Renato Ortega[1]
Na gramática política contemporânea, poucas palavras mobilizam o imaginário coletivo com o mesmo alcance do termo “empreendedorismo”. De Donald Trump a Emmanuel Macron, figuras de diversas colorações políticas e regiões do globo buscaram revestir-se com a imagem do empreendedor de sucesso perante o eleitorado, ao apostar na acolhida calorosa que a retórica celebratória do empreendedorismo encontra junto a parcelas da população. A lógica do discurso pinta o empresário bem-sucedido como o sujeito mais apto a conduzir os processos de modernização e moralização do aparelho estatal, em contraposição à incontornabilidade dos males da burocracia, ineficiência e corrupção que assolam a administração pública (Washington Post, 2017). As extremas-direitas ascendentes nos anos 2010 também não escapam ao magnetismo do vocábulo: com alguma semelhança à operação discursiva já familiar aos quadros da direita mainstream desde a virada neoliberal dos anos 1970-1980, as falas de Jair Bolsonaro e Donald Trump não raro equivalem as virtudes do empreendedorismo com as do “verdadeiro povo”, cuja diligência e disciplina valorizam sobretudo o mérito e sacrifício individuais. A oposição é feita em relação àqueles setores, representados como preguiçosos e parasitários, que demandam políticas sociais sensíveis à maior igualização do acesso a bens e serviços (PBS News Hour, 2017; Poder 360, 2021).
Para além da exaltação da figura do empresário feita pela nova direita – demonstrada sobretudo durante o período mais crítico da pandemia de COVID 19, quando se defendia que quaisquer preocupações de saúde pública e proteção social deveriam estar subordinadas aos imperativos econômicos- Rodrigo Nunes (2022) avalia a própria ascensão do bolsonarismo como um movimento empreendedorístico em si. O autor destaca a série de agentes políticos que identificaram o mar de frustrações, rancores e desejos, impossíveis de serem ignorados após a explicitação das tensões sociais colocada por Junho de 2013, como um filão comercial a ser explorado. Desta forma, não só se descobriu uma oportunidade de reposicionamento de carreira prontamente abraçada por políticos de baixo clero, intelectuais ridicularizados e atores de televisão decadentes, como uma repolitização à direita da raiva e descontentamento, fervidos nas expectativas frustradas com relação às instituições democráticas liberais e às expectativas de melhoria na chamada qualidade de vida. O público mais receptivo ao empreendedorismo bolsonarista se encontrou no segmento batizado pelo autor como “baixa alta classe média”, em empréstimo da expressão de George Orwell em O Caminho para WIgan Pier, definida por aqueles grupos médios que dispõem de algum conforto material, mas permanecem vulneráveis a oscilações econômicas – e especialmente ressentida aos relativos ganhos materiais e simbólicos das classes trabalhadoras ocorrido ao longo dos governos petistas (NUNES, 2022).
A partir da proposição de Nunes de que o bolsonarismo apresenta um marcante elemento empreendorístico, o propósito deste texto é discutir sucintamente como organizações não-governamentais transnacionais associadas à agenda da nova direita agem, de forma também orientada pelo prisma do empreendedorismo, na formação profissional de ativistas. Dividido em duas partes, o tema desta primeira seção será o breve delineamento de proposições teóricas chave para a construção da ideia do empreendedorismo, provindas de duas correntes neoliberais distintas – a teoria do capital humano, elaborada por Theodore Schultz e posteriormente por Gary Becker, e as considerações de pensadores da Escola Austríaca, como Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises. No segundo segmento do texto, propõe-se analisar o papel desempenhado por entidades transnacionais da nova direita como incubadoras de jovens lideranças políticas conservadoras, a partir do investimento na sua educação formal, treinamento em hard e soft skills e imersão em uma rede de contatos úteis tanto para sua ascensão profissional como para cumprimento da sua tarefa de promoção dos chamados valores tradicionais.
Theodore Schultz, um dos mais destacados economistas da Escola de Chicago, elaborou a teoria do capital humano a partir das suas reflexões sobre a rápida recuperação econômica da Alemanha e Japão no pós-Segunda Guerra Mundial, atribuída principalmente aos investimentos maciços desses países em educação (AUGUSTO, WILKE, 2019). Depois acrescidas das contribuições de Gary Becker, também representante célebre da Escola de Chicago, a teoria do capital humano consiste em duas operações principais: primeiramente, analisar o trabalho pela variável qualitativa, para em seguida submeter domínios vistos até então como não-econômicos a uma inteligibilidade econômica. Em contraponto à perspectiva da economia clássica, Schultz e Becker entendem o salário não como um preço, mas como uma renda advinda do investimento expresso por um conjunto de conhecimentos, habilidades, condições físicas e psicológicas que possibilitaram ao indivíduo ganhar determinado salário (FOUCAULT, 2008). Dos cuidados da primeira infância à probabilidade de adquirir uma enfermidade genética, do equilíbrio psicológico aos conhecimentos técnicos, todos são elementos traduzidos como investimentos iniciais em capital humano.
