Ulysses Ferraz[1]
Na concepção de justiça de John Rawls (2003, p. 156), o primeiro princípio de justiça[2] não trata da “liberdade” isoladamente, como um valor absoluto, mas de um esquema coerente de liberdades fundamentais que seja satisfatório para todos e compatível com as diversas concepções razoáveis de bem dos membros de uma sociedade democrática. Além disso, somente as liberdades políticas devem ter o seu valor equitativo garantido na formulação do primeiro princípio de justiça. Em linhas gerais, a prioridade das liberdades significa que uma liberdade básica só pode sofrer restrições ou regulações “em benefício de outra ou outras liberdades básicas, e nunca em favor de um bem público maior, entendido como um saldo líquido maior de vantagens sociais e econômicas para a sociedade com um todo” (Ibidem, p. 156).
Por essa razão, Rawls rejeita o princípio utilitarista de maximização do bem-estar geral como princípio último de justiça. No esquema de liberdades proposto Rawls (2020, p. 352),
entre as liberdades fundamentais da pessoa está a de adquirir e ter o uso exclusivo de propriedade pessoal. O papel dessa liberdade é permitir uma base material suficiente para um sentido de independência pessoal e de autorrespeito, ambos essenciais para o desenvolvimento e o exercício das faculdades morais [possuir senso de justiça e perseguir uma concepção de bem]. Duas concepções mais abrangentes do direito de propriedade, entendido como uma liberdade fundamental, devem ser evitadas. Uma dessas concepções amplia o direito de propriedade para incluir certos direitos de aquisição e herança, assim como o direito de possuir meios de produção e recursos naturais. De acordo com a outra concepção, o direito de propriedade inclui o direito igual de participar do controle dos meios de produção e dos recursos naturais, que devem considerar-se propriedade social. Essas concepções mais amplas não devem ser empregadas porque, acredito, não podem ser consideradas condições necessárias para o desenvolvimento e o exercício das faculdades morais.
Desse modo, os direitos de propriedade privada só fazem parte do exercício das liberdades básicas quando tratam da “propriedade pessoal”, por exemplo, da propriedade de um automóvel, de um bem imóvel para moradia, de bens duráveis como eletrodomésticos etc. Ainda assim, mesmo para esses bens pessoais, é possível que sejam limitados em sua transmissão por meio de tributos sobre propriedades, doações e heranças, sem que isso implique a violação de liberdades fundamentais. Para Rawls (2016, p. XLII), “a justiça como equidade não conta com nenhum direito à propriedade privada dos meios de produção (embora considere o direito à propriedade pessoal necessário à independência e à integridade dos cidadãos) […]”.
O ponto central para Rawls é que o direito de propriedade não é absoluto. Esse não é um direito que teria um valor intrínseco ou sagrado, mas um direito instrumental, cuja liberdade para exercê-lo deve ser garantida na medida em que contribui para assegurar o desenvolvimento e o exercício das faculdades morais de cidadãos livres e iguais. Quanto ao direito à propriedade privada dos meios de produção, Rawls afirma que sua regulação ou restrição não deve ser determinada pelos princípios de justiça, nem por meio de dispositivos constitucionais, mas pela legislação ordinária com base no resultado da deliberação política no âmbito dos parlamentos. Portanto, a garantia ou não de direitos de propriedade dos meios de produção não deve ser decidida por critérios de justiça (pois ambas as situações podem, a princípio, ser justas), mas por critérios relacionados à cultura de fundo da sociedade em questão.
