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Início > Entrevistas

O Projeto do CAAF-Unifesp, as Vítimas do Estado e a Vala de Perus. Entrevista com Edson Teles, Joana Barros e Alana Moraes (CAAF/Unifesp)  

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Ronaldo Tadeu de Souza[1]

18 de agosto de 2025

Em setembro de 2014, impulsionado pela insistência de familiares de desaparecidos políticos e por um compromisso firmado durante a Comissão Nacional da Verdade, nascia o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp). Nos últimos anos, o CAAF consolidou-se como uma experiência singular de produção de provas em graves violações de direitos humanos, articulando ciência forense, pesquisa acadêmica e ativismo social.

Nesta entrevista, realizada por Ronaldo Tadeu de Souza e concedida ao Boletim Lua Nova‑Cedec, os coordenadores do CAAF, Edson Teles[2] e Joana Barros[3], com a colaboração de Alana Moraes[4], discutem a trajetória do projeto, suas bases teóricas e o princípio que orienta todas as suas frentes de trabalho: decisões e protocolos construídos coletivamente com familiares, militantes e pesquisadores de diversas áreas. Analisam, ainda, o papel do sistema de justiça diante da violência estatal, refletem sobre as tensões entre crítica de esquerda e a gramática liberal dos direitos humanos, relatam o acompanhamento das sucessivas ondas de letalidade policial em São Paulo e apresentam os próximos passos do Centro, entre eles a criação de um acervo público de documentos e um amplo estudo sobre raça e desaparecimento na ditadura.

1) Boletim Lua Nova-Cedec:

Poderiam contar um pouco sobre como surgiu o projeto do CAAF – Centro de Antropologia e Arqueologia Forense? Quem foram as pessoas que idealizaram e participaram da criação do centro? Quais são os principais objetivos do CAAF e de seus projetos? E, além da Unifesp, que outras instituições participam ou colaboram com as atividades do centro?

R. O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) nasceu da demanda de familiares de desaparecidos políticos do período da ditadura militar (1964-1985). Durante audiências da Comissão Nacional da Verdade (CNV), esses familiares denunciaram e exigiram tratamento investigativo digno para o caso dos desaparecidos e, em particular, para os remanescentes ósseos da Vala Clandestina de Perus. A Vala de Perus, no Cemitério Dom Bosco, foi aberta em 1990, durante o governo da prefeita Luiza Erundina, e de lá foram retirados mais de 1.500 corpos. Desses, 1.049 caixas que continham  a maior parte de corpos exumados circularam por algumas instituições do Estado de São Paulo desde aquela data, porém sem receber um trabalho correto e respeitoso de análise forense com vistas à identificação humana. Finalmente, em 2013, após uma das audiências da CNV, os familiares conseguiram um compromisso do governo federal, à época sob a presidência de Dilma Rousseff, de encaminhar uma solução. A Unifesp foi procurada pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, que, juntamente com a Prefeitura de São Paulo, se comprometeu a financiar a criação de um centro que pudesse realizar o trabalho de identificação humana com o material da Vala de Perus. Em setembro de 2014, foi inaugurado o CAAF. Seu objetivo inicial era identificar possíveis desaparecidos que estivessem nas caixas exumadas do Cemitério Dom Bosco. Em 2016, outro projeto foi iniciado, o de análise dos homicídios ocorridos, em maio de 2006, na Baixada Santista e na Grande São Paulo. A partir de ambos os casos, o CAAF/Unifesp especializou-se em pesquisas sobre graves violações de direitos humanos, tanto do período da ditadura quanto das violações ocorridas em democracia. Além disso, desenvolveu expertise em formação de pesquisadores e profissionais capacitados para o trabalho forense em sua relação com violações de direitos humanos.

2) Boletim Lua Nova-Cedec:

Como são desenvolvidas as pesquisas, os materiais investigados, a metodologia? Há algum marco teórico ou conjunto de conceitos, autores ou autoras, que fundamentam os procedimentos de pesquisa do Centro ?

