Lucas Baptista[1]
No quinto aniversário da abolição, já sob os auspícios da República, Machado de Assis publicou suas impressões sobre a celebração que fora realizada naquele dia chuvoso e nublado de 13 de maio 1893 (Assis, 1893). Em nada se parecia com o domingo de grande sol de 13 de maio de 1888, lembrado pelo literato como único dia de delírio público do país, quando ele e até “o mais encolhido dos caramujos” saíram às ruas para respirar a felicidade. O que teria ocorrido neste ínterim? Será que a ausência do sol coincidia com a do povo? O espírito público tornaria a sanidade habitual?”.
A melancolia machadiana, agravada pelas condições climáticas e republicanas de então, talvez nos ajude a repensar o sentido dos 134 trezes de maio completados hoje. Acima de tudo, porque a alegoria do delírio implica em considerar a existência – quase nunca óbvia e, por vezes, arbitrária – do passado, do presente e do futuro – e pode servir de suporte para desvelar a consciência possível do liberalismo da época sobre os efeitos que a escravidão legou entre nós. Liberalismo este que circulou nas vozes “delirantes” dos abolicionistas brasileiros dos anos 1880, como André Rebouças, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Para que o leitor entenda melhor o argumento, é preciso retornar a outro delírio, também esculpido por Machado, e que toma forma nas páginas de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881).
O delírio
Brás Cubas morreu no ano de 1869 em sua bela chácara no Catumbi. Tinha 64 anos de idade, guardava trezentos contos de réis, e ainda deixou apólices para alguns poucos amigos. A data, a idade e o pecúlio do personagem nos oferecem indicações para caracterizar o espaço e o tempo o qual ele pertencia. Cubas era representante da classe dominante no contexto escravista e burguês do Brasil dos fins do século XIX. Sua partida se confunde com os rumos da agitação abolicionista internacional que, inflada pela guerra da secessão nos Estados Unidos da América (1861-65), ecoou na Fala do Trono pela primeira vez em 1867, quando D. Pedro II considerou publicamente a necessidade de tocar o projeto de emancipação do elemento servil. E abriu ensejo para emergência do primeiro ciclo de mobilização anti-escravista do Império (1869-1871), que culminou com a promulgação da lei do Ventre-Livre, em 1871 (Alonso, 2015, p. 23-36).
No capítulo do delírio (Assis, 2011, cap. VII), o narrador parece revelar certa consciência sobre o mundo, o país e estas transformações, e nos convida a experimentar o passado, o presente e o futuro numa viagem desvairada que ele fizera sobre as costas de um hipopótamo pouco antes de morrer. Nesta cena, o paquiderme desfila pela História sem dar ouvidos aos comandos do viajante: de onde se “vai da origem à consumação dos tempos, uma vez de trás pra diante, outra diante para trás” (Schwarz, 2000, p. 23).
O ponto alto do delírio é o encontro de Cubas com Pandora, ou a Natureza, que se apresenta como sua mãe e, ao mesmo tempo, inimiga. Diante da Natureza, e do silêncio sepulcral da região em que ela habita, o conhecimento dá lugar às sensações – de frio, de medo e desejo de viver – na medida em que decresce a humanidade do delirante. Cubas implora pela vida e, cambaleante, questiona o motivo daquela poderosa mãe-mulher querer lhe matar. Pandora o responde friamente:
Porque não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste (Assis, 2011, p. 32).
É a partir da Natureza que a viagem realmente começa e o delírio pode se mover por uma redução dos séculos num “desfile de todas as raças, as paixões, os tumultos dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”. Cada século “trazia sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões”. Até chegar ao século presente, e atrás dele os futuros! Mas aí um nevoeiro cobria tudo e a compreensão se turvava diante da velocidade das coisas… Só se podia ver o hipopótamo (Assis, 2011: p.32-34).