Abre-se caminho, assim, para uma reinterpretação de campos antes vistos como não-econômicos por uma análise economizante: para os teóricos do capital humano, por exemplo, a relação mãe-filho abarca não só a educação formal proporcionada pela mãe a sua criança como um investimento inicial, mas toda uma ampla gama de cuidados (tempo de lazer partilhado com o filho, demonstrações de afeto, estímulos culturais, etc), a qual fornece ao indivíduo condições mais vantajosas de investir seu capital humano quando adulto e obter um melhor salário (FOUCAULT, 2008). O processo de aquisição de capital humano, contudo, não se encerra na infância: o indivíduo é conclamado a embarcar em uma jornada de qualificação contínua por toda a vida, a fim de garantir sua posição competitiva no mercado de trabalho. Assim, ao contrário do trabalhador fordista, a quem era demandado aprender um conjunto dado de competências para exercer uma função dentro de um quadro de estabilidade e previsibilidade, ao profissional do neoliberalismo exige-se um empreendedorismo de si (FOUCAULT, 2008), que o habilite a adaptar-se aos ditames de mercado. A necessidade de aprendizagem contínua é frequentemente acompanhada por uma maior tolerância a situações de vulnerabilidade e precariedade – a chamada capacidade de resiliência, vocábulo igualmente onipresente na vulgata corporativa.
A despeito das diferenças, as considerações dos pensadores da Escola Austríaca Friederich Hayek e Ludwig Von Mises sobre o empreendedorismo encontram certos pontos de contato com a teoria do capital humano. As preocupações dos austríacos, por seu turno, podem ser descritas em duas categorias (DARDOT; LAVAL, 2008): primeiramente, antagonizar com um processo destrutivo, interpretado por eles como resultante de ingerências progressivas do dirigismo estatal, as quais perturbam uma dinâmica de mercado autorregulada. Em um segundo momento, a defesa do cultivo do entrepreneurship como a virtude de formação do sujeito por excelência em uma economia de mercado. Deste modo, ao contrário da escola do pensamento ordoliberal alemão, que apregoava uma intervenção estatal mais explícita na construção de uma ordem jurídica e social em consonância a uma economia regida pelo princípio da concorrência, Mises e Hayek defendem a imersão do indivíduo em relações de mercado como o melhor caminho para a construção subjetiva do homem empresarial (DARDOT; LAVAL, 2008).
Para os expoentes da Escola Austríaca, o mercado, menos definido por um conjunto de trocas que tendem a um equilíbrio geral estático, é melhor explicado como um processo dinâmico, em que os indivíduos comunicam seus desejos a partir do sistema de preços, mecanismo que, por sua vez, permite o compartilhamento de informações originalmente fragmentadas e dispersas (DARDOT; LAVAL, 2008). Somente o laissez-faire, assim, proporcionaria o espaço necessário para que cada indivíduo tome suas escolhas em seus próprios termos, bem como as comunique para os seus pares pelos instrumentos disponibilizados pela economia de mercado. Na visão dos pensadores da Escola Austríaca, por acreditarem-se autorizadas por uma vontade geral equivocadamente definida, intervenções estatais são irremediavelmente ignorantes à natureza fragmentada da informação e, portanto, malfadadas por uma questão de princípio. Cada ingerência estatal perturbaria o fluxo espontâneo de informações inscrito na dinâmica do mercado, provocando assim discrepâncias que incitariam novas intervenções e, assim sucessivamente, até desembocar-se em uma ordem totalitária (DARDOT; LAVAL, 2008).
A partir das informações dispersas de que dispõe, o indivíduo é concebido por Mises como um “homem de ação”, cuja aspiração a um determinado fim o convoca a realizar escolhas entre alternativas mutuamente excludentes. Não se trata do indivíduo plácido idealizado pelo liberalismo clássico, que troca os excedentes da produção junto aos seus pares, mas do sujeito arrojado apto a empreender, tendo em vista lograr determinado objetivo. Eis o elemento central na análise da Escola Austríaca: os empreendedores não são uma classe específica dentro da economia, conforme pensado por Joseph Schumpeter. Quando se fala em empreendedorismo, na visão de Mises, se fala mais de uma dimensão humana a qual todos os atores, imersos em uma ordem de mercado, devem aprender a cultivar para alcançar seus fins (DARDOT, LAVAL, 2008).
