamentos biológicos de construções sociais. Sua utilização como categoria analítica permite evidenciar que ele é “forma primeira de significar relações de poder” (Scott, 1989, p. 21), tendo em vista a divisão dos espaços público e privado entre os sexos e também a consideração de sexualidades como legítimas ou ilegítimas.
Compreendendo que o poder afeta e constrói o sexual, os movimentos feministas e LGBTQIAP+ realizam “não somente uma crítica a uma concepção biologizante, naturalista, da sexualidade, mas também uma crítica às hierarquizações e relações de poder que essa concepção mascara” (Vaggione, 2020, p. 48). E em oposição a gênero como categoria de análise, “o enquadramento da ‘ideologia de gênero’ afirma a existência de uma ordem sexual natural e proporciona uma resposta epistemológica frente aos marcos emancipatórios dos feminismos” (Corredor, 2019 apud Caminotti, Tabbusch, 2021, p. 33).
Foi justamente o ataque antigênero que permitiu a Bolsonaro ganhar grande visibilidade ainda no primeiro governo de Dilma Rousseff, ao criticar materiais didáticos contra a homofobia, apelidando-os de “kit gay”. Dessa forma, tornou-se um dos porta-vozes da Bancada Religiosa. Como afirmou Dip (2018, p. 19), a aproximação de uma direita orgulhosa de si e a Igreja Evangélica, “toma rosto no comunismo, no feminismo, no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer participação social que peça por igualdade de direitos”. Conforme Biroli (2020, p. 156), o ataque à perspectiva de gênero é utilizado para “desmantelar as instituições democráticas, mudar o currículo escolar e atacar organizações que apoiam a pesquisa científica no país”.
Anos depois daquele episódio no governo de Rousseff, nas campanhas presidenciais do então candidato Jair Bolsonaro, o ataque às mulheres e à população LBTQIAP+ não ocorreu de modo explícito. Os inimigos do povo eram os corruptos e os que “dividiam” o país entre mulheres, negros, indígenas, homens brancos. Além do PT, ali estavam inseridos os movimentos sociais, sua demanda por inclusão política, os mais recentes avanços da cidadania (que vão desde conquistas da Constituição de 1988 até as cotas para negros nas universidades). As imagens do inimigo foram fundamentais para a construção da imagem do líder salvador da nação e da família brasileira. Sabendo que precisaria vencer grande rejeição, principalmente das mulheres, as campanhas eleitorais tentaram amenizar sua imagem de misógino, evidenciando uma imagem camuflada do neoconservadorismo.
A ideia de apresentar um Bolsonaro duro com os inimigos e sensível com a família ajudavam a aproximá-lo do eleitorado, indignado com os escândalos que assolavam o país e com a “ideologia de gênero”, reenquadramento feito por lideranças políticas e religiosas, das disputas por igualdade de direitos. No discurso da campanha, a mulher aparece como alguém que deve ser cuidado e protegido, uma forma de perpetuar a subordinação e manter inalterada as desigualdades entre homens e mulheres, sem falar explicitamente a respeito das assimetrias sociais e econômicas, ambas relacionadas a gênero.
As soluções para os males do país foram apresentadas no âmbito individual, com discursos simples, de um pai igual a tantos outros preocupados com a família. Do mesmo modo, ao apresentar a esquerda como perversa, corrupta e divisora da pátria, a campanha afastava tal espectro político do brasileiro comum, ao mesmo tempo em que o amedrontava com o “fantasma do comunismo”.
A estratégia apresentada nas campanhas de 2018 e 2022 foi a de mostrar Bolsonaro como a liderança política moderada, longe de acessos comportamentais, defensor da família e salvador da mulher com quem casou e tirou do limbo de “mãe solteira”, no lugar do personagem caricato, homofóbico e explicitamente machista. A partir da campanha na TV, percebe-se que o Bolsonaro que fala ao grande público não foi o personagem “sem filtros” das redes sociais. O “político não adaptado ao sistema”, concorrendo por partido até então insignificante, desejava fazer valer a voz do povo, a voz do “pai de família”, erguida em defesa da mulher e da prole. A sigla obscura, pouco mobilizada em ambos os pleitos, fazia parte da credibilidade do discurso: seu partido era o Brasil, sua ideologia era a pátria.
