Isaías Albertin de Moraes1
11 de setembro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia os textos anteriores aqui.
Em 1º de dezembro de 2023, o Brasil assumiu a presidência do G20 com o lema “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. O G20, criado em 1999, é composto pelas dezenove maiores economias do mundo, além da União Europeia. Durante a Cúpula realizada em outubro de 2022 em Nova Déli, na Índia, o grupo foi expandido para incluir os 55 países da União Africana. O G20 responde por cerca de 90% do PIB mundial, 80% do comércio internacional e 2/3 da população mundial. O G20 não é uma organização internacional formal, o que significa que não conta com um secretariado permanente ou recursos próprios. Sua presidência é rotativa e acontece anualmente. Desde 2011, os líderes (chefes de Estado e de Governo) do G20 se reúnem anualmente.
As atividades do G20 são estruturadas em duas principais “trilhas” (tracks): uma voltada para as finanças e outra conhecida como a trilha dos “Sherpas” (em referência aos povos originários das montanhas do Nepal, famosos por guiar alpinistas na escalada do Monte Everest). Dentro dessas trilhas, existem grupos de trabalho temáticos que se reúnem regularmente. Esses grupos são compostos por representantes dos governos dos países-membros, além de países e de organizações internacionais convidados.
A Trilha de Finanças lida com temas macroeconômicos estratégicos, sendo liderada pelos ministros das Finanças e presidentes dos Bancos Centrais dos países-membros. Durante a presidência do Brasil, essa trilha é coordenada por Tatiana Rosito, economista e diplomata que atua como secretária de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda. O Brasil estabeleceu sete grupos técnicos focados em áreas como: i) setor financeiro, ii) arquitetura financeira internacional, iii) economia global, iv) finanças sustentáveis, v) inclusão financeira, vi) infraestrutura e vii) tributação internacional. Além disso, foram criadas três forças-tarefa: i) aliança global contra a fome e a pobreza, ii) finanças e saúde e iii) mobilização global contra a mudança do clima.
A Trilha de Sherpas é comandada por emissários pessoais dos líderes do G20, que supervisionam as negociações, discutem os pontos que formam a agenda da cúpula e coordenam a maior parte do trabalho. O sherpa indicado pelo governo brasileiro é o embaixador Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty. Sob a liderança brasileira, essa trilha é composta por 15 grupos de trabalho, duas forças-tarefa e uma iniciativa. Os grupos de trabalho são: i) agricultura, ii) anticorrupção, iii) comércio e investimentos, iv) cultura, v) desenvolvimento, vi) economia digital, vii) educação, viii) empoderamento de mulheres, ix) pesquisa e inovação, x) sustentabilidade ambiental e climática, xi) emprego, xii) transições energéticas, xiii) redução do risco de desastres, xiv) turismo e xv) saúde. As forças-tarefa são: i) mobilização global contra a mudança do clima e ii) aliança global contra a fome e a pobreza. A iniciativa é única: bioeconomia.
Durante a presidência brasileira, as duas trilhas têm trabalhado em conjunto de maneira inédita desde o início das reuniões do grupo. Há, ainda, uma estreita colaboração com a Índia (Presidência de 2023) e a África do Sul (Presidência de 2025), almejando estimular uma perenidade nos trabalhos. Ao longo do mandato do Brasil, está programado no âmbito das trilhas, com seus grupos de trabalhos, forças-tarefas e iniciativa, um total de cem reuniões oficiais, incluindo vinte de nível ministerial e cinquenta de alto nível, além de eventos paralelos. No centro desses trabalhos estão as discussões e os aprimoramentos de Notas Temáticas (Issue Notes), que são os documentos que orientam os debates, fornecendo informações detalhadas e direcionamentos diante dos desafios globais. A última reunião será a 19ª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo do G20 que acontecerá no Rio de Janeiro em novembro de 2024. É nesta ocasião que os trabalhos serão apresentados, com certo destaque para os chamados Princípios de Alto Nível sobre Bioeconomia.
A bioeconomia ainda é um conceito em construção. De acordo com Ferraz e Pyka, o termo é comumente usado para descrever o processo de conversão de recursos biológicos renováveis em diferentes materiais. Para Johnson et al., os principais trabalhos sobre o tema na academia operacionalizam o conceito a partir de três linhas: i) biotecnologia, focando na inovação e na utilização da tecnologia junto à biodiversidade, ii) biorrecursos, que valoriza a promoção das cadeias de valor baseadas na biomassa e iii) bioecologia, buscando orquestrar desenvolvimento econômico com saúde e sustentabilidade dos ecossistemas.
