Gabriel de Matos Garcia1
11 de novembro de 2024
Este texto abre uma série especial do Boletim Lua Nova sobre os 50 anos de publicação da obra Anarquia, Estado e Utopia (1974), de Robert Nozick.
Introdução
No ano de 2024, a publicação da obra Anarquia, estado e utopia (1974), de Robert Nozick, completa seu aniversário de 50 anos. Ao longo desse período, essa obra se consolidou como um clássico da teoria política contemporânea, sendo analisada, principalmente, como um importante contraponto a Uma teoria da justiça, publicada por John Rawls três anos antes.
Apesar dessa análise ser completamente correta e importante (afinal, o próprio Nozick dedica toda a seção II do capítulo 7 de seu livro para criticar a teoria rawlsiana), eu gostaria de destacar outro ponto que considero muito importante para compreendermos a contribuição dessa obra para a teoria política. No mesmo período no qual Anarquia, estado e utopia foi publicado, outras obras importantes surgiram, como: Capitalismo e liberdade (1962) de Milton Friedman; Os fundamentos da liberdade (1960) e os três volumes de Lei, legislação e liberdade (1973, 1976, 1979) de F.A. Hayek; Por uma nova liberdade (1973) de Murray Rothbard e, um pouco mais distante, Ação humana (1949) de Ludwig von Mises.
Nozick tem em comum com esses autores o fato de ser libertariano. Entendo como libertariano, neste contexto, o autor que possui um compromisso com seis ideias, as quais constituem o cerne do libertarianismo: (a) a defesa da propriedade privada; (b) o ceticismo em relação à autoridade, principalmente à autoridade política; (c) a defesa de mercados livres; (d) a crença na ordem espontânea; (e) a defesa do individualismo; e, por fim, (f) a defesa de um sentido negativo de liberdade. (Tomasi; Zwolinski, 2023, p. 21).
Porém, Nozick diverge desses autores na fundamentação normativa que ele desenvolve para ancorar seu compromisso com essas ideias. Enquanto os autores mencionados acima são consequencialistas2, Nozick elabora uma complexa fundamentação deontológica em sua defesa do libertarianismo. O desenvolvimento de uma robusta fundamentação desse tipo, que se coloca como uma alternativa ao consequencialismo dominante até então, é, do meu ponto de vista, a principal contribuição de Nozick para a teoria política libertariana.
No restante deste texto, meu objetivo é contrastar essa fundamentação deontológica desenvolvida por Nozick com a fundamentação consequencialista sustentada por F.A. Hayek.
Hayek, o problema do conhecimento e as “regras de conduta justa”
F. A. Hayek, em seus primeiros anos como estudante de graduação em Viena, era socialista. Esse posicionamento mudou quando ele teve contato com a obra Socialismo, publicada por Ludwig von Mises em 1922. Como ele mesmo sustenta: “O sistema socialista prometeu realizar nossas esperanças por um mundo mais racional e justo. E então veio este livro. Nossas esperanças foram frustradas. Socialismo nos disse que estávamos procurando melhorias na direção errada”. (Mises, 1981, p. xix)3.
A crença central defendida pelos socialistas nesse período era a de que uma economia racional só pode ser obtida através de um planejamento único e centralizado. Nesse sentido, para racionalizarmos a economia, seria necessário que um planejador central (o Estado) elaborasse um plano abrangente que determinasse de que modo todos os recursos devessem ser utilizados para atingir da melhor forma possível os objetivos da sociedade. Resumidamente, o argumento de Mises é o de que seria impossível para o planejador central alocar racionalmente esses recursos. A alocação racional exige o conhecimento dos valores dos insumos, matérias-primas e processos produtivos envolvidos, assim como dos valores dos distintos produtos finais de consumo que podem ser obtidos a partir da combinação desses fatores. Esse conhecimento se baseia nos preços de mercado desses itens. Como o socialismo aboliria o livre mercado, esses preços não existiriam e, consequentemente, o planejador não teria o conhecimento necessário para alocar os recursos eficientemente.