Por fim, é a volubilidade do personagem que o reconduz à normalidade, pois, diante do movimento dos séculos – isto é, da troca dos objetos, das raças, das ideias, dos liberalismos – e da incerteza quanto ao seu futuro póstumo, o capricho se traveste em realidade em busca da afirmação de uma superioridade qualquer (que parecia estar ameaçada) (Schwarz, 2000, p. 25-26). Soçobrava, assim, apenas o hipopótamo – que era, na verdade, seu gato de estimação, o Sultão.
É possível pensar o liberalismo abolicionista dos anos 1880 nesta chave do delírio? Se sim, é preciso levar em consideração três pontos importantes que perpassam o desvario de Cubas até ele recuperar sua sanidade:
- A forma pela qual a cultura universal era, até então, copiada da Europa pelos debatedores locais. Debate este cujas ideias liberais serviam, em larga medida, para ilustrar a autoestima do debatedor e seu benfeitor (leia-se grande proprietário de terras e escravos) e, assim, disfarçar a crueldade hedionda que reinava na esfera da produção (Schwarz, 1981, p. 16).
- A incorporação da categoria “raça” pelo liberalismo em seu contexto de origem nos fins do século XIX (quase em substituição à ideia de Natureza ou Pandora). Por aqui, essa mudança foi anunciada por Sílvio Romero (1851-1914) tal qual um “bando de ideias novas” – como o positivismo, o evolucionismo e a criminologia – e cujo núcleo comum baseava-se no dogma de que a diversidade humana, anatômica e cultural era explicada por uma hierarquia racial.
- Os efeitos provocados pela Lei do Ventre-Livre (1871) na sociedade brasileira que se, por um lado, permitiu maior combate à propriedade escrava, possibilitou também que o status de “senhor” fosse emulado por pequenos proprietários de gente humana, sendo que parte deles eram os próprios ex-escravos.
Vejamos, ao ter em vista estes três fatores, em que medida o delírio liberal-abolicionista escapa (talvez por um instante) da normalidade que marca a circulação desta doutrina por aqui e, quiçá, pelo mundo de então. Principalmente, porque ele desloca a crítica liberal predominantemente político-jurídico-constitucional para enfrentar a questão social da escravidão e, assim, engendra os dilemas éticos, raciais e morais da conjuntura doméstica à efetividade universal de alguns princípios emancipatórios do liberalismo – tal qual a liberdade individual, a meritocracia e o empreendedorismo. Isso porque nossos abolicionistas não criticaram apenas a existência empírica de senhores e escravos no país daquele momento, mas perceberam que esta instituição nefanda se faz tão presente na evolução geral da humanidade quanto em todos os fragmentos da realidade nacional – como o território, a distribuição das terras, a população, as raças, o governo, as leis e os costumes públicos e privados. Por isso, a verdadeira abolição era reivindicada por eles como um conjunto de reformas políticas e sociais que, capitaneadas pelo Estado, atuariam no sentido de reconstruir a nação sob a égide da união das raças em liberdade.
A consciência possível
O diagnóstico de que a escravidão está presente em todos os fragmentos da realidade nacional é o que permite aos liberais-abolicionistas viajar pelo passado, o presente e apontar os caminhos para o futuro do país. Eles valeram-se do repertório moral do movimento abolicionista internacional, como também do novo liberalismo ensejado por John Stuart Mill (1806-1873) – que já apresentava uma visão menos negativa do Estado e mais sensível à questão social[2] -, para mostrar que a instituição servil tinha um aspecto elástico. Na voz de Joaquim Nabuco, a escravidão significava “a soma do poderio, influência, capital, a clientela dos senhores todos”; e se manifestava no “feudalismo estabelecido no interior, no comércio, na religião, na pobreza, na indústria, no Parlamento, na Coroa e no Estado” (Nabuco, 2000, p. 4).
Logo, como afirmava Rui Barbosa, não bastava apenas suprimir o direito hediondo da propriedade humana, também era preciso transformar os costumes do cativeiro – o que, entre outras coisas, exigia a criação de um serviço especial de assistência aos libertos, “oferecendo-lhes a mão amparadora do Estado” que os livrasse da ação múltipla e cruel do meio escravista que os circundava” (Barbosa, 1988, p. 196).