Segundo Parisi e Ronzon, é possível definir bioeconomia a partir de suas atividades econômicas. Os autores elencam cinco: i) produção primária ou agronegócio, incluindo a criação de plantas e de animais e as aplicações veterinárias, ii) produção de biocombustíveis, iii) biotecnologia industrial, envolvendo o processamento e a produção de produtos químicos, plásticos e enzimas, iv) aplicações ambientais, como biorremediação, biossensores e outros métodos para reduzir impactos ambientais e v) saúde humana, particularmente biotecnologia médica, englobando novos procedimentos, diagnósticos e tratamentos terapêuticos, biocosméticos, além de farmacogenética, alimentos funcionais e equipamentos médicos.
A bioeconomia propõe uma reconfiguração das cadeias de valor, priorizando processos que respeitem os ciclos naturais e reduzam a dependência de recursos fósseis. A bioeconomia abrange todas as etapas de produção baseadas no uso avançado do conhecimento científico e na busca por inovações tecnológicas, utilizando recursos renováveis para promover uma economia circular que traga benefícios sociais e ambientais coletivos. Ela não apenas responde às demandas ambientais, mas também oferece uma nova lógica para o desenvolvimento econômico, promovendo inovações que conciliam eficiência econômica com a preservação da biodiversidade. Neste sentido, a bioeconomia se apresenta como uma oportunidade para repensar as relações entre sociedade, economia e natureza, visando um futuro mais equilibrado e resiliente.
Assim, a bioeconomia pode ser encarada de forma mais ampla do que um novo conceito acadêmico, ela pode ser vista como um novo modelo de produção. Esse é focado em sistemas, produtos e serviços utilizando recursos biológicos renováveis em uma visão mais ecocêntrica e menos antropocêntrica. É a busca da ampliação, da integração e da sofisticação da estrutura produtiva com base na sustentabilidade e na regeneração dos ecossistemas.
Essa transversalidade presente na bioeconomia garante que ela tenha relação direta com as três forças-tarefa do G20 e com ao menos 12 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2015. São eles: fome zero e agricultura sustentável; saúde e bem-estar; água limpa e saneamento; energia limpa e acessível; trabalho decente e crescimento econômico; inovação e infraestrutura; redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis; consumo e produção responsáveis; ação contra a mudança global do clima; vida na água e vida terrestre.
O World Bioeconomy Forum avalia o valor gerado pela bioeconomia em aproximadamente US$ 4 trilhões em nível mundial em 2023. No entanto, esse valor pode crescer significativamente, atingindo cerca de US$ 30 trilhões, o que representaria um terço da economia global, evidenciando um enorme potencial para o Brasil. O país possui vantagens comparativas que podem gerar grandes oportunidades no desenvolvimento da bioeconomia. O Brasil detém a maior diversidade genética vegetal do mundo, com 42.730 espécies de plantas espalhadas por seus diferentes biomas, como a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, o Pampa, a Caatinga e o Pantanal.
O potencial brasileiro para bioeconomia é evidente, porém ainda pouco percebido pela sociedade como um todo, inclusive pela comunidade acadêmica. Segundo estudo de 2021 do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o Brasil não se configura entre os 10 países que mais publicaram artigos científicos sobre bioeconomia entre 2006 a 2020. Os 5 primeiros países são: EUA, Alemanha, Itália, China e Inglaterra. O Brasil ficou em 11º.
Ao lançar a iniciativa de bioeconomia durante sua presidência do G20, o Governo Lula-Alckmin acerta em chamar atenção para esse campo tanto em nível internacional quanto nacional. É o Brasil voltando a ter um planejamento estratégico para o desenvolvimento econômico. Por exemplo, em junho de 2024, houve o lançamento da Estratégia Nacional da Bioeconomia, que visa coordenar e programar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento desse mercado, em articulação com a sociedade civil e o setor privado. A Estratégia Nacional de Bioeconomia está alinhada com a Nova Indústria Brasil (NIB), que busca uma neoindustrialização no país.
Contudo, o desenvolvimento econômico contemporâneo precisa ser sustentável, criativo e inclusivo, especialmente no contexto pós-pandemia de Covid-19 e em meio à crise climática. A sociedade brasileira e os atores internacionais precisam entender que as transformações econômicas exigem uma atitude consciente que vá além das preocupações ambientais, exigindo um compromisso abrangente que integre fatores sociais, culturais e econômicos. Para enfrentar os desafios atuais, é necessário promover um novo pacto de desenvolvimento tanto em nível local, quanto nacional e internacional. Isso implica a adoção de práticas que assegurem a justiça social e a equidade, estimulando economias resilientes e inclusivas que sejam capazes de responder aos desafios globais de maneira eficaz e ética.