R. As pesquisas seguem alguns protocolos gerais. Porém, como é de praxe nos trabalhos forenses, cada objeto de pesquisa ou caso a ser analisado demanda adaptações e o estabelecimento de novos protocolos, os quais funcionam como protótipos do trabalho e devem sempre estar abertos às modificações necessárias diante das dificuldades e dos bloqueios, bem como das evoluções e dos resultados positivos. Contudo, pode-se dizer que o CAAF/Unifesp segue duas linhas gerais que, historicamente e territorialmente, têm sustentado os trabalhos forenses sobre violações de direitos humanos: a virada forense e a arquitetura forense.

A primeira, globalmente conhecida como virada forense, se relaciona com a história da busca de desaparecidos das ditaduras latino-americanas. Em especial, essa virada surge após o nascimento da Equipo Argentina de Antropología Forense (EAAF), na segunda metade dos anos 1980, quando o reconhecido antropólogo forense norte-americano, Clyde Snow, auxiliou nas primeiras buscas de desaparecidos da ditadura argentina (1976-1983). A partir de então, e em diversos países da América Latina, surgiram grupos com perfis institucionais variados (autônomos, estatais, universitários, locais, internacionais, provisórios etc.). Apesar da diversidade, esses grupos compartilham algumas características similares: a utilização das tecnologias mais avançadas disponíveis para trabalhos e pesquisas forenses e a necessidade de adaptar seus métodos às especificidades de cada contexto. Além disso, esses grupos buscaram transformar a relação das ciências forenses com os familiares das vítimas, promovendo uma abordagem mais sensível, participativa e respeitosa. No caso das vítimas da ditadura, os familiares se configuraram como os primeiros investigadores dos casos e suas informações eram de suma importância para as pesquisas. Sobre esse momento, como se poderia esperar, há uma vasta bibliografia e diversas abordagens sobre a virada forense. Aqui recomendamos os textos do antropólogo forense Luís Fondebrider, pois ele foi um dos líderes do EAAF por mais de duas décadas e auxiliou na criação de diversos grupos no continente americano e em outras partes do mundo.

A arquitetura forense foi um modo de abordar as graves violações de direitos humanos iniciado em 2010, com foco no processo de colonização do território palestino por parte de Israel. Seu teorizador é Eyal Weizman, arquiteto israelo-britânico, professor da University of London, onde fundou o laboratório que deu nome a essa forma de fazer a produção de evidências, o Forensic Architecture. Trata-se da utilização de técnicas de arquitetura e de uso e pesquisas espacializadas para investigações sobre graves violações de direitos humanos e violência de Estado. A arquitetura forense utiliza-se de dados de fontes abertas ou públicas, documentos oficiais e testemunhos, elementos que são combinados com modelagem em 3D e produzem peças de vídeo e de animação, construindo narrativas de denúncia e comprovação das violações.

O CAAF/Unifesp, inspirando-se nestas experiências do fazer forense, acrescenta um terceiro elemento fundamental: os pesquisadores ativistas. Em todas as nossas pesquisas, buscamos manter uma parte das bolsas e dos consultores destinados aos militantes ou demandantes dos movimentos ou das lutas sociais. Eles são fundamentais, pois, como já se sabia desde a virada forense, se constituem nos primeiros investigadores das violações. Ademais, são sujeitos de tal forma inteirados e implicados nos casos que se tornam fundamentais para que os projetos tomem as melhores e mais eficientes decisões, permitindo-nos manter um respeito ético em relação à dignidade de suas histórias e das vítimas.

Esses três elementos, com diferenças de relações a depender do contexto de cada caso, formam o tripé de constituição do modo de produzir evidências do CAAF. Dessa forma, o Centro se encontra em meio a uma diversidade ontológica e se configura como uma espécie de tradutor entre os diversos atores envolvidos e como um dos nós de redes de produção de conhecimento e de luta em torno dos direitos humanos (Bruno Latour).

3) Boletim Lua Nova-Cedec:

Qual a importância dos projetos do CAAF, da perspectiva histórica das vítimas da ditadura militar?

