Lucas Pedretti1
30 de abril de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Boletim Lua Nova sobre os 60 anos do Golpe Cívico-militar de 1964. Confira os demais textos da série aqui.
Em julho de 1970, no auge repressivo da ditadura militar brasileira, o general Antônio Carlos Murici deu uma entrevista para o Jornal do Brasil, com o objetivo de tornar públicos os resultados de um “estudo” que os militares haviam feito entre os militantes de oposição que estavam presos. As palavras de Murici, à época chefe do Estado-Maior do Exército, nos oferecem a rara oportunidade de observar como o regime operava na construção de estigmas e categorias acusatórias contra seus adversários.
Neste texto, quero partir dessas declarações para tentar compreender a lógica de incriminação preventiva – no sentido pensado por Michel Misse (2011) – dos militares em relação aos chamados presos políticos. Lógica essa que tornava legítima, aos olhos do próprio regime e também de significativos setores da sociedade, as gravíssimas violações aos direitos humanos perpetradas contra os opositores.2 Mas interessa-me aqui, sobretudo, ler essas declarações a contrapelo. Isto é, pensar não apenas naquilo que Murici revela com o que diz, mas principalmente com o que ele não diz.
Os caminhos da incriminação
Segundo o general, a “pesquisa” havia sido realizada com “cerca de quinhentas pessoas detidas atualmente no Exército em todo o país e ligadas verdadeiramente ao terror e à subversão ativa”. Para Murici, a conclusão do “estudo” era que “o movimento comunista internacional procura deliberadamente atingir a mocidade, a fim de conquistá-la, se possível, pela impregnação ideológica”. Para explicar a razão de alguns jovens serem “aliciados” para a “subversão”, o general apresentou quatro grandes causas:
1) desajustes sociais; 2) descaso dos pais pelos problemas da mocidade; 3) politização no meio escolar realizada por estudantes profissionais que despertam e exploram o ódio nos jovens, com o fito de impor-lhes um idealismo político, mesmo temporário; 4) o trabalho de alguns maus professores, hábeis em utilizar a cátedra para fazer proselitismo.
Em seguida, Murici seguiu descrevendo o que ocorria uma vez que o jovem fosse “aliciado”:
Quando membro de uma delas [“organizações clandestinas”], o estudante se afasta, via de regra, dos estudos, da vida familiar. Entra a conviver com desconhecidos, não tem endereço próprio, vive como pária, na maior promiscuidade […]. Sem vontade própria, obedece passivamente — e cedo os dirigentes do grupo tratam de confiar-lhe missões arriscadas que o incriminam em face da legislação penal brasileira.
Perguntado sobre o perfil dos “subversivos”, o general mostrou toda a sua surpresa. “A maioria dos que conspiram contra o aperfeiçoamento do regime e as instituições nacionais vêm, paradoxalmente, das classes A e B, as classes melhor dotadas financeiramente e de onde tendem a sair os futuros chefes”, afirmou. “É doloroso para qualquer um de nós, como cidadãos, como pais, como chefes, deixar sem orientação sadia aqueles que no futuro terão a responsabilidade de conduzir os destinos do país”, concluiu Murici.
A partir desses trechos da entrevista do general Murici, queria levantar, de início, dois pontos de reflexão. O primeiro deles é a existência de uma radical quebra de expectativas, um verdadeiro lamento por ver os “futuros chefes” se integrando em “organizações clandestinas”. Diante disso, parecia urgente, para os militares, encontrar uma explicação que justificasse a situação. A explicação apresentada era, acima de tudo, de ordem moral.
O afastamento da “vida familiar” e a adoção de um estilo de vida baseado na “promiscuidade” eram os primeiros passos seguidos pelos jovens cujos “ódios” haviam sido despertados em razão da “imposição” de uma “ideologia política”. Uma vez que sua pureza moral era desfeita, aquele jovem passava a assumir “missões arriscadas” que o incriminavam frente à lei. Os que seguiam por esse caminho se tornavam, então, “verdadeiramente comprometidos com a subversão”.
É importante chamar atenção para a dimensão moral do processo porque está em jogo aqui a constituição de uma diferenciação radical entre o universo da pureza, da ordem e da virtude e o universo do mal absoluto, representado por esses sujeitos “verdadeiramente comprometidos com a subversão”.
O segundo ponto, complementar deste inicial, é que a mera necessidade de encontrar essa explicação é reveladora de como esses “jovens das classes A e B” não ocupavam o imaginário dos militares como sujeitos tipicamente criminosos. É notável a profunda confusão causada no general ao ver que indivíduos portadores de todos os sinais da pureza — brancos, universitários e pertencentes às classes altas — seguiam um caminho distinto do esperado. Afinal, em sua perspectiva, os indivíduos que carregavam os signos da criminalidade eram outros – e é isto que quero dizer ao sugerir uma leitura a contrapelo de suas declarações.