Contudo, para filósofos como Robert Nozick, qualquer interferência ou limitação no direito à propriedade privada (pessoal ou dos meios de produção) é uma violação à liberdade e, portanto, um caso de injustiça. Em um libertarismo à la Nozick, conforme observa Wolff (2011, p. 247, grifos do autor),“dar liberdade às pessoas implica não podermos impor restrições às posses individuais de propriedade”. Limitar a quantidade de propriedade que as pessoas podem adquirir e aquilo que podem fazer com ela é uma forma de restringir a liberdade individual”. Quanto ao papel do Estado nas questões distributivas, no prefácio de Anarquia, estado e utopia [1974], Nozick (2010, p. IX) já coloca as suas cartas na mesa:
Os indivíduos têm direitos, e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo pode fazer contra eles (sem violar seus direitos). Esses direitos são tão fortes e têm tamanho que levantam a questão de saber o que o Estado e seus servidores podem fazer – se é que podem fazer alguma coisa. Que espeço os direitos individuais deixam para o Estado? […] Nossas principais conclusões sobre o Estado são que um Estado mínimo, que se restrinja às estritas funções de proteção coletiva contra a violência, o roubo, a fraude, a coerção de contratos, e assim por diante é justificado; que qualquer Estado mais abrangente violará os direitos de as pessoas não serem obrigadas a fazer determinadas coisas, o que não se justifica; e que o Estado mínimo é ao mesmo tempo inspirador e justo. Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar seu aparelho para obrigar alguns cidadãos a ajudar outros ou para proibir a prática de atividades que as pessoas desejarem realizar para seu próprio bem ou proteção (grifo do autor).
Vejamos, então, em linhas gerais, os passos do argumento libertário de Nozick (2010) contra o princípio da diferença de Rawls e em defesa da proteção absoluta da propriedade privada como condição necessária para a realização do valor da liberdade:
(1) Somente um Estado mínimo é justificado.
(2) Qualquer política tributária que vá além daquelas exigidas para financiar um Estado mínimo implica princípios padronizados de justiça, ou seja, necessita de algum critério de justiça ex ante para servir como um padrão distributivo;
(3) A teoria da titularidade[3] não se baseia em princípios padronizados porque sejam quais forem os resultados ex post das transações no livre mercado, se essas transações são consensuais e voluntárias, eles serão justos;
(4) O princípio da diferença de Rawls exige um Estado cujas funções ultrapassam um Estado mínimo, logo trata-se de um princípio padronizado de justiça;
(5) Princípios padronizados de justiça exigem políticas redistributivas permanentes;
(6) Isso porque qualquer padrão escolhido (por mais igualitário que seja) é subvertido quando permitimos que trocas consensuais se realizem. Desse modo, na ausência de uma redistribuição permanente, as desigualdades existentes antes da aplicação de tal padrão tendem a se restabelecer com o passar do tempo [4];
(7) Políticas redistributivas permanentes exigem tributação sobre renda e riqueza para além das necessidades fiscais de um Estado mínimo;
(8) Além de exigir redistribuição permanente, conforme (6), do ponto de vista da teoria da titularidade, qualquer redistribuição implica violação dos direitos das pessoas porque se dá às custas de tributação de renda e riqueza;
(9) Como qualquer tributação da renda gerada pelo trabalho para fins redistributivos equivale ao trabalho forçado, implica uma restrição indevida à liberdade;
(10) Do mesmo modo, tributos sobre patrimônio e riqueza, quando adquiridos conforme o princípio da aquisição/transferência justa (ver capítulo 2, item 2.2), equivalem a um roubo e, portanto, implicam violações à liberdade individual;
(11) Logo, princípios de justiça padronizados, como o princípio da diferença, violam a liberdade individual.
Em resposta a Nozick, Rawls (2003, p. 72) sustenta que o princípio da diferença não se aplica diretamente aos indivíduos, mas às instituições enquanto sistema público de normas. Exatamente por se tratar de um sistema público, prossegue Rawls (2003, pp. 72-73), as exigências dessas instituições são previsíveis de modo que
elas não impõem mais interferências contínuas ou regulares nos projetos e ações de indivíduos do que, digamos, as formas correntes de tributação. Já que os efeitos dessas normas são previstos, sempre que os cidadãos elaboram seus planos, levam-nas em conta de antemão. Eles entendem que quando participam da cooperação social, sua propriedade, sua riqueza e a repartição do que ajudam a produzir estão sujeitas aos tributos que são sabidamente impostos pelas instituições de fundo. Além disso, o princípio de diferença (bem como o primeiro princípio e a primeira parte do segundo princípio) respeita expectativas legítimas baseadas nas normas publicamente reconhecidas e as titularidades adquiridas pelos indivíduos.
