Carla Regina Mota Alonso Diéguez[1]
Sou uma mulher branca cis e heterossexual. Alguns diriam que me descrever parece bobagem, mas minha experiência como pesquisadora e coordenadora da 2ª fase do “1º Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo” mostrou-me que dizer de onde eu falo, é importante para que as pessoas entendam o que eu vivi (e não vivi). Falo viver, pois as nossas trajetórias de vida são transpassadas por marcadores, que as tornam diversas.
No “1º Mapeamento das Pessoas Trans no município de São Paulo”, pudemos ter contato com essa diversidade. Apesar de serem individuais, as trajetórias de vida narradas relacionavam-se a partir de um marcador: assumir uma identidade de gênero diversa daquela que foi atribuída no momento de seu nascimento. Entender-se como sendo de um gênero diferente daquele previamente atribuído, tornava a vida destas pessoas distinta da minha e, em diversos momentos, marcada pelo preconceito e a discriminação assunção de sua identidade de gênero.
A ideia de realizar o mapeamento no Brasil partiu do censo das pessoas trans realizado no Uruguai. Mais especificamente, a proposta foi encampada na capital paulista através do gabinete do vereador Eduardo Suplicy, ex-Secretário Municipal de Direitos Humanos em São Paulo: mesma secretaria que sedia o primeiro programa destinado a inclusão da população trans na educação e no emprego, o Transcidadania. Ao conhecer a proposta de mapear a população trans, Suplicy destinou verba de emenda parlamentar para realização da pesquisa, que foi sediada na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.
O CEDEC foi a instituição escolhida para conduzi-la. Pensava-se em fazer um censo ou uma pesquisa amostral. Mas como estabelecer uma amostra sem conhecer o universo? Não há dados oficiais no Brasil sobre a população trans. As pesquisas conduzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE não incluem a opção cisgênero / transgênero na sua caracterização de sexo e/ou gênero. Sem o conhecimento sobre o universo, optou-se pela realização de um levantamento, com vistas a atingir o máximo possível de pessoas que se auto identificavam como trans.
Apesar de parecer uma caracterização simples ( cisgênero / transgênero), o processo de construção da pesquisa – que contou com a participação ativa de organizações da sociedade civil que representam a população trans – mostrou que a posição dos membros da equipe como pessoas cisgêneras impedia-nos de alcançar a complexidade presente no interior da população trans. Reitero novamente essa condição, pois, como pesquisadora na área das Ciências Sociais, tenho cada vez mais compreendido, que há entendimentos que só quem vive pode trazer.
Inúmeras reuniões foram realizadas para subsidiar a elaboração do questionário de pesquisa, o que incluía chegar a uma definição que conseguisse mensurar a heterogeneidade da população trans. Para fins de pesquisa, foi definida a seguinte autoidentificação: mulher trans, homem trans, travesti e pessoa não binária.
Com o questionário finalizado, a equipe de pesquisadores de campo foi constituída por 20 pessoas trans – homens, mulheres, travestis e pessoas não binárias – e 10 pessoas cis com experiência em pesquisa social, que iniciaram a coleta de dados em janeiro de 2020, mês em que é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans.
A composição de uma equipe com pessoas trans permitiu que os sujeitos de pesquisa se reconhecessem nos pesquisadores, que ganharam a confiança dos entrevistados. É importante ressaltar que a população trans está entre as mais vulneráveis do planeta, sendo o Brasil o país com maior número de assassinatos de pessoas trans e travestis (BENEVIDES, NOGUEIRA, 2021). Por isso, , o contato de pesquisadores cis, ainda que devidamente identificados, poderia prejudicar a relação entre pesquisador e sujeitos de pesquisa dadas as constantes experiências de preconceito vividas pela população trans.
Em março de 2020, a pandemia da COVID-19 atingiu a pesquisa, levando a mudanças na estratégia de coleta de dados. Os questionários, antes aplicados em modo presencial, converteram-se em entrevistas telefônicas realizadas por uma equipe formada totalmente por pesquisadores trans. No total, a 1ª fase da pesquisa aplicou 1.788 questionários, dos quais 48% foram respondidos por mulheres trans, 23% por travestis, 23% por homens trans e 6% por pessoas não binárias.
As vivências das pessoas trans entrevistadas trouxeram dados já conhecidos sobre essa população, em especial ao evidenciar o preconceito e a discriminação já captados por pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, Núcleo TransUnifesp e demais institutos de pesquisa e entidades de defesa dos direitos das pessoas trans.,Os dados, no entanto, possibilitaram evidenciar a complexidade existente no interior desta população, quando mostram que 49% dos homens trans estão em empregos formais, sendo que apenas 13% das travestis encontram-se nesta situação de trabalho. Também frisam a profundidade da violência vivida por ela, seja física, verbal ou psicológica, muitas vezes experienciada desde a infância, momento em que, em muitos casos, ocorre a ruptura entre a pessoa trans e a família.