É preciso investigar e propor processos produtivos e comerciais que visem, em primeiro lugar, à diversidade cultural, social, política, econômica e a perpetuação das formas de vida do planeta dentro de um patamar de plena existência para as atuais gerações sem comprometer as possibilidades produtivas para as futuras gerações. É necessário desenvolver a economia com viés ético e não somente utilitarista e mecanicista, uma ética que enxerga a totalidade do planeta e todas as suas manifestações vitais. Esses valores estão inseridos em diversos setores da bioeconomia e presentes em algumas propostas governamentais, mas não estão introjetados nos principais operadores e atores do mercado contemporâneo.
Para tanto, o projeto de desenvolvimento sustentável, criativo e inclusivo baseado em setores da bioeconomia não ocorrerá sem a participação ativa do Estado. Aliás, nenhuma das forças-tarefas do G20 será alcançada sem o fortalecimento do Estado como centro de decisão político-econômico. Ele é o único ator com capacidade de centralizar o planejamento e as ações para forjar uma nova cultura capaz de efetivar, adequar e integrar políticas públicas, inovações tecnológicas e práticas sustentáveis de produção e de consumo. O Estado deve liderar a coordenação de esforços entre os diferentes setores da economia, promover o investimento em pesquisa e desenvolvimento, e garantir que o marco regulatório esteja alinhado com os novos objetivos do G20 e os já anunciados do ODS.
Ao apresentar os Princípios de Alto Nível sobre Bioeconomia na 19ª Cúpula do G20, o Brasil precisa deixar claro que o Estado tem o papel crucial de estabelecer uma nova cultura de produção e de consumo sustentáveis, alicerçada em políticas públicas e inovações tecnológicas que respeitem as especificidades regionais e promovam benefícios sociais, econômicos, culturais e ambientais integrados. Sem essa liderança estatal, há um risco significativo de que grandes conglomerados capitalistas venham a explorar a bioeconomia de maneira massificadora, excluindo comunidades tradicionais locais, priorizando o lucro excessivo e reproduzindo a estrutura de mimetismo cultural, solidificando a manutenção ou, até mesmo, a ampliação de um modelo de desenvolvimento econômico dependente e associado, no qual, de acordo com Moraes, as economias periféricas permanecem subordinadas às economias centrais.
A bioeconomia – como setor estratégico para o desenvolvimento econômico – deve ser construída com o apoio e a participação ativa dos movimentos sociais, povos originários, quilombolas, comunidades ribeirinhas, caiçaras e agricultores familiares, ou seja, das comunidades locais e tradicionais. Essas comunidades têm desempenhado um papel fundamental na preservação e ressignificação de suas visões, tradições e práticas produtivas, ao mesmo tempo em que reposicionam suas identidades e atribuem novos valores culturais e econômicos à natureza. A inclusão dessas comunidades na construção de uma bioeconomia robusta e sustentável é essencial para garantir que o desenvolvimento econômico esteja em harmonia com os saberes locais e respeite as diversidades regionais, promovendo um modelo econômico que valorize tanto o meio ambiente quanto a justiça social.
Enfim, a liderança do Brasil na presidência do G20 representa um momento crucial para reafirmar o compromisso com um desenvolvimento econômico que respeite os limites planetários e as necessidades das gerações futuras, promovendo um modelo que seja verdadeiramente sustentável, criativo e inclusivo. A iniciativa brasileira sobre bioeconomia foi excelente neste quesito. Além disso, o ineditismo brasileiro de trabalhar as duas trilhas em conjunto e em manter uma estreita colaboração com a Índia, ex-presidente do G20, e com a África do Sul, futura presidência, facilita a edificação e o encaminhamento para promover uma abordagem integrada e comprometida com os valores da justiça e da equidade, almejando construir um mundo mais justo, sustentável e resiliente, capaz de enfrentar os desafios do presente e de assegurar um futuro próspero para todos.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS) da UFABC. Pesquisador associado do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Economia Solidária, Criativa e Cidadania (NEPESC-Unesp). Pesquisador associado do grupo Novo Desenvolvimentismo e Democracia Social (FGV-EAESP). ↩︎
Referência imagética: Trilha Sherpas: Iniciativa de Bioeconomia. G20 Brasil 2024. Disponível em <https://www.g20.org/pt-br/trilhas/trilha-de-sherpas/bioeconomia>. Acesso em 30 ago 2024.