Os populares que apareceram nas campanhas pediam desde a defesa das crianças e da família até um candidato que tivesse “Deus no coração”. A esfera privada se tornou um elemento do jogo, transformando em valor político o que era valor particular.
O Brasil, país diverso pela sua constituição e cultura, foi apresentado de modo reduzido, incapaz de abranger a diversidade de debates e pontos de vista que circulam em nossa sociedade, posto que o povo era supostamente homogêneo em suas ideias. Desse modo, mobilizavam-se imaginários que deslegitimavam requisitos da democracia liberal, como a pluralidade e a laicidade, corroborando com o fato de que o neoconservadorismo defende concepções morais unitárias (Biroli et al, 2020) e, por isso, fragiliza a democracia.
A mulher, a mulher negra e o pobre não “iam ao ar” com suas perspectivas e interesses, mas apenas para legitimar Bolsonaro e as ideias que ele levava adiante. Deus era apenas o dos cristãos, sem menção àqueles das cosmovisões indígenas ou das religiões de matriz africana, ou seja, sem referência à liberdade de credo. Assim, não era que Bolsonaro se parecesse com todo o povo, mas este estava ali para ajudá-lo a defender um Brasil que só existe de modo imaginário.
A nova política representada por Bolsonaro significava não apenas o fim da corrupção e dos antigos partidos, mas também das instituições representativas, de modo geral, assim como da laicidade estatal e do reconhecimento da diversidade da sociedade brasileira. Assim, não era que Bolsonaro se parecesse com todo o povo, mas este estava ali para ajudá-lo a defender um Brasil que só existe de modo imaginário. Nesse sentido, a “nova política” significou não apenas o fim da corrupção e dos antigos partidos, mas das instituições representativas, assim como da laicidade estatal e do reconhecimento da diversidade da sociedade brasileira. O neoconservadorismo carrega consigo o entulho de ordens autoritárias, que não conheciam direitos, liberdade religiosa ou sujeitos marginalizados como fazendo parte do espectro da cidadania.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BIROLI, Flávia. Gênero, valores familiares e democracia. In: BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco (org.). Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 135-189.
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco (org.). Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020b.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019. 256p.
CAMINOTTI, Mariana; TABBUSCH, Constanza. El embate neoconservador a las políticas de igualdad de género tras el fin del “giro a la izquierda” en América Latina. Población & Sociedad. v. 28, n. 2, p. 29-50, 2021.
CORRÊA, Sonia. Eleições brasileiras de 2018: a catástrofe perfeita? Sexual Policy Watch (SPW). Disponível em: <https://is.gd/VIagXP>. Acesso em: 03 jul. 2019.
DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. (s/n). Traduzido por DABAT, Christine Rufino; ÁVILA, Maria Betânia. Texto original: SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. In: SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press. 1989.
VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos; BIROLI, Flávia. Introdução: matrizes do neoconservadorismo religioso na América Latina. In: BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco (org.). Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020a, p. 13-40.
VAGGIONE, Juan Marco. A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina. In: BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco (org.). Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020b, p. 41-82.
[1] Doutora em Ciência Política pela UFSCar, professora do Departamento de Ciência Política da UFPR, e pesquisadora do Comunicação Eleitoral (CEL – UFPR) e do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP – PUC/SP). Email: merciaallves@gmail.com
[2] Doutora em Ciência Política pela UFRGS, professora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP – PUC/SP), e do Núcleo de Investigação em Práticas e Competências Midiáticas (NIP-COM), da Universidade Autônoma de Lisboa (UAL). Email: joycesnitram@yahoo.com.br
[3] No início dos anos 2000, ainda não se utilizava a atual nomenclatura LGBTQIA+, e as lutas diziam respeito, principalmente, ao casamento civil de homossexuais e reconhecimento da diversidade sexual.
Fonte Imagética: Agência Brasil. Desfile cívico-militar do 7 de Setembro, que este ano comemora o Bicentenário (200 anos) da Independência do Brasil. 7 set. 2022. Fotografia de Marcelo Camargo/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2022-09/desfile-civico-militar-do-7-de-setembro-que-este-ano-comemora-o-bicentenario-200-anos-da-independencia-do-brasil-1662567892#>. Acesso em: 4 out. 2023.