Marcelo Martins da Silva[1]
O debate sobre a incorporação da questão racial brasileira nas instituições políticas é fundamental para a avaliação do quanto elas têm absorvido e respondido às demandas por igualdade social a partir dessa questão específica. Por questão racial brasileira entendemos uma histórica opressão e superexploração que tem raiz na escravidão e na violência colonial, que se estende por toda a história republicana do país, impondo à população negra índices mais baixos de desenvolvimento socioeconômico.
A politização da questão racial emerge da sociedade civil e carece de mediação para integrar o Estado. Nessa perspectiva, os partidos políticos são, normativamente, instâncias centrais para, no contexto republicano, discutir demandas populares e aproximá-las das esferas do poder do Estado. Dito de outra forma, o partido político, em tese, faria a mediação entre sociedade civil e Estado político.
No que diz respeito à igualdade social, os espectros políticos, esquerda e direita – guardadas as dificuldades de delimitação por conta das imprecisões de classificações variáveis como centro-esquerda, centro-direita, etc. –, são importantes para a definição do grau de compromisso dos partidos políticos com essa questão. E, em relação à esquerda política, o valor pelo qual deveria se orientar perante as características daqueles por ela representados é a igualdade. A esquerda política teria, segundo Bobbio (2003), um compromisso orgânico com igualdade e a direita com a liberdade.
É nesse contexto que a incorporação da questão racial no PCB, partido político mais antigo do Brasil e do espectro da esquerda política, se apresenta como importante[2]. Isso porque esse foi talvez o único representante da classe operária em um período de profundas transformações na sociedade brasileira (as primeiras décadas do século XX). Esse período definiu o paradigma das relações raciais no país por muito tempo, com influência discursiva até os dias atuais: a de um racismo que paradoxalmente se expressa na condenação pública em contraste com sua reprodução privada, ou institucionalmente velada, com efeitos deletérios para a população negra que se expressam principalmente em índices mais baixos de desenvolvimento socioeconômico, além de alijá-la da representação em espaços de poder e de submetê-la a uma intensa violência física e simbólica.
Nas décadas que sucederam à sua formação, a questão racial foi lateralizada na abordagem do PCB sobre a luta de classes. Ainda que tenha sido pioneiro em amalgamar as categorias de classe e raça no país, o partido não conseguiu formular um programa que respondesse aos problemas que envolviam populações racializadas como a população negra ou indígena.
A questão racial foi objeto de discussão e conflito desde o início da colonização do país. Indígenas e africanos, espoliados, escravizados e explorados com extrema violência, resistiram ao arbítrio colonial dentro das suas possibilidades. Tipifico esse encontro violento atrelado às relações de poder, de dominação e resistência entre essas populações e os colonizadores brancos como a politização da questão racial no Brasil.
Essa politização foi parte fundamental da história do país, mas que em vários momentos foi silenciada – em nome de uma noção de “brasilidade” cuja serventia estava mais atrelada às classes dominantes, majoritariamente brancas, do que à população negra ou indígena. Ainda que timidamente, e de certa forma reproduzindo essa noção de “brasilidade” expressa no que Tavolaro (2014) chamou de tese da singularidade brasileira, o PCB politizou a questão racial e foi fundamental para introduzir o debate desta questão nos partidos políticos brasileiros. No entanto, essa politização se deu no nível do debate interno de militantes e intelectuais, e pouco constou das determinações institucionais do partido, que não produziu uma análise mais aprofundada sobre a questão racial em seus documentos (resoluções, estatuto, órgão de imprensa, etc.).
É importante lembrar que ainda que a politização da questão racial estivesse na pauta das organizações dos negros desde a colônia ou a abolição, é no PCB que será debatida a partir de categorias e uma gramática própria da esquerda política – transcendendo assim o fenômeno racial –, como luta de classes, revolução, comunismo, socialismo, ditadura do proletariado, etc.