R. São alguns pontos nos quais  o CAAF/Unifesp se implica na história das vítimas da ditadura e de seus familiares. Destacamos três: (i) o conhecimento dos procedimentos denominados “técnicos”; (ii) maior potencialidade de acesso à justiça; e (iii) a ampliação da capacidade de produzir contranarrativas.

Até que a materialidade dos remanescentes ósseos da Vala de Perus chegasse ao CAAF, uma série de etapas do trabalho forense mantinha-se em lugares obscuros para as vítimas. Sempre havia um laboratório inacessível, um perito que desqualificava os saberes das vítimas e de seus familiares, ou a alegação do Estado brasileiro de que tudo o que era possível estava sendo feito. A partir dos trabalhos desenvolvidos no CAAF, foi criada uma Comissão de Acompanhamento relativa  aos remanescentes da Vala de Perus, a qual tem total acesso ao laboratório e a todas as etapas do processo. Além disso, essa Comissão é ouvida sempre  que o plano de trabalho sofre alguma modificação ou conclui alguma etapa. Dessa forma, fica cada vez mais difícil que o Estado brasileiro ou algum perito possa alegar ignorância ou desconhecimento sobre o trabalho forense por parte das vítimas. É claro que há uma série de protocolos que são pouco acessíveis a quem não está diretamente ligado às técnicas do trabalho. Porém, como já foi dito, o CAAF funciona como um tradutor das diversas relações que se estabelecem seja nos trabalhos das ciências forenses, seja nas relações entre os diversos entes envolvidos (institucionais ou não).

Pode-se acrescentar que, no modo de fazer forense do CAAF, não se trata apenas de identificar um desaparecido, mas realiza-se uma ampla investigação sobre quem foi o desaparecido em vida, como ocorreu seu sequestro ou prisão, o levantamento de informações sobre tortura e outras violações, e qualquer dado sobre a ocultação de seu corpo. Essa pesquisa ainda investiga como o Estado atuou para ocultar o seu desaparecimento, desde a coleta de testemunhos até a pesquisa, em arquivos públicos, por documentos como laudos necroscópicos ou notícias de jornais da época. A pesquisa ainda se estende às informações publicadas ou produzidas após sua morte até os dias atuais. Isso significa que, quando se identifica alguém, a investigação faz emergir a história sobre como a ditadura desaparecia com opositores, quem eram esses militantes e como se registraram, oficialmente ou não, suas lutas e o processo repressivo de seu desaparecimento. É um ato forense de identificação humana, mas dentro de um contexto de produção da reparação histórica.

Por fim, há também a garantia de proteção da materialidade da Vala de Perus e de outros casos investigados. O exemplo mais evidente ocorreu durante o governo negacionista do presidente Jair Bolsonaro, cujos representantes defenderam, com o auxílio de peritos, a retirada dos remanescentes da universidade e o envio à Polícia Civil de Brasília. Tratava-se de uma tentativa de produzir mais um desaparecimento, nesse momento sob a alegação de que o CAAF fazia uso político da Vala, ao se alinhar com as vítimas. A postura de defesa da posição dos familiares de vítimas, que eram contrários à proposta, e a lei que garante autonomia à universidade, foram fundamentais para a manutenção dos trabalhos.

4) Boletim Lua Nova-Cedec: O CAAF-UNIFESP é um centro multidisciplinar. Mais especificamente, expliquem como ocorre a relação entre antropologia, arqueologia e debate forense? E como essa relação se articula para realizar as investigações que vocês têm feito?

R. Talvez a maior marca da multidisciplinaridade dos trabalhos realizados no CAAF se encontre no protocolo segundo o qual  as decisões devem ser tomadas coletivamente. Assim, não há a possibilidade de um(a) profissional ou um(a) pesquisador(a) elaborar um relatório sobre um determinado caso sem que toda a equipe e, preferencialmente, também as vítimas e os militantes dos movimentos, opinem sobre as conclusões. Dessa forma, quando se busca informações de antropologia e de  odontologia forense sobre um desaparecido, procura-se relacioná-las com a arqueologia do local de tortura e repressão por onde possivelmente o indivíduo passou, bem como com a história e o contexto de sua militância. Para se ter acesso a essa amplitude de informações, faz-se necessário ainda o trabalho de historiadores, jornalistas, sociólogos, filósofos, arquitetos, entre outros.