Ao falar da promoção da mentalidade empreendedora, indispensável retomar como, para Friedrich Hayek, ela está fortemente imbricada ao problema do conhecimento na economia. Posta a dispersão intrínseca do saber, aquele sujeito que dispõe de informações potencialmente aplicáveis no mercado pode empregá-las para conseguir vantagem competitiva frente aos demais. Tal conhecimento prático é tão valioso quanto o conhecimento propriamente técnico, uma vez que ele também possibilita o descortinamento de uma situação antes não conhecida (DARDOT; LAVAL, 2008). O cultivo do empreendedorismo passa, portanto, por identificar oportunidades de descoberta de novas informações, proveitosas para quem as descobre e úteis para o sistema como um todo (NUNES, 2022). O learning by discovery, segundo Hayek, é precisamente o processo de redução da ignorância propiciado pela comunicação dos planos individuais por meio do jogo de mercado: tanto as oscilações dos preços como os comportamentos dos concorrentes são informações relevantes para ajustes dos caminhos estratégicos elegidos por cada sujeito. Como consequência, emular os melhores competidores e manter-se sempre atento às oportunidades de mercado acabam por disseminar o cultivo do empreendedorismo para todos os atores econômicos (DARDOT, LAVAL, 2008).
Embora por caminhos distintos, as implicações tanto da teoria do capital humano como da Escola Austríaca são de democratização, em certo sentido, da condição do empreendedor (NUNES, 2022). Desta forma, compreende-se a via pela qual a exaltação da figura do empreendedor, presente também nos discursos dos líderes da nova direita, dialoga habilmente com realidades sociais sobremaneira distintas. Seja o motorista de aplicativo, seja o criador de uma start-up, ambos são convocados a reconceber sua relação consigo mesmos pela racionalidade empresarial – em suma, são empreendedores de si.
Como consequência, há a responsabilização do indivíduo pelo seu sucesso e fracasso, com a ocultação das estruturas políticas, sociais e econômicas que permitem a continuidade das desigualdades de renda nas economias de mercado. Ao atribuir o êxito apenas ao empenho individual, quando o empreendedor falha em determinada empreitada, a reflexão crítica à ordem existente cede lugar à percepção de que não se trabalhou duro o suficiente para se alcançar o objetivo pré-determinado. Deste modo, os reveses na árdua jornada rumo ao sucesso são tematizados com tanta argúcia pela retórica empreendedoristíca que todo fracasso acaba por reforçá-la, e não questioná-la, em mecanismo denominado por Lauren Berlant, retomado por Nunes (2022), como “otimismo cruel”.
O objetivo desta primeira seção foi tematizar de forma sintética algumas articulações teóricas cruciais para se compreender a noção contemporânea de empreendedorismo. No próximo segmento, começa-se a investigar como o fator empreendedorístico se apresenta concretamente na ação das organizações não-governamentais transnacionais vinculadas à nova direita. Analisa-se, sobretudo, as atividades de formação promovidas por essas entidades, mais em específico os programas de treinamento da entidade estadunidense conservadora Alliance Defending Freedom (ADF) e seu braço internacional, a ADF International.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas:
AUGUSTO, Acácio; WILKE, Helena. Racionalidade Neoliberal e segurança: embates entre democracia securitária e anarquia. In: RAGO, Margareth; PELEGRINI, Mauricio (orgs.) Neoliberalismo, Feminismos e Contracondutas: Perspectivas Foucaultianas. São Paulo, Intermeios, 2019.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
NUNES, Rodrigo. Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu Editoria, 2022.
Artigos Jornalísticos:
Bolsonaro diz que quem recebe Bolsa Família não sabe fazer “quase nada”. Poder 360, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-quem-recebe-bolsa-familia-nao-sabe-fazer-quase-nada/. Acesso em 14 de julho de 2021.
LUCEY, Catherine. Donald Trump Wants Welfare Reform, says ‘People are Taking Advantage of the System”. PBS News Hour, 24 de novembro de 2017. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/politics/donald-trump-wants-welfare-reform-says-people-are-taking-advantage-of-the-system. Acesso em 14 de julho de 2022. PEARLNSTEIN, Steven. On Trump and the Entrepreneur’s Conceit. Washington Post, 14 de janeiro de 2017. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2017/01/14/on-trump-and-the-entrepreneurs-conceit/. Acesso em 14 de julho de 2022
[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Integrante do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec- UNIFESP) e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI- UNESP)
Fonte Imagética: Trump and Melania visiting John Paul II Shrine in Washington, D.C. on June 2 amid ongoing nationwide policing protests. (Video: The Washington Post). Disponível em: https://www.washingtonpost.com/religion/2020/06/02/trump-catholic-shrine-church-bible-protesters/. Acesso em 29 jul 2022.