Embora na década de 1930 o partido tenha atuado politicamente junto às massas no sentido de denunciar as mazelas da população negra no país, a resistência do operariado organizado no PCB em considerar a questão racial como central na lógica de uma luta de classes num país de cariz historicamente miscigenado e negro, como o Brasil, não impediu a presença de negros em suas fileiras, desde que a bandeira principal defendida por estes fosse a oficial do partido, que tendia a enxergar a classe como estruturante e a raça como superestrutura ideológica ou um epifenômeno da classe.
Também é importante notar que nesse período o país estava em busca de uma identidade nacional e as discussões sobre a miscigenação e seu “abrasileiramento” ganhavam força no meio político. A comunidade nacional em formação tinha na mobilização negra e suas demandas um importante fundamento, no entanto, essa mobilização tendia a uma perspectiva conservadora e a uma certa nostalgia monárquica, além de baseada numa “solidariedade racial” cujo objetivo era equilibrar as tensões que insurgiram numa sociedade extremamente desigual e que pretendia incluir a população negra nesses projetos de modernização.
Portanto, a “fraternidade racial”, ou seja, a ideia de harmonia relacionada à percepção de que existiria no Brasil uma intimidade nas relações entre negros e brancos já fazia parte do imaginário da nação muito antes de Casa-grande & Senzala de Gilberto Freyre e da noção de democracia racial. Tanto a obra quanto o conceito buscaram explicar uma realidade já existente, mas, ainda assim, é inegável sua importância nas interpretações intelectuais posteriores e no projeto de país que se pretendia.
A “virada culturalista” ocorrida na década de 1930 – quando o discurso antirracista ganhou força – era parte de uma totalidade que, somada a uma virada econômica e política, apontava para estratégias de modernização sintetizadas sob a forma do nacional-desenvolvimentismo. No nacionalismo político crescente, a inclusão racial tornar-se-ia um importante fator gregário sem o qual a consolidação de um “povo” seria impossível.
Foi nesse contexto que as teses do racismo científico perderam força no discurso público – mantendo-se tácito nas relações privadas e institucionais – e a consciência negra formada nas lutas políticas desde a colônia impulsionou uma mobilização antirracista, naquele momento quase que exclusiva da população negra. Esse antirracismo ainda não havia sido definido do ponto de vista do seu espectro político, isto é, não poderia ser definido como um “antirracismo de direita ou de esquerda”. Seria, pois, objeto de disputa entre correntes políticas antagônicas: comunistas e integralistas, estes últimos identificados com os movimentos fascistas que se fortaleciam na Europa.
O PCB e a tese da singularidade brasileira
O argumento deste texto é de que a sociologia da modernização implícita na tese da singularidade (ou excepcionalidade) da sociabilidade nacional influenciou a abordagem sobre a questão racial do PCB nas suas primeiras décadas de existência. Mas no que consistia a tese da singularidade brasileira? Qual sua relação com a questão racial? E qual sua influência nas proposições e posições políticas do PCB em relação à questão racial?
Tavolaro (2014) indica o que chama de “núcleo duro” das abordagens de tal tese: uma economia titubeante acompanhada por uma burocracia político-administrativa imatura e um corpo social débil e incapacitado de se autonomizar em relação ao Estado; uma ordem tradicional que se perpetua orientada por padrões de conduta não de todo racionalizados e a presença de concepções místicas que estimulam a presença religiosa tanto na esfera privada quanto na pública, inclusive “influenciando processos públicos de tomada de decisão” (TAVOLARO, 2014, p.643).
Por essa perspectiva, as esferas pública e privada se entrelaçam, criando uma indiferenciada esfera doméstica nos domínios públicos onde comportamentos igualitários e impessoais perdem sentido. O tipo psíquico brasileiro, por um lado, pouco centrado e capturado por vontades e desejos primários, não seria capaz de lidar com os padrões modernos de desenvolvimento baseados na disciplina e racionalidade; por outro, acarretaria uma plasticidade que o capacitaria para adequar-se às diversas situações, inclusive sobrepondo esta (a plasticidade) àquelas (disciplina e racionalidade).