Para compreender a amplitude do meio escravista, é preciso voltar ao traço original de nossa História (passado), pois foi a colonização portuguesa que, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, dividiu o território nacional entre grandes proprietários (capitanias hereditárias) e o explorou por meio da escravização da raça africana. E qual o legado que esses grandes proprietários deixaram ao regime de terras? Responde Nabuco (2000, p. 114-115): a) exploraram o solo sem atenção à localidade: queimaram, plantaram e abandonaram; b) não reconheceram deveres com o povo fora das porteiras das fazendas; c) consumiram os lucros na compra de escravos e no luxo da cidade; d) não edificaram escolas, nem construíram pontes, tampouco melhoraram os rios e canalizaram a água; d) não fundaram asilos; e) não fizeram estradas; f) não construíram casas, sequer para seus escravos; g) não fomentaram nenhuma indústria; h) não deram valor venal à terra; i) não granjearam o solo; j) não empregaram máquinas. E as consequências para a população do interior? Miséria, dependência, ignorância, sujeição ao arbítrio dos potentados locais, falta de terra e casa própria para o pobre.
Para os abolicionistas, o fragmento mais expressivo no qual a escravidão se realizava era justamente a mentalidade do senhor. Num contexto em que a retórica dominante da hierarquia racial colocava os negros numa escala inferior de humanidade[3], Rui Barbosa questionava: mas onde estariam as aptidões morais superiores da raça escravista? E ironizava: “será que essa raça acha que nossos escravos são tão felizes quanto foram os cativos na Jamaica?” (Barbosa, 1945, p. 186). Para o baiano, o grande proprietário de escravos era um produto moral do trabalho servil. Ele era até capaz de “compreender a benevolência, a caridade; a filantropia individual para com os oprimidos”, mas jamais admitiria que o Estado atuasse em prol dos pobres e escravizados. Afinal, denuncia Nabuco (2000, p. 124), foi entre a suposta “classe superior” que a Escravidão estendeu os tentáculos morais mais perversos, fazendo com que o próprio senhor tivesse uma consciência torta de si próprio”, e que contaminava todo aparelho social: como o patriotismo, a opinião pública, as divisões de classes, as leis e os costumes. Sobretudo, porque criou um Estado dentro do Estado: um poder que representava apenas os interesses de uma minoria de proprietários e tinha mais força que toda a nação. Logo, como lembra o pernambucano,
Desse regime social, nasceu fatalmente a política negativa que nos abate, porque ficamos sem povo. A escravidão não consentiu que nos organizássemos e sem povo as instituições não têm raízes, a opinião não tem apoio, a sociedade não tem alicerces. Sim, senhores, os poderes políticos deste país nunca exprimiram, nem podem exprimir a vontade nacional, porque esta não existe. Não podem exprimir a consciência da Nação brasileira, porque essa consciência não está formada […]. (Nabuco, 1988, p. 31, grifos meus).
Por todos esses motivos, o projeto abolicionista fundava-se num conjunto de reformas políticas e sociais mais amplas, a partir das quais tanto os ex-escravos se tornariam cidadãos efetivos quanto os senhores seriam capacitados para a cidadania. Para Nabuco, o processo da verdadeira abolição exigiria que o Estado, entre outras coisas: 1) preparasse a transição do escravo para a liberdade por meio da Educação; 2) estimulasse a criação de indústrias; 3) melhorasse a sorte das pessoas livres e pobres do interior por meio da reforma agrária e do derramamento da instrução pública; e 4) promovesse a imigração europeia. Acima de tudo, era necessário criar uma espécie de escola em que se ensinasse às nossas elites os deveres da propriedade e as relações de riqueza particular, instruindo-a sobre os princípios humanitários de justiça e de solidariedade. Do contrário, o povo brasileiro (ainda em formação) estaria fadado a ser antes escravo do que senhor do vasto território em que ocupa, uma vez que o trabalho seria aviltado pelo temperamento servil da escravidão. Assim, o povo estaria também condenado a ser totalmente afastado da escola e a ser indiferente a todos os instintos e paixões que fazem com que os habitantes de um mesmo país se sintam cidadãos de uma mesma comunidade nacional (Nabuco, 2000, p. 147-149).