Recorrendo novamente aos trabalhos de Michel Misse (2022), sabemos que no processo nomeado por ele como “acumulação social da violência”, foram sendo construídos historicamente certos tipos sociais percebidos como tipicamente criminosos e violentos, dentre os quais se destacam categorias como malandros, marginais, vagabundos e bandidos. Nos termos de Misse, a construção desses tipos sociais opera como uma forma de “incriminação preventiva”, já que eles significam a constituição da ideia de uma propensão natural ao crime, que é decodificada socialmente por traços que o sujeito apresenta.
Ocorre que, como sabemos, esses tipos sociais são constituídos por uma série de representações baseadas, em larga medida, em características ligadas aos marcadores sociais de classe, raça e território. Por isso, dificilmente os “jovens das classes A e B” presos pelo regime autoritário poderiam ser inscritos em qualquer uma dessas categorias acusatórias. Nesse sentido, novas categorias foram forjadas para tentar dar conta desses novos sujeitos perigosos – especialmente as noções de subversivos e terroristas.
Assim, se tomarmos a entrevista de Murici como uma via para compreender a incriminação preventiva dos militantes da oposição, é necessário perceber como não são as dimensões de raça, classe e território que estão em jogo, mas a sua ação política contra o regime. Em outras palavras, os chamados presos políticos integravam o outro lado da fronteira moral que divide o “bem” do “mal” e da fronteira penal que divide a “normalidade” do “crime” por uma via distinta dos bandidos, marginais e vagabundos.
Caminhos da reabilitação
Neste segundo momento do texto, sugiro que a observação da questão da prisão política a partir do ângulo sugerido acima nos permite compreender de forma mais evidente o que foi a anistia de 1979. Meu argumento central é que perceber que o regime teve de estabelecer de novos tipos sociais criminosos para incriminar preventivamente os chamados terroristas e subversivos nos ajuda a compreender como os militantes encarcerados puderam trilhar uma trajetória específica na tentativa de escapar dessa trama que legitimava a violência estatal contra eles.
Como já dito, não eram os marcadores sociais de raça, classe e território que estavam em jogo, mas a sua ação política, naquele momento vista como ilegítima. Assim, caso os militantes lograssem reverter essa perspectiva, conferindo legitimidade pública aos seus atos, apresentando-os não como crimes, mas como manifestações válidas da luta política, então eles poderiam ser reabilitados moral e penalmente.
Esse foi, portanto, o sentido fundamental das disputas classificatórias entre o regime e as oposições ao longo da década de 1970, e por isso que essas disputas foram centradas na dicotomia crime político vs. crime comum. O que estava em jogo, para os militantes da oposição, era atribuir a percepção de legitimidade para suas ações, incluindo a luta armada.
De fato, um dos eixos centrais da disputa simbólica entre as oposições e a ditadura foi em torno da caracterização da luta armada como uma ação política. Especialmente a partir da segunda metade da década de 70, com o surgimento da bandeira da anistia. Em outras palavras, podemos compreender a luta pela anistia como uma luta voltada para deslocar a fronteira moral entre o “bem” e o “mal” e a fronteira penal entre a “normalidade” e o “crime”.
Como se sabe, ao final dessas disputas, a lei de anistia de 1979 foi aprovada exatamente nos termos formulados pelo regime. Ela garantiu a não-responsabilização dos militares pelos seus crimes ao mesmo tempo em que tentou estabelecer a leitura das ações armadas como ilegítimas, a partir da ideia de “crimes de sangue”. Contudo, quero destacar que ela não foi capaz de interromper as disputas classificatórias em torno da legitimidade da ação dos militantes de oposição.
Tais disputas seguiram com força ao longo dos anos 1980, a partir do surgimento de movimentos sociais como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Grupo Tortura Nunca Mais, bem como de publicações como o Brasil: Nunca Mais. No curso daquela década, as denúncias sobre as graves violações de direitos humanos perpetradas pelo regime se avolumaram, e o fortalecimento de uma leitura crítica sobre os atos dos militares teve como consequência a paulatina reabilitação moral e política dos militantes envolvidos na guerrilha.