Esse conjunto de argumentos que compõe essa tese foi desenvolvido ao longo dos tempos por diferentes intérpretes em contextos específicos e mais ou menos articulados. No entanto, são recorrentes e dialogam com as perspectivas “modelares da modernidade”. Jessé Souza (2000) é outro autor que observa haver uma perspectiva própria de modernização com temas invariantes e centrais como herança ibérica, personalismo e patrimonialismo que exercem uma enorme influência no pensamento social brasileiro e “sobre nossa vida prática e institucional”.
Os argumentos que viriam a compor e influenciar o pensamento e a práxis social brasileira num ambiente de incertezas de uma nação ainda não totalmente “acabada” careciam de um certo grau de imaginação para sua formulação, como afirmou Lilia Schwarcz na apresentação de Comunidades imaginadas de Benedict Anderson (2008, p. 9-10): “Imaginar é difícil (porém necessário) (…) nações são ‘imaginadas’, no sentido de que fazem sentido para a ‘alma’ e constituem objetos de desejos e projeções”. O imaginado e o concreto se emaranham nos processos normativos e empíricos na averiguação da singularidade nacional e abrangem sujeitos sociais os mais variados para sua efetivação. O PCB, nesse sentido, não ficaria incólume a esse processo.
O PCB, conforme argumentou Oliveira (2017, p. 13), “oscilou entre posições reformistas e revolucionárias” em sua teoria de uma revolução brasileira e não conseguiu “levar adiante uma política autônoma tanto nas fileiras internas como no seio da classe trabalhadora, ficando indiretamente a reboque do trabalhismo desenvolvimentista”. A posição do PCB se aproximava daqueles que enxergavam na sociedade brasileira um arcaísmo constituinte; uma sociedade pré-moderna que não completara seu processo de modernização. Sendo assim, o primeiro objetivo seria modernizar a sociedade brasileira, rompendo com o ocidente arcaico-colonial-escravista e propugnando um ocidente novo, industrialista, alavancado pela burguesia e posteriormente radicalizado pelo proletariado. Se a singularidade brasileira de natureza pré-moderna empurrava a sociedade para o passado, seria preciso superar aquela para desenvolver esta. Seria necessário, como tarefa do partido, orientar o proletariado a apoiar a burguesia progressista na construção de um capitalismo autenticamente nacional e desenvolvido.
A tese da singularidade da formação nacional a partir do referencial de uma profunda e peculiar miscigenação brasileira influenciou o pensamento e discursos de alguns membros importantes do partido, ainda que a questão racial não tivesse sido problematizada efetivamente até 1934. Octávio Brandão, Astrojildo Pereira e Minervino de Oliveira, por exemplo, produziram e abraçaram sem ressalvas o programa do Partido, entendendo que a transformação radical do sistema em etapas, passando de uma democracia pequeno-burguesa à democracia proletária, deveria ser o foco da ação política do PCB.
Essa perspectiva opunha o moderno ao atrasado e tratava a questão racial como um fenômeno político e cultural circunscrito ao campo da opressão e sem relação direta com a exploração econômica.
Ao não destacar o aspecto racista das relações entre as classes, o PCB implicitamente aceitou a assimetria racial que funcionava como uma das cláusulas tácitas do “contrato racial” em que o culturalismo de cariz freyreano exercia um papel estratégico no que diz respeito ao ambiente ideológico e cultural propício para tal contrato. Portanto, a tese da singularidade brasileira, mítica, é de que o Brasil havia encontrado uma via alternativa ao processo de modernização que passaria pela preservação de áreas intocadas pelo mundo do interesse material e político. Essa zona não interessada da vida social formaria uma espécie de refúgio ao “desencantamento do mundo” numa espécie de especificidade conciliatória.
