Sérgio Mendonça Benedito[1]
04 de junho de 2024
Este texto reproduz a apresentação oral de um trabalho, com o mesmo título, realizada no GT 3 (Teoria e pensamento político) do VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, no dia 18 de fevereiro de 2022. A versão revisada e final do ensaio foi recentemente publicada na revista Agenda Política (UFSCar).
Bom dia a todos e a todas. Primeiramente gostaria de agradecer pelo aceite do meu trabalho neste Grupo de Trabalho (GT) “Teoria e pensamento político” do VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, e de parabenizar a organização do evento e a coordenação do GT, nas pessoas de Marcelo Sevaybricker, Gabriela Rosa e Rodrigo Badaró. É um grande prazer estar aqui com todos/as vocês.
Sobre o texto que submeti ao GT, pensei em fazer uma apresentação mais geral, sem entrar nas minúcias do texto que a debatedora teve acesso e que estará disponível nos anais do evento para aqueles e aquelas que tenham se interessado pelo seu tema.
Trata-se de um trabalho que ainda se encontra em desenvolvimento, elaborado primeiramente em uma disciplina da pós-graduação em Ciência Política da USP dedicada inteiramente ao pensamento do sociólogo alemão Wolfgang Streeck. Mas algumas das leituras que me levaram a elaborá-lo eu já havia iniciado no mestrado, na Universidade Federal de Goiás (UFG), em uma disciplina ministrada pelo professor Francisco Tavares e intitulada “Estado e democracia na era da austeridade”. Atualmente,o professor Francisco coordena na UFG um núcleo de estudos sobre sociologia fiscal, o GESF, e um grupo de estudos sobre neoliberalismo.
Ademais, uma outra produção de minha autoria relacionada ao tema foi um artigo publicado recentemente na revista Leviathan, da USP, sob o título “Representação política em contextos de neoliberalismo e austeridade: possíveis contribuições analíticas a partir da sociologia fiscal”, caso alguém tenha interesse.
O texto que estou apresentando teve como objetivo estabelecer um diálogo crítico entre a literatura sobre o neoliberalismo como projeto político-intelectual e a obra de Streeck segundo a perspectiva da economia política da era neoliberal. Entende-se que a abordagem do sociólogo alemão sobre a crise do capitalismo democrático apresenta uma visão restrita do neoliberalismo, focada no aspecto econômico, e que não apreende o seu caráter estrutural, ou ainda o modelo de sociedade que propõem alguns de seus intelectuais, fundado em uma moral de base tradicionalista.
Em sua estrutura, o trabalho se inicia com uma síntese a respeito das origens, dos pressupostos dos neoliberais e algumas de suas proposições mais gerais. Depois, passei a considerar os méritos e os limites da obra recente de Streeck sobre a crise do capitalismo democrático. Na última seção, busquei oferecer uma perspectiva mais ampla do neoliberalismo e sua difusão ideológica na sociedade, para além da economia, tratando também sobre a sua afinidade com o conservadorismo e a manutenção das desigualdades históricas, como as de gênero e raça, por exemplo.
O que me levou a desenvolver esse estudo foi uma certa inquietação com o fato de que, apesar de Streeck não adotar o neoliberalismo especificamente como objeto de estudo, percebe-se em sua obra uma noção empobrecida do conceito e de sua prática, já que ele se concentra na dimensão econômica do neoliberalismo (segundo uma certa interpretação de base político-econômica) e seus efeitos na democracia contemporânea no Norte global. A minha intenção, dessa forma, foi complementar essa interpretação com estudos sobre o neoliberalismo como projeto político de maneira a compreender melhor como sua hegemonia se afirma na atualidade e como ele se tornou tão difundido.
Streeck oferece uma interpretação ousada das crises sequenciais do capitalismo democrático desde a publicação de Tempo comprado em 2014[2]. Seguindo uma abordagem da economia política em perspectiva histórica, ele analisa a passagem do Estado fiscal para o Estado endividado, e, mais recentemente, deste último para o Estado de consolidação. Conforme os governos perdiam autonomia e capacidade de decisão com o acirramento do conflito redistributivo, pressionados pelo endividamento e pressão de instituições transnacionais, a resposta passava a ser a austeridade. Nesse processo, a política democrática foi se esvaziando e perdendo sentido para amplos setores sociais.
Ao invés de reforçar o ponto da inviabilidade do arranjo entre capitalismo e democracia Streeck, inicialmente, vislumbra retornos (ao âmbito nacional, pela abolição do euro; a um modelo análogo ao de Bretton Woods) e o apelo à violência nas ruas para coagir as elites políticas. Depois, em Como irá acabar o capitalismo, de 2016[3], o autor decreta a morte do capitalismo, ao afirmar que ele está morto, mas não há um modelo alternativo que o substitua. Ao fazer isso ele se entrega a uma espécie de niilismo, abstendo-se de propor soluções ou um projeto político de longo prazo que faça frente ao cenário de precariedade social e econômica apresentado na obra.
Assim, proponho que a literatura sobre o conceito de neoliberalismo nos auxilia a superar interpretações como de Streeck, que enfatizam um suposto fundamentalismo de mercado de seus operadores, e que o objetivo seria fazer do mercado uma entidade autônoma, atuando segundo suas próprias leis ou regras – uma interpretação fundada em uma certa leitura de Karl Polanyi[4]. Desde o princípio, o projeto neoliberal envolvia proatividade na consecução de um projeto de sociedade que não se reduz ao econômico. A sociedade de mercado e competitiva que vislumbram não está desligada de uma consideração da estrutura social e cultural, e os autores desta vertente estiveram bastante interessados no vínculo entre política, sociedade e economia, como destacou Thomas Biebricher[5].