Não à toa, esse processo abriu caminho inclusive para as formas de reconhecimento estatal que viriam a ocorrer a partir da década de 1990, na forma da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos de 1995; da Comissão de Anistia de 2002 e da Comissão Nacional da Verdade de 2012. De fato, do ponto de vista do Estado, apenas sob o governo Bolsonaro essa visão seria revertida, com a promoção de medidas oficiais voltadas para reforçar a ideia de que as ações armadas pertenciam ao plano do “mal” absoluto, em termos morais, e do crime, em termos penais.
Ocorre que, se por um lado a anistia de 1979 foi incapaz de estabelecer um limite estanque que estabilizasse a percepção social da luta armada como uma ação ilegítima, por outro todo esse processo constituiu uma fronteira bastante rígida em torno da dicotomia crime político vs. crime comum.
Assim, ao final desse processo os antigos subversivos e terroristas puderam ser reintegrados e essas categorias deixaram de operar como constitutivas de tipos sociais a serem preventivamente incriminados no regime democrático pós-ditadura. No entanto, aqueles outros tipos sociais construídos ao longo da acumulação social da violência continuaram intocados. Os bandidos, marginais e vagabundos de que nos fala Misse adentraram a democracia ainda sob as marcas dos processos de incriminação preventiva que legitima todas as formas de violência estatal contra eles.
Uma passagem da Assembleia Nacional Constituinte é exemplar nesse sentido. Nos debates sobre a tortura, o constituinte Narciso Mendes, do PDS, expressou essa perspectiva:
A imagem do preso político, de triste memória, cruelmente torturado, parece levar a sociedade quando se fala em “tortura ou tratamentos cruéis” a tratar o criminoso perigoso (assaltante, latrocida, estuprador) no mesmo nível de um preso político. O que fazer a polícia ou os agentes de segurança pública diante de um assaltante perigoso, de arma em punho, para desarmá-lo? Será que os argumentos bastam? Será que a medida mais correta não seria desarmá-lo a qualquer custo? Será que num entrevero dessa ordem o policial não tenha que aplicar técnicas avançadas de defesa pessoal? Será que nesta defesa o criminoso não tenha que sofrer tratamento qualificado como cruel? O avanço da criminalidade e perversidade que se tem notícia parece recomendar que para tais crimes o tratamento ou será na base do “dente por dente”, “olho por olho” ou o policial não terá condições de enfrentar o criminoso(Apud Utzig, 2015, p. 33, o grifo é do autor).
A frase do Constituinte é emblemática porque revela tanto o processo de reabilitação moral e política dos militantes, outrora acusados de serem terroristas e subversivos, quanto a manutenção dos antigos estigmas em torno do “criminoso perigoso”. O uso nada fortuito da ideia de que estes e os presos políticos não poderiam ser tratados “no mesmo nível” é reveladora de como essa dicotomia entre o político e o comum não funciona apenas para diferenciar. Ela hierarquiza. E ao compreender que essa hierarquia não é natural, e que ela foi historicamente estabelecida como resultado dos conflitos classificatórios que se deram no curso da redemocratização, podemos abrir caminho para pensar nas implicações contemporâneas da manutenção dessa clivagem.
Implicações que, quero apontar para concluir, são de ordem analítica e política. Analítica porque limitam as lentes a partir das quais miramos para o passado ditatorial, e nos impedem de conhecer a real extensão da violência de Estado naquele período. E política porque dificultam a urgente tarefa de compreender a dimensão profundamente política da violência de Estado do nosso presente democrático, que se expressa na forma de um verdadeiro genocídio contra a juventude negra perpetrado pelas polícias nas favelas e periferias do Brasil.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lamparina, FAPERJ, 2022.
MISSE, Michel. O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: algumas reflexões a partir de uma pesquisa. Sociedade e Estado, 26(1), 2011, pp. 15–27.
PEDRETTI, Lucas. A transição inacabada: violência de Estado e direitos humanos na redemocratização. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
UTZIG, Mateus do Prado. A proibição da tortura na Constituinte de 1987-1988: entre demandas por justiça e reconciliação nacional. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2015.
1 Graduado e mestre em História pela PUC-Rio, doutor em sociologia pelo IESP/UERJ, onde atualmente é pesquisador de pós-doutorado. É professor de História no ensino básico na rede pública. E-mail: lpedrettilima@gmail.com
2 O texto retoma e aprofunda uma discussão feita em minha tese de doutorado, publicada em abril deste ano na forma do livro A transição inacabada: violência de Estado e direitos humanos na redemocratização(Pedretti, 2024).
Fonte: Memórias da Ditadura. Fotografia “Todos negros”, de Luiz Morier (1982). Disponível em: <https://memoriasdaditadura.org.br/militarizacao-do-cotidiano/>. Acesso em: 12 abril 2024.