Segundo Vita (2007, p. 36), na concepção de Nozick, “a ideia básica é que os direitos não prescrevem o que devemos fazer coletivamente; eles somente impõem restrições ao leque de escolhas coletivamente permissíveis”. Isso significa que, ao contrário do liberalismo igualitário em Rawls, o libertarismo de Nozick é cego para as consequências de sua teoria. Enquanto a deontologia de Rawls é “não rigorista” (ver BRAGA, 2011), pois leva em conta os resultados de sua teoria, Nozick preocupa-se com o valor da liberdade individual apenas na medida em que a propriedade individual estiver absolutamente protegida, mesmo que essas implicações libertárias levem a uma sociedade com desigualdades extremas, em que uma parte significativa da população não possua propriedade nenhuma e sequer tenha acesso às condições básicas de subsistência.
De acordo com Vita (Ibidem, p. 59), “a tese central da filosofia política libertariana não diz respeito diretamente à liberdade, mas sim à propriedade”. Piketty (2020 p. 121) denomina esse tipo de concepção à la Nozick de ideologia “proprietarista”, que consiste na “quase sacralização dos direitos de propriedade estabelecidos no passado — quaisquer que sejam sua amplitude e origem — e cujas consequências desigualitárias e autoritárias podem ser consideráveis”. O argumento central da ideologia proprietarista, também denominado o argumento da “caixa de Pandora” (segundo o qual a contestação ou limitação dos direitos de propriedade privada levaria ao caos generalizado e, portanto, melhor seria nunca abrir a caixa), é apresentado por Piketty da seguinte maneira:
Se começarmos a questionar os direitos de propriedade adquiridos no passado e sua desigualdade, em nome de uma concepção de justiça social e, acima de qualquer dúvida, respeitável, mas que sempre há de ser imperfeitamente definida e aceita, e nunca poderá alcançar um absoluto consenso, não corremos o risco de não saber onde esse perigoso processo vai parar? Não corremos o risco de ir direto para a instabilidade política e o caos permanente, o que acabaria se voltando contra os mais humildes? A resposta proprietarista intransigente é que não se pode correr esse risco e que a caixa de [Pandora] da redistribuição das propriedades não deve nunca ser aberta. Esse tipo de argumentação, onipresente durante a Revolução Francesa, explica muitas das ambiguidades e hesitações observadas, em especial, nas abordagens “histórica” e “linguística” dos antigos direitos e de sua reprodução em novos direitos de propriedade. Se questionarmos as corveias e laudêmios, não há o risco de ocorrer o mesmo com os aluguéis e os direitos de propriedade como um todo? Vamos encontrar esses mesmos argumentos nas sociedades de proprietários do século XIX e início do XX e veremos que continuam desempenhando um papel fundamental no debate político contemporâneo, em particular com a forte ressurgência de um discurso neoproprietarista desde o final do século XX (PIKETYY, 2020, pp. 123-124).
O argumento da caixa de Pandora comete a falácia segundo a qual rejeitar um extremo implica necessariamente comprometer-se com o seu oposto. Assim, quando uma sociedade decide implantar políticas para regular uma distribuição de recursos excessivamente desigualitária, segundo o argumento da caixa de Pandora, isso levaria inevitavelmente a uma sociedade com igualdade absoluta, o que resultaria em instabilidade política, caos social e, no limite, a piora das condições daqueles que se pretendia melhorar, quais sejam, os mais desfavorecidos. Para Piketty (2020, p. 125), um dos problemas da ideologia proprietarista e, por extensão, da perspectiva libertária de Nozick, é que
os direitos de propriedade obtidos no passado apresentam, com frequência, sérios problemas de legitimidade. É o que acabamos de ver com a Revolução Francesa, que transformou corveias em aluguéis sem se deparar com maiores lutas, e ainda tornaremos a ver essa dificuldade várias vezes, em especial na questão da escravatura e sua abolição nas colônias francesas e britânicas (onde se julgou indispensável indenizar os proprietários, e não os escravos), ou ainda nas privatizações pós-comunistas e nas pilhagens privadas de recursos naturais. De maneira mais geral, o problema é que, afora a questão das origens violentas ou ilegítimas das apropriações iniciais, desigualdades patrimoniais consideráveis, duradouras e amplamente arbitrárias tendem a se reconstituir de modo permanente nas modernas sociedades hipercapitalistas, assim como nas sociedades antigas.