Em uma série de artigos publicados nos anos 1930 e 19404, Hayek complementa o argumento de Mises sustentando que, além do planejador central não ter o conhecimento dos preços, ele também não teria o conhecimento sobre as circunstâncias locais e específicas as quais os indivíduos estão submetidos, como, por exemplo, a possibilidade de utilizar uma máquina que antes estava quebrada ou a substituição de uma matéria-prima por outra mais barata. Segundo Hayek, uma sociedade baseada no livre mercado resolveria ambos os problemas. Ao dispersarmos a tomada de decisão econômica em direção aos agentes individuais, estes podem utilizar o conhecimento que apenas eles possuem, baseando-se nos preços formados pelo mecanismo de mercado, para alocar seus recursos da forma mais racional possível. O ajuste dessa interação entre os indivíduos tende a produzir uma alocação muito mais eficiente do que aquela realizada mediante um planejamento centralizado.
De forma mais geral, Hayek considera, a partir desses artigos, que há duas ordens sociais alternativas. A primeira é a ordem social planejada, na qual um organizador central aloca os recursos de acordo com um plano previamente estabelecido. Nesse tipo de ordem social, as leis são consideradas instruções, as quais as partes devem cumprir para que o plano em sua totalidade seja posto em prática. A segunda ordem social é a espontânea, a qual emerge através de um processo de interação entre os indivíduos que a compõem. As leis nesse tipo de ordem consistem em restrições à conduta individual que protegem os indivíduos na realização de seus próprios fins.
A principal ordem social espontânea, para Hayek, é a ordem do livre mercado e da propriedade privada. Neste tipo de ordem, os indivíduos não obedecem às diretivas de um planejador central para que um suposto plano social seja implementado. Em vez disso, os indivíduos buscam seus próprios fins com a condição de obedecerem a determinadas leis, as quais têm a função de apenas restringir a forma pela qual a busca dos próprios objetivos pode ser feita. Hayek denomina essas leis como “regras de conduta justa”.
Enquanto Hayek admite a possibilidade de que essas leis possam ser fruto do planejamento humano, ele sustenta ser altamente improvável que isso aconteça, já que seria muito difícil que um homem, ou até mesmo um conjunto de homens, conseguisse planejar as leis que, respeitadas pelos indivíduos, fossem capazes de produzir uma ordem tão complexa quanto o mercado. Em vez disso, Hayek argumenta que essas leis normalmente surgem através de um processo de “evolução cultural” que é, ele próprio, espontâneo. Nas palavras de Hayek: “essas regras de conduta, portanto, não se desenvolveram como condições reconhecidas para a obtenção de um propósito conhecido, mas evoluíram porque os grupos que as praticavam tiveram mais sucesso e substituíram outros”. (Hayek, 1973, p. 18).
Essas leis, portanto, também transmitem informações, a saber, que tipos de relações os seres humanos devem estabelecer para que sejam capazes de implementar a cooperação social para vantagem mútua. A evolução da ordem social espontânea baseada nas regras de conduta justa também teve como seu paralelo a evolução da disposição dos indivíduos para o respeito e cumprimento dessas regras, pois somente dessa forma esse tipo de sociedade teve o poder de sobreviver ao processo evolutivo e descartar outros tipos de sociedade, principalmente aqueles baseados na ordem social planejada.
Para Hayek, a obediência sistemática dos indivíduos a essas regras de conduta são fundamentais para que seus efeitos positivos, como permitir a cooperação social mutuamente vantajosa, sejam possíveis. Se o respeito a essas regras se torna uma questão de conveniência, avaliada caso a caso, os indivíduos já não terão garantias se e quando essas regras se aplicarão, o que provocaria uma descrença generalizada nessas regras e, consequentemente, da sua capacidade de possibilitar uma cooperação social benéfica. “As regras que foram adotadas devido aos seus efeitos benéficos na maioria dos casos terão esses efeitos apenas se forem aplicadas a todos os casos aos quais se referem, independentemente de ser conhecido, ou mesmo verdadeiro, que terão um efeito benéfico em um caso específico”. (Hayek, 1976, p. 16).
Segundo Hayek, portanto, por mais que essas regras de conduta justa sejam justificadas pelos efeitos benéficos que promovem, elas só promoverão esses efeitos se forem tratadas como valores últimos. A justificação consequencialista exige que o consequencialismo não seja diretamente considerado pelos indivíduos.
Nozick, a separação das pessoas e as restrições laterais à ação
Robert Nozick, assim como Hayek, era socialista no início da sua vida acadêmica, mas, em parte devido às leituras deste último, se tornou um libertariano. Porém, como pretendo demonstrar, a fundamentação normativa na qual Nozick se baseia é muito distinta da que foi elaborada por Hayek.
