Maria Clara Oliveira[1]
Renata Mirandola Bichir[2]
A segunda metade dos anos 1990 viu nascer os primeiros programas de transferência condicionada de renda. Com efeito, as experiências locais iniciais foram implementadas no Brasil em 1995, tendo o primeiro programa nacional nascido no México dois anos mais tarde. Passado um quarto de século, é possível observar sua presença em praticamente todos os países latino-americanos (sendo Cuba e Venezuela as exceções), além de haver também um número considerável de programas em vigor em países tão longínquos – em várias dimensões – quanto Indonésia, Filipinas ou Gana. Podemos afirmar que estamos perante um processo de difusão do modelo (Osorio-Gonnet, 2018; Peck e Theodore, 2015). Participaram ativamente do seu refinamento e da sua promoção, nos planos internacional e doméstico, inúmeros atores, tais como organizações internacionais (Banco Mundial, Organização de Estados Americanos, entre outras), agências de cooperação para o desenvolvimento (a título de exemplo, Department for International Development – DFID do Reino Unido), consultores e acadêmicos.
Apesar das inúmeras diferenças, os vários programas guardam algumas semelhanças que permitem aproximações analíticas. Em seguida, passamos em revista quatro características compartilhadas. Primeiro, estas iniciativas dirigem-se a famílias em situação de pobreza ou de vulnerabilidade e visam contribuir para melhorar as condições de vida dos beneficiários. Segundo, transferem dinheiro diretamente para as famílias, ainda que frequentemente os montantes sejam insuficientes para que os beneficiários possam suprir as suas necessidades. No entanto, cabe ressaltar que, por mais baixa que seja, esta prestação auxilia na redução da pobreza no plano imediato. Além disso, têm como terceiro ponto comum o fato de procurarem também diminuir a possibilidade de transmissão da pobreza às gerações futuras. É este objetivo que explica o condicionar da transferência de renda ao cumprimento de algumas atividades pré-definidas nas áreas da educação e da saúde, que se acredita serem centrais no desenvolvimento de capital humano. De um modo geral, é esperado que as famílias matriculem as crianças na escola e que estas assistam a uma determinada porcentagem de aulas. As crianças devem ainda ser acompanhadas com regularidade pelos serviços de saúde e respeitar o calendário de vacinação. As mulheres grávidas e/ou com crianças pequenas também devem fazer acompanhamento médico. Por último, estes programas partilham, ainda, uma preferência por realizar a transferência do dinheiro em nome das mulheres, uma vez que partem do pressuposto que estas são capazes de fazer melhores escolhas no que respeita à alocação dos recursos familiares.
O que explica o surgimento de políticas similares em contextos tão distintos? Como é que uma mesma ideia pode entrar na agenda política e dar origem a uma nova medida em tantos países? O artigo “Transferência monetária no Brasil e no Chile: comparando ideias e o papel de instrument constituencies”, de nossa autoria, publicado em 2021 no número 113 da Revista Lua Nova, procura responder às questões que acabamos de levantar.
A literatura sobre políticas públicas tem procurado entender como se dão os processos de introdução de um tema na agenda e como são formuladas políticas. Para entender como isso ocorre no caso de políticas públicas globais, ou seja, quando a dimensão internacional é relevante para explicar o curso da política ou quando organismos internacionais intervêm na definição da mesma, é necessário combinar elementos provenientes de duas abordagens distintas (Oliveira, 2018). Por um lado, é preciso entender como as ideias e os modelos de políticas públicas viajam, o que nos é possibilitado pelos estudos da difusão. Por outro, é importante mobilizar quadros analíticos que nos permitam compreender os processos de agendamento e de desenho de políticas públicas, provenientes da literatura de análise de políticas públicas. Destacamos as perspectivas que enfatizam o papel das ideias, comumente conhecidas como abordagens cognitivas. Conforme argumentamos no artigo, a articulação entre estas duas literaturas pode ser feita recorrendo ao conceito de comunidade epistêmica.