Com efeito, para Rawls, a abordagem histórica de justiça, como a proposta por Nozick, repousa em fatos arbitrários de um ponto de vista moral, além de desconsiderar os efeitos da configuração da estrutura básica da sociedade na distribuição justa dos benefícios da cooperação social. Em Rawls, a propriedade não é uma liberdade básica porque ele a concebe “como uma produção coletiva, fruto da cooperação entre os homens, e não um produto do indivíduo isolado […]” (FERES JÚNIOR; POGREBISNCHI, 2010, p. 60).
Além disso, qualquer tentativa de compensação de injustiças passadas, nos termos do princípio de reparação de Nozick, seria irrealista, pois “nada indica que conseguiria aplicá-la voltando-se completamente no tempo até chegar a um começo justo […] Onde quer que se pare, haverá um grupo que reclamará, com razão, que não se voltou o bastante” (SHAPIRO, 2006, p. 164). Outro aspecto fundamental no debate entre o libertarismo e o liberalismo-igualitário é que a forma institucionalizada da teoria de Nozick, regime que Rawls denomina de capitalismo de laissez-faire, “garante apenas a igualdade formal e rejeita tanto o valor equitativo de liberdades políticas iguais quanto a igualdade equitativa de oportunidades. Tem por meta a eficiência econômica e o crescimento limitados apenas por um mínimo social bastante baixo” (RAWLS, 2003, p. 194). Assim, na teoria de Rawls, além de a propriedade possuir um valor meramente instrumental, falar em liberdade sem levar em conta seu valor equitativo é tratá-la como um direito meramente formal. Ainda que as garantias formais de liberdade tenham um papel preponderante na perspectiva de Rawls, elas são insuficientes para que as pessoas de fato desfrutem das liberdades básicas ao perseguirem suas concepções razoáveis de bem.
Sem a institucionalização de um princípio como o da diferença, que garanta o valor equitativo das liberdades básicas – associado à garantia de um mínimo social substancial capaz de prover uma cesta de bens primários suficientes para uma vida digna -, as liberdades formais, ainda que necessárias, tendem a ser reduzidas a uma ilusão em que apenas os mais favorecidos economicamente podem desfrutá-las. Em suma, para Rawls, o que viola as liberdades fundamentais é não se comprometer a garanti-las pelo seu valor equitativo.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências:
BRAGA, A. F. S. Kant, Rawls e o utilitarismo: justiça e bem na filosofia política contemporânea. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.
FERES JÚNIOR, João. POGREBINSCHI, Thamy. Teoria política contemporânea: uma introdução. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
PIKETTY, Thomas. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016 [1999].
______. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2001].
______. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2020 [2005].
VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
WOLFF, Jonathan. Introdução à filosofia política. Lisboa: Gradiva, 2011.
[1] Mestre em Lógica e Metafísica (PPGLM-UFRJ) e doutorando em Ciência Política (IESP-UERJ). ferraz.ulysses@gmail.com.
[2] Os princípios de justiça são formulados por Rawls da seguinte maneira (RAWLS, 2020, p. 6):
a. cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de direitos e liberdades iguais, sistema esse que deve ser compatível com um sistema similar para todos. E, neste sistema, as liberdades políticas, e somente estas liberdades, devem ter seu valor equitativo garantido.
b. as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas exigências: em primeiro lugar, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; em segundo lugar, devem se estabelecer para o maior benefício possível dos membros menos privilegiados da sociedade [princípio da diferença].
[3] Segundo a teoria da titularidade de Nozick, “se as condições iniciais são justas, e as transferências subsequentes são voluntárias, o resultado tem de ser aceito como justo” (SHAPIRO, 2006, p. 162).
[4] Para Nozick, a subversão de um padrão distributivo, quando decorrentes de trocas consentidas, não implica injustiça. Para a exposição completa do argumento ver NOZICK, 2010, pp. 206-211, em que ele apresenta o famoso “argumento de Wilt Chamberlain”.
Fonte Imagética: Philosophy Talk: John Rawls, by KALW/Devon Strolovitch. Disponível em <https://www.kalw.org/arts-culture/2021-02-19/philosophy-talk-john-rawls>. Acesso em 15 abr 2022.