Quando um novo caso chega, de modo geral, é feita uma primeira rodada entre as instituições e movimentos envolvidos. Procura-se montar a estrutura de gestão do trabalho de modo a criar esferas de decisão coletiva e de consulta ampla. Em seguida, realiza-se uma ou mais reuniões com toda a equipe e, eventualmente, consultores convidados (a depender do caso e da dificuldade encontrada; o fato de o CAAF funcionar dentro da universidade nos apresenta um amplo leque de pesquisadores de diversas áreas). Busca-se aplicar os protocolos existentes e discutir as reformulações necessárias e as técnicas que podem ser aplicadas. Após a elaboração de um primeiro plano de trabalho, decide-se qual o esforço de investimento, infraestrutura, parceiros e profissionais a serem  mobilizados. Na maioria dos casos, vale destacar, o CAAF recebe demandas de órgãos públicos – nossos principais parceiros, hoje, são a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal.

5)  Boletim Lua Nova-Cedec:

Gostaria de levantar uma questão que pode gerar alguma polêmica e provocar um bom debate. Embora vocês não se identifiquem como pesquisadoras liberais, tendo trajetórias acadêmicas e posições intelectuais mais críticas e vinculadas ao campo da esquerda, ainda assim dialogam com a noção de direitos humanos, um conceito frequentemente associado ao liberalismo ocidental. Vocês veem essa provocação como um questionamento sectário? Por que (ou por que não)? E, nesse diálogo, vocês trabalham com uma concepção alternativa de direitos humanos ou reinterpretam o conceito a partir de suas próprias perspectivas teóricas e políticas?

R. A provocação é, como normalmente deve ser em um debate intelectual, de bom tom e, especialmente neste caso, toca em um ponto central para qualquer pensamento crítico à democracia liberal. O CAAF não tem definida uma concepção alternativa para a ideia de direitos humanos. Contudo, há uma prática relevante em torno do termo, o que precisa ser considerado nesse debate. Como pesquisadores, muitos integrantes do CAAF reconhecem o caráter liberal dos direitos humanos e, sobretudo no contexto brasileiro, também  o seu aspecto racista. O sujeito dos direitos humanos tradicionalmente se refere àquele que não recebe qualificações históricas e territoriais. Ele seria mais ou menos o que a filósofa Denise Ferreira da Silva chama de “sujeito transparente”, sem condição social e de classe, sem racialidade, sem identidade de gênero, sem pertencimento a territórios globais periféricos. O “sujeito transparente”, portanto, é universal. Ou seja, trata-se de um sujeito  branco, pertencente a uma classe social aceita no hemisfério norte do planeta como cidadã, heteronormativo etc. Além disso, em qualquer declaração universal ou regional dos direitos humanos pode-se averiguar uma ontologia precisa e hierarquizada do ponto de vista político. Existem as vítimas, as quais são representadas pelos que têm posse do vocabulário do direito, em sentido amplo, e pelos Estados e seus instrumentos jurídicos institucionais. Isso quer dizer que, para essas declarações, aqueles com os quais o CAAF atua em seu cotidiano não produzem saber e não são protagonistas ou agentes de seus atos políticos. E, com essa condição liberal dos direitos humanos, nós estamos em conflito.

Entretanto, tal qual anunciado acima, há uma prática importante associada ao termo direitos humanos, que é o modo como as lutas sociais e diversos movimentos atuam, de forma paralela e atípica em relação à política representativa e institucional do Estado de Direito, e que se refere diretamente a modos de proteção da vida. Algo como aquilo que foi sintetizado pela escritora Conceição Evaristo: “combinaram de nos matar. A gente combinamos de não morrer”.

Isso significa que, quando se produzem evidências de que a Polícia Militar é responsável por homicídios no caso do baile DZ7, no bairro de Paraisópolis, em 2019, efetiva-se ao menos dois importantes movimentos. Por um lado, mostra à institucionalidade da necropolítica naquele território que talvez seus atos não passem despercebidos. No caso em questão, um