A esperança de futuro abolicionista, ao detectar os fragmentos nos quais a escravidão se realizava entre nós, exigia que o poder estatal atuasse para reconstruir o Brasil sob a égide da união das raças em liberdade (leia-se as raças que trabalham e as raças que fazem trabalhar). O projeto visava, antes de tudo, ampliar a dignidade do trabalho, e da própria condição humana, de modo que os princípios emancipatórios da liberdade individual, da meritocracia e do empreendedorismo pudessem fruir independentemente do sexo, da cor ou da classe social.
Nesse sentido, o ápice do delírio público desses liberais é que, ao lançarem suas expectativas quanto ao futuro, eles não tomaram a realidade brasileira como um selo e/ou marca indelével do atraso, da inferioridade ou da não-civilização. Muito pelo contrário! A crítica à escravidão, tal como o hipopótamo, viaja pelo tempo para revelar algumas das raízes históricas da injustiça e do sofrimento social entre nós, mas não deixa de insistir em esperançar (ainda que por alguns instantes) sobre as possibilidades de se criar uma nação democrática e socialmente menos desigual.
Na volta à sanidade, prevalece o legado da miséria moral do nosso povo – em especial, das elites – e que se expressam, por exemplo, no sentimento de profunda indiferença do Estado e da sociedade pelos mais pobres. E pior, faz ainda com que parte da opinião pública resista a quaisquer tipos de políticas sociais, quase sempre rotuladas de assistencialismo populista.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas. Flores, votos e balas. Companhia das Letras: São Paulo, 2015.
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2011; Capítulo VII.
_____. Gazeta de notícias. 14 de maio de 1893.
BARBOSA, Rui. Obras completas. Vol.11 [1884]. Tomo I. Discursos parlamentares: a emancipação dos escravos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1945.
_____. Obras Completas. Vol. 12 [1885]. Tomo I. Abolicionismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1988.
LASKI, Harold. Historia del liberalismo europeo. Del fondo de cultura economica: México, 1936
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 2000.
_____. Campanha Abolicionista no Recife. Recife:FUNDAJ, Editora Massangana. 1988.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. Editora Duas cidades: São Paulo, 2000.
_____. Ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1981.
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fio Cruz, 1996
[1] Doutor em Ciência Política pela Unicamp e Professor adjunto substituto da Universidade Estadual de Londrina (UEL), lucasbapt@gmail.com
[2] Na verdade, estes abolicionistas – em especial Joaquim Nabuco – estavam conectados com o novo liberalismo emergente na Europa dos anos 1880 e que abre ensejo à formação da sociedade fabiana em Londres, em 1884. Liberalismo este que, inspirado nas ideias de Stuart Mill, colocavam-se contra o domínio total do Estado pela burguesia e, por sua vez, exigiam a intervenção estatal em setores estratégicos. Principalmente, no sentido de o poder público oferecer condições mais humanitárias de cidadania (LASKI, Harold. Historia del liberalismo europeo. Del fondo de cultura economica: México, 1936, p.165-168).
[3] Nesta escala, os europeus estão no topo enquanto os negros “bárbaros” e os índios selvagens se revezam na base; ao passo que os demais ocupam as posições intermediárias (SEYFERTH, 1996, p. 43-44).
Fonte Imagética:
Fonte: Cena de delírio, do filme “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (2001), dirigido por André Klotzel. Disponível em: http://carvalholetras.blogspot.com/2010/11/memorias-postumas.html. Acesso em 12 maio 2022.