Nozick inicia seu argumento examinando por que o utilitarismo está equivocado quando sustenta que podemos impor determinadas perdas a alguns indivíduos, desde que ganhos maiores sejam proporcionados a outros. Segundo essa tese, da mesma forma que individualmente incorremos em males menores para que posteriormente colhamos benefícios maiores, poderíamos realizar isso socialmente, ou seja, impor sacrifícios a alguns indivíduos para que um bem social maior seja produzido. O problema, segundo Nozick, é que
[…] não há entidade social com um bem que sofra algum sacrifício para seu próprio bem. Há apenas pessoas individuais, diferentes pessoas individuais, com suas próprias vidas. Usar uma dessas pessoas para o benefício de outras, usa-a e beneficia as outras. Nada mais. O que acontece é que algo é feito a ela para o bem dos outros. Falar de um bem social geral mascara isso. (Nozick, 1974, p. 32-3).
Segundo Nozick, portanto, a sociedade não é uma “fusão” de indivíduos. Cálculos de prejuízos e benefícios são legítimos quando feitos pelos indivíduos em suas próprias vidas, mas ilegítimos quando envolvem ponderações entre vidas distintas.
Por mais que esse argumento de Nozick demonstre a inadequação do argumento utilitarista, é importante questionar: por que impor sacrifícios a uns para o benefício de outros é moralmente errado e gera um dano aos primeiros? Segundo Nozick, isso se deve ao fato de que a imposição desses sacrifícios ignora que os indivíduos são pessoas separadas com um sistema próprio de fins racionais os quais elas buscam promover.
Nozick considera que para levarmos suficientemente em consideração esse status das pessoas, devemos restringir nossa conduta em relação a elas quando buscamos promover nossos próprios fins. Não podemos tratar outras pessoas, reivindicando a famosa linguagem kantiana, como apenas meios para nossos fins. Nozick denomina essas restrições como “restrições laterais à ação” (moral side constraints).
Que tipo de restrições laterais à ação devemos respeitar? Nozick tem certo receio de que seu argumento vá longe demais e exija que restrinjamos em grande parte nossa conduta em relação aos demais. Por exemplo, se obtemos prazer ao estar na companhia de outra pessoa, estamos usando-a meramente como um meio para a promoção de nossos fins? Nozick não enfrenta essas questões, e sugere, de forma um tanto quanto arbitrária, que, do ponto de vista da filosofia política, o principal tipo de restrição lateral à ação com a qual precisamos nos preocupar é a agressão.
É importante ressaltar que as restrições laterais à ação são deveres que os indivíduos devem cumprir em sua conduta em relação aos demais. Os direitos individuais surgem como corolário desses deveres. O indivíduo A tem o dever de não agredir B porque este possui um status moral como uma pessoa racional com seu próprio sistema de fins, e B pode reivindicar que tem o direito de não ser agredido em função de possuir esse status.
Observemos como esse argumento é distinto daquele que seria defendido por um consequencialista. O dever de A de não agredir B (e o respectivo direito de B de não ser agredido por A) não depende do valor dessa ação para A, B ou até mesmo para a sociedade em geral. O dever de A de não agredir não depende das possíveis consequências negativas para A decorrentes dessa ação, assim como o direito de não ser agredido de B também não depende das consequências que ele sofreria caso A o agredisse. O dever de A e o direito de B decorrem do status moral possuído por B, e nada além.
A partir dos elementos discutidos até aqui, Nozick deriva três ideias que são muito importantes. Em primeiro lugar, Nozick sustenta que os direitos individuais determinam um espaço moral. “Uma linha (ou um hiperplano) circunscreve uma área no espaço moral em torno de um indivíduo. Locke afirma que essa linha é determinada pelos direitos naturais do indivíduo, que limitam a ação dos outros”. (Nozick, 1974, p. 57). Dentro desse espaço, o indivíduo pode agir como achar adequado, e esse espaço não pode ser ultrapassado a não ser que o portador do direito autorize. Em segundo lugar, esses direitos são “copossíveis”, ou seja, o indivíduo A é capaz de exercer seus direitos como preferir sem necessariamente violar o exercício dos direitos do indivíduo B, e vice-versa.