Ao percebermos o universo diverso, heterogêneo e complexo que os dados nos revelam, entendemos a necessidade de aprofundar o entendimento sobre eles e, ao final de 2020, a 2ª fase foi iniciada. Nesta fase, realizamos entrevistas de tipo qualitativo, que permitiram coletar trajetórias de vida e entender que, para além das vivências marcadas pelo preconceito, violência e exclusão, novas possibilidades se abrem quando há acolhimento.
A presença da estudiosa e ativista LBTQIA+ Magô Tonhon foi fundamental para a execução das entrevistas qualitativas. Magô trouxe para equipe de pesquisa sua vivência como pessoa trans e o conhecimento sobre o tema. Ela foi extremamente generosa com a equipe, especialmente com os nossos deslizes de pessoas cis em constante aprendizado sobre a população. Para mim, mulher branca cis, a presença de Magô Tonhon me permitiu entender que nada sei sobre o outro, cuja trajetória é marcada pela violência, pela discriminação e pela exclusão, e me levou a refletir sobre a minha função como pesquisadora e a minha responsabilidade como cidadã.
A 2ª fase contou com 29 entrevistas, sendo 27 de pessoas trans e 2 de pessoas cis que trabalham com a população trans. As narrativas obtidas evidenciaram trajetórias marcadas pela violência, pela ruptura, pela luta constante por existir. Elas mostram também que o acolhimento familiar é importante, pois permite traçar trajetórias diversas, que, quando não há o apoio da família, tornam quase como certos determinados caminhos, como ter a prostituição como meio de vida.
As narrativas também frisaram o papel das políticas públicas. O Programa Transcidadania, criado pela Prefeitura Municipal de São Paulo em 2015, foi importante para parcela significativa das pessoas entrevistadas concluírem os seus estudos. Algumas delas, após a conclusão do ensino médio, seguiram os estudos em nível superior e hoje estão em empregos formais.
Mas as narrativas também mostram que uma política pública, para ser efetiva, precisa ter efeito duradouro. O fato de a participação no programa ser restrita ao período de 2 anos, sem posterior acompanhamento, também acarretou o retorno de algumas pessoas à condição anterior, de empregos informais e mesmo de prostituição.
Estas conclusões, aqui rapidamente expostas, foram discutidas na publicação do livro Transver o Mundo: existências e (re)existências de travestis e pessoas trans no 1º Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo, disponível para download gratuito no Boletim Lua Nova. O título, inspirado em um poema de Manoel de Barros, foi trazido pela querida Magô Tonhon e apresenta uma mensagem importante: enquanto não nos dispusermos a enxergar o mundo pelo olhar do outro, não será possível nos livrar da opressão que nele existe.
Para finalizar, lembro de algumas pessoas importantes que nos deixaram no decorrer da pesquisa. A COVID-19 levou Amanda Marfree e Valeriah Rodrigues, duas mulheres trans ativistas LGBTQIA+ e que acompanharam a pesquisa desde a concepção do questionário. Em luta para amenizar as consequências da pandemia entre a população trans, tiveram contato com o vírus antes da vacinação e partiram, nos deixando um legado de generosidade e solidariedade.
No início de 2022, já com a pesquisa concluída, o professor Gustavo Venturi, coordenador da 1ª fase da pesquisa, também nos deixou. Sua participação em grupos diversos de promoção aos direitos humanos o conduziu à coordenação da pesquisa, uma de muitas feitas por ele, que tanto nos ensinou sobre pesquisa e seu potencial na promoção da justiça social.
Fazendo do luto um verbo, esperamos que esta pesquisa seja um entre muitos passos na promoção dos direitos das pessoas trans. Que ela ganhe espaço nas rodas de conversa, nas salas de aula, nas mãos dos gestores públicos e privados. Que os dados sejam lidos, analisados e ajudem a elaborar propostas, mas, principalmente, sejam discutidos pela população trans. Ela é a protagonista da história que esta pesquisa narra e da mudança para um mundo em que existir possa ser mais que resistir.
P.S: Os nomes das pessoas que compuseram a equipe de pesquisa estão disponíveis na publicação. O CEDEC agradece a todes que a compuseram e que contribuíram para que a pesquisa tomasse as ruas e trouxesse os resultados apresentados na publicação.
*O relato reflete a experiência da autora na pesquisa, sendo qualquer equívoco de sua total responsabilidade.
Referências
BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim (orgs). Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021. CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA (org.). Transver o Mundo: existências e (re)existências de travestis e pessoas trans no 1º Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2021.
[1] Docente da Sociologia e Política – Escola de Humanidades e Vice-Presidente do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – CEDEC
Referências Imagéticas
Relatório do 1º Mapeamento de Pessoas Trans da Cidade de São Paulo: discussão dos resultados finais de pesquisa. Imagens cedidas pela autora.
Para acessar a versão digital do livro Transver o Mundo: existências e (re)existências de travestis e pessoas trans no 1º Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo. São Paulo, clique aqui.