As comunidades epistêmicas, conceito cunhado por Haas (1992), são grupos de especialistas num determinado tema que se organizam no sentido de iluminar um determinado problema e de o colocar num lugar de destaque na agenda política. Deste conceito deriva um segundo, o de instrument constituency, que designa um grupo de indivíduos que se especializa numa solução, que procura aprimorar e promover como opção (Simons e Voß, 2018). Estes grupos atuam em múltiplas esferas, permitindo o trânsito de ideias do plano internacional para o nacional e vice-versa. Assim, os múltiplos atores que mencionamos mais acima, e que ajudam a aperfeiçoar a proposta de transferência monetária e a disseminá-la, compõem uma instrument constituency.
A contribuição original deste artigo passa por mobilizar estes dois conceitos para responder às perguntas mencionadas mais acima. Parte-se do entendimento que comunidades epistêmicas e instrument constituencies são conceitos relevantes para entender processos de circulação de ideias e de modelos no plano internacional. O artigo argumenta que são igualmente úteis em análises que se debrucem sobre a entrada na agenda e a formulação de políticas públicas a nível doméstico. Assim, o texto debruça-se sobre os casos brasileiro e chileno para entender como ideias que circulam no plano internacional são apropriadas pelo nível local, mesclam-se com soluções internas e influenciam o desenho de novas políticas públicas. Em outras palavras, o artigo procura ir além nos debates sobre “as viagens” efetuadas pelo modelo de transferência monetária e explorar o modo como este “aterrissa” em contextos nacionais específicos, originando uma nova política pública.
Partindo do estudo de dois programas de transferência monetária adotados no Brasil e no Chile, o artigo analisa as principais ideias que justificam a criação dos programas e o modo como elas informam os seus desenhos. Trata-se, assim, de um exercício que possibilita testar a utilidade destes conceitos e, ao mesmo tempo, permite conhecer em maior profundidade os processos de formulação das duas políticas selecionadas. A escolha destes dois países se justifica pelo fato de terem adotado programas de transferência monetária modelo, cujas características foram replicadas noutros contextos.
No Brasil, após a multiplicação das experiências implementadas a nível subnacional desde os anos 1990, o governo federal colocou em prática algumas iniciativas de transferência de renda a partir dos anos 2000. A mais emblemática foi o Programa Bolsa Família, iniciado em 2003, durante o primeiro mandato de Lula da Silva, e extinto em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro. O programa visava responder a diversos desafios, tais como a necessidade de combater a fome e de garantir segurança alimentar e nutricional, reduzir a pobreza, possibilitar o estabelecimento de conexões entre as famílias vulneráveis e os serviços públicos e promover o desenvolvimento das famílias beneficiárias e do seu entorno. Para tanto, atuava em duas frentes distintas. Por um lado, atribuía uma prestação social em dinheiro a famílias em situação de pobreza extrema. Por outro, famílias abaixo da linha da pobreza com crianças e/ou adolescentes recebiam também uma transferência de renda mediante o cumprimento de condicionalidades ligadas à educação e à saúde.
Criado em 2002, durante o mandato de Ricardo Lagos, o Chile Solidario tinha por objetivo apoiar famílias em situação de extrema pobreza e conectá-las com o Estado, fomentando o usufruto da rede de apoio. A participação neste programa dividia-se em dois momentos: os primeiros dois anos correspondiam à fase intensiva, a que se seguiam três anos de acompanhamento. Na primeira etapa, as famílias se beneficiavam de acompanhamento psicossocial e, em parceria com um(a) assistente social, desenhavam uma estratégia de saída da pobreza, que contemplava sete áreas distintas (habitação, saúde, renda, educação, registro, emprego e dinâmicas intrafamiliares). As famílias tinham acesso preferencial a subsídios e programas do Estado e recebiam uma transferência monetária. Na fase de acompanhamento, as famílias recebiam uma prestação sem que lhes fosse solicitado o cumprimento de condicionalidade. Em 2013, no primeiro mandato de Sebastián Piñera, este programa foi substituído pelo Ingreso Ético Familiar, que mantém parte das características do antecessor e adiciona novos elementos, tais como uma componente ligada à inserção no mercado laboral formal e a premiação de crianças com bom desempenho escolar (Oliveira e Osorio, 2022).