Existem constrangimentos estruturais próprios da sociedade e da sociabilidade brasileira que ajudam a explicar o porquê de o PCB assimilar nas suas primeiras décadas de existência a ideia de uma singularidade brasileira sem problematizar suas ambiguidades: o fato de o Brasil ser uma nação marcada economicamente por uma dependência estrutural e socialmente por um racismo estrutural; além de uma branquitude constitutiva das instituições (políticas, jurídicas, educacionais, etc.) significando, pois, que os lugares sociais ocupados por brancos estão relacionados com uma história de expropriação de outros grupos e apropriação dos mecanismos de poder, ou seja, a raça é vista não apenas como diferença, mas como hierarquia. O PCB, imerso nessa “atmosfera geral”, reproduziu até certo ponto esses constrangimentos, lateralizando institucionalmente a questão racial brasileira.
Quando avaliados os documentos do PCB nas suas décadas iniciais, disponíveis em materiais diversos – resoluções de congressos, estatutos, manifestos, periódicos, jornais e em alguns textos como, por exemplo, “A formação do PCB” de Astrojildo Pereira; “Agrarismo e industrialismo” de Octávio Brandão; “Contribuição à história do PCB” de Nelson Werneck Sodré; “O PCB” em três volumes, antologia reunida por Edgar Carone, entre outros –, conclui-se que a questão racial no Brasil foi lateralizada institucionalmente no partido. É possível identificar o debate sobre essa questão no interior do partido, na atuação e crítica de alguns de seus militantes, mas longe de expressar uma posição institucional. Não foi um tema trabalhado nos congressos e nem presente nos estatutos, a não ser por breves e abstratas considerações no que diz respeito à condição socioeconômica dos negros no Brasil e aos “privilégios de raça, cor e nacionalidade”, mas sem explicitar a classe privilegiada nem tampouco tocar na questão do racismo.
De modo geral, nos veículos de impressa oficial do partido, nas atas dos congressos, nos estatutos, nos manifestos, etc., muito pouco se falou sobre o negro ou a questão racial no Brasil. Não encontramos nenhuma reflexão mais aprofundada sobre as condições da população negra, discriminação e preconceito racial ou racismo, que fizessem parte do debate institucional expresso nos documentos do PCB.
Portanto, para o PCB, institucionalmente, nesse período, a população negra nunca representou uma força motriz para uma revolução brasileira, mesmo o partido reconhecendo em seus documentos o aspecto combativo dessa população. Será na formulação de um intelectual pecebista, como Clóvis Moura, que a interpelação ao partido de um posicionamento e reconhecimento da centralidade da questão racial no Brasil, para se pensar a revolução brasileira, ocorreria de forma mais contundente, porém como uma voz quase que solitária.
* Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: as razões e significados de uma distinção política. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
OLIVEIRA, Éder R. Entre a reforma e a revolução: O PCB e a Revolução Brasileira. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília, 2017.
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
TAVOLARO, Sérgio B. F. A Tese da Singularidade Brasileira Revisitada: Desafios Teóricos Contemporâneos. Dados, Rio de Janeiro, v. 57, n. 3, p. 633-673, set. 2014.
[1] Cientista Social; mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC (UFABC); doutorando em Ciências Humanas e Sociais também pela UFABC; membro pesquisador do grupo de pesquisas 3 PAC (Política, Políticas Públicas e Ação Coletiva) e do NEAB (Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros), ambos vinculados à UFABC. Email: mms11101974@gmail.com.
[2] Esse texto é uma síntese do artigo “A ambiguidade da singularidade: a incorporação da questão racial brasileira pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) nas décadas de 1920 e 1930”, publicado na Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 14, p. 1–20, 2022. DOI: 10.5007/1984-9222. 2022.e85547. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/view/85547.
Fonte Imagética: Fundação Lauro Campos e Marielle Franco. Um negro comunista: o primeiro candidato operário à presidência da república. 10 maio 2019. Disponível em: <https://www.laurocampos.org.br/2019/05/10/um-negro-comunista/>. Acesso em: 23 jan. 2023.