Portanto, a economia, ou o livre mercado, não pode funcionar sem bases sociais que devem ser construídas, as quais também demandam uma base moral de fundo individualista. É isso que autores como Mirowski[6], Plehwe[7], Biebricher e Slobodian[8] enfatizam em seus escritos. Enfim, mais significativamente, eles chamam a atenção para o caráter antidemocrático do neoliberalismo desde a sua origem (o que não se trataria de um acidente).
Posteriormente, na última seção do texto eu trouxe as obras de Colin Hay[9], Wendy Brown[10], Dardot e co-autores[11], e Jessica Whyte[12] de modo a destacar como o neoliberalismo não está desligado de certas ideias e de uma moralidade que lhe dá vigor e potencial de aceitação societária – não sem resistência popular.
Em poucas palavras, os preceitos e ideias neoliberais potencializaram uma visão pejorativa da política, deslegitimando a democracia e deliberação sobre temas importantes da sociedade. Desse modo, instigaram como solução a retirada das políticas do debate público por diferentes meios despolitizantes, como pela atuação de corpos técnicos e instituições alheias aos mecanismos de accountability. Mas, como observa Brown, o neoliberalismo promove não apenas a demonização do social, do comum, e do político, mas também se associa com a valorização de uma moralidade tradicional. Isso tem o efeito de fortalecer as desigualdades históricas e duradouras, por exemplo quanto ao papel das mulheres, pessoas negras e imigrantes na sociedade.
O curioso é que a precariedade social e econômica obtida pela consecução dos princípios neoliberais não levou a um cenário de plena aceitação e “paz” para os mercados. Dardot, Haud, Laval e Sauvêtre, em obra coletiva de 2021, possuem uma visão distinta, de que o neoliberalismo nasce justamente de uma escolha pela guerra civil que não abriria margem para um cenário de estabilidade política – pelo confronto aberto com vertentes políticas que defendem concepções mais densas do social e que defendem uma perspectiva coletivista. Mas, em última instância, não se pode deixar de perceber que a instabilidade que se percebe atualmente é em grande medida detrimental para os agentes do mercado.
Enfim, dentro dessa discussão a respeito do modelo de sociedade almejado pelos neoliberais, a obra de Jessica Whyte possibilita esclarecer que um mercado competitivo que funcione requer uma fundação moral e legal adequada. Isso envolve a valorização de princípios conservadores, valores familiares e religiosos que enaltecem o indivíduo, plenamente responsável por suas escolhas e seu sucesso, com base na ideia de meritocracia. A associação entre conservadorismo social e neoliberalismo, portanto, não seria acidental, mas importante para dar concretude ao modelo de sociedade vislumbrado por eles.
Por todo o exposto, por mais que a abordagem da economia política de Streeck seja muito oportuna e ofereça excelentes subsídios, meu argumento é que é necessário entender o fenômeno neoliberal de maneira mais ampla em sua difusão societária e constituição ideológica. Isto é o que faz que mesmo aqueles e aquelas que saem perdendo em um cenário de precarização de direitos sociais, do mercado de trabalho e dos serviços públicos apoiem seus ideais. Fazer frente ao neoliberalismo, como se pode entender a partir de Brown, Dardot e co-autores exige a formulação de um projeto político com forte ênfase na igualdade, que dê condições à plena realização da democracia, e que faça frente à sua demonização da política, do coletivo ou do comum.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com
[2] Streeck, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018. Em inglês: Streeck, Wolfgang. Buying time: the delayed crisis of democratic capitalism. 2. ed. Londres: Verso, 2017 [2014].
[3] Streeck, Wolfgang. How will capitalism end? Essays on a failing system. Londres: Verso, 2016.
[4] Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens políticas e econômicas do nosso tempo. Lisboa: Edições 70, 2012 [1944].
[5] Biebricher, Thomas. The political theory of neoliberalism. Stanford: Stanford University Press, 2018.
[6] Mirowski, Philip. Postface: defining neoliberalism. In: MIROWSKI, Philip; PLEHWE, Dieter (Org.). The road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Cambridge: Harvard University Press, 2009. p. 417-455.
[7] Plehwe, Dieter. Introduction. In: MIROWSKI, Philip; PLEHWE, Dieter (Org.). The road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Cambridge: Harvard University Press, 2009. p. 1-42.
[8] Slobodian, Quinn. Globalists: the end of empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 2018.
[9] Hay, Colin. Why we hate politics. Cambridge: Polity Press, 2007.
[10] Brown, Wendy. In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the west. New York: Columbia University Press, 2019.
[11] Dardot, Pierre; Haud, Guéguen; Laval, Christian; Sauvêtre, Pierre. A escolha pela guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. Tradução de Márcia Pereira Cunha. São Paulo: Elefante, 2021.
[12] Whyte, Jessica. The morals of the market: human rights and the rise of neoliberalism. Edição digital. London: Verso, 2019.
Fonte imagética: Wikimedia Commons. How Will Capitalism End: Reflections on a Failing System – A Lecture by Wolfgang Streeck, 2017. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:How_Will_Capitalism_End_Reflections_on_a_Failing_System_-_A_Lecture_by_Wolfgang_Streeck_%2833967642442%29.jpg>. Acesso em 4 abril 2024.