Nosso estudo revela a importância de comunidades epistêmicas e de instrument constituencies, que atuam de forma diferenciada consoante o contexto doméstico, e que são essenciais na adoção a nível nacional de políticas públicas globais. O artigo demonstra a existência de uma instrument constituency reunida em torno da proposta de transferência condicionada de renda, que promove este modelo de política pública a nível internacional e também tem presença forte nos dois casos examinados. É a ação deste grupo que explica a reprodução das características similares que elencamos mais acima em contextos distintos. Contudo, em cada um dos casos, a existência de outros grupos com ideias distintas, de disputas por visibilidade e por espaço para as colocar em prática, a somar-se à necessidade de integração com políticas prévias e a constrangimentos políticos e econômicos, entre outros, levam a que cada desenho tenha as suas particularidades. É assim que se explica a introdução de uma componente de apoio psicossocial no programa chileno, por exemplo.
O artigo discute ainda as relações que se podem estabelecer entre comunidades epistêmicas e instrument constituencies. Em termos analíticos, trata-se de duas categorias distintas. No entanto, em termos empíricos, podemos ter casos em que é possível identificar com clareza cada um dos grupos ou casos em que existe uma sobreposição. O caso do Brasil ilustra a imbricação entre os dois grupos, uma vez que aqueles que defendem o combate à pobreza e a necessidade de investir mais intensamente na construção de capital humano também tendem a promover a utilização de transferências monetárias. São ainda debatidos os conflitos dentro destes grupos a respeito de ideias consideradas secundárias, como aconteceu no momento de desenho do Bolsa Família, com a apresentação de várias propostas.
Para compreender o processo de adoção de políticas públicas globais por governos nacionais, para uma reflexão sobre o lugar dos especialistas na inclusão de um tema na agenda e na transformação de ideias em solução ou para aprofundar o debate sobre políticas sociais no Brasil e no Chile, fica o convite à leitura do artigo.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
HAAS, Peter M. 1992. Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, v. 46, n. 1, pp. 1-35. DOI: 10.1017/S0020818300001442
OLIVEIRA, Maria Clara. 2018. Ideias e Políticas Públicas. Considerações a partir da análise de programas de transferência monetária na África do Sul, no Brasil e no Chile. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP
OLIVEIRA, M.C. & BICHIR, R.M. 2021. O papel da instrument constituency na formulação do Programa Bolsa Família e do Chile Solidario. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, vol. 113, pp. 211-246.
OLIVEIRA, M.C. & OSORIO-GONNET, C. 2022. Mudanças e continuidades entre o Chile Solidario ao Ingreso Ético Familiar. RAP – Revista de Administração Pública, FGV EBAPE, v. 56, nº1, jan-fev, pp. 80-99.
OSORIO-GONNET, Cecilia. 2018. ¿Aprendiendo o emulando? Cómo se difunden las políticas sociales en América Latina. Santiago: LOM Ediciones.
PECK, Jamie, THEODORE, Nik. 2015. Fast Policy: Experimental statecraft and the thresholds of neoliberalism. Minneapolis: University of Minnesota Press.
SIMONS, Arno; Voß, Jan-Peter. 2018. “The concept of instrument constituencies: accounting for dynamics and practices of knowing governance”. Policy and Society, v. 37, n. 1, pp. 14-35. DOI: 10.1080/14494035.2017.1375248.
[1] Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Coimbra, Portugal. E-mail: c.oliveira@fe.uc.pt
[2] Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) e Centro de Estudos da Metrópole (CEM). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: renatabichir@gmail.com.
Fonte Imagética: Gobierno de Chile. Ingreso Ético Familiar. Disponível em: <http://www.ingresoetico.gob.cl>. Acesso em: 1 maio 2022.