Por fim, Nozick sustenta que considerar que os direitos definem um espaço moral e são copossíveis nos leva a interpretá-los como um tipo de propriedade. Segundo Nozick,
O núcleo básico da noção do direito de propriedade sobre X, em relação ao qual outras partes da noção têm de ser explicadas, é o direito de determinar o que será feito com X; o direito de decidir qual dos conjuntos restritos de opções referentes a X será realizado ou tentado. […] Meus direitos de propriedade sobre minha faca permitem que eu a deixe onde quiser, mas não dentro do seu peito. (Nozick, 1974, p. 171).
Uma vez que, dentro de seus respectivos espaços morais, sem infringir os direitos dos demais, os indivíduos podem determinar o que fazer com as suas próprias vidas, cada indivíduo é proprietário de pelo menos uma coisa: si mesmo. Cada um tem o direito de usar suas próprias potencialidades e capacidades para promover seus próprios fins da forma que achar melhor, desde que respeite as restrições laterais à ação para que esse direito seja garantido a todos.
Conclusão
Meu objetivo nas seções acima foi demonstrar como a fundamentação normativa construída por Nozick, baseada na deontologia, difere da fundamentação consequencialista dominante até então, exemplificada pela teoria hayekiana. Porém, nesse ponto o leitor poderia indagar: por que a diferença de fundamentação é relevante? Afinal, ainda que com fundamentações distintas, não são Nozick e Hayek ambos libertarianos, compromissados com as seis ideias mencionadas na introdução?
Devemos ter em mente que, por mais que Nozick e Hayek sejam libertarianos e comprometidos com as seis ideias mencionadas acima, o grau e as implicações desse compromisso variam profundamente conforme a fundamentação normativa que eles assumem. Tomemos como exemplo o direito de propriedade privada. Nozick o considera um direito absoluto, que só pode ser restringido nos casos em que o fazer seja necessário para a preservação desse próprio direito. Hayek, no entanto, sustenta haver uma forte presunção em favor do direito de propriedade privada, mas que pode ser superada por uma série de considerações moralmente relevantes. Nesse sentido, Hayek aceita que esse direito sofra restrições para impedir a formação de monopólios, garantir a eficiência econômica, ou até mesmo para que um mínimo social seja garantido aos indivíduos incapazes de se sustentar de outra forma. Para Nozick, porém, todas essas restrições são moralmente ilegítimas.
Portanto, a fundamentação normativa elaborada por Nozick, além de romper com a fundamentação dominante até então, tornou o compromisso com as ideias do libertarianismo mais absoluto e radical.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências
HAYEK, F.A. Law, Legislation and Liberty, vol 1: Rules and Order. Chicago: The University of Chicago Press, 1973.
HAYEK, F.A. Law, Legislation and Liberty, vol 2: The Mirage of Social Justice. Chicago: The University of Chicago Press, 1976.
MACK, E. Libertarianism. Cambridge: Polity Press, 2018.
MISES, L. Socialism: An Economic and Sociological Analysis. Indiana: Liberty Fund, 1981.
NOZICK, R. Anarchy, State and Utopia. Nova York: Basic Books Publishers, 1974.
TOMASI, J; ZWOLINSKI, M. The Individualists: Radicals, Reactionaries, and The Struggle for The Soul of Libertarianism. Princeton: Princeton University Press, 2023.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Doutorando em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail para contato: gabriel.ggarcia87@gmail.com. ↩︎
- A exceção é Rothbard. Porém, apesar de buscar desenvolver uma fundamentação deontológica, seu argumento é repleto de falácias do ponto de vista filosófico. Ver, por exemplo, EABRASU, M. “Rothbard’s and Hoppe’s Justifications of Libertarianism: A Critique”. Politics, Philosophy & Economics, 12, no. 3, 2012; e ZWOLINSKI, M. “Libertarianism, Oversimplified”. The Independent Reeview, 28, no. 4, 2024. ↩︎
- Todas as traduções são de minha responsabilidade. ↩︎
- Compilados em HAYEK, F.A. Individualism and Economic Order. Chicago: The University of Chicago Press, 1948. ↩︎
Referência imagética: Robert Nozick em 1977. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Robert_Nozick#/media/File:Robert_Nozick_1977_Libertarian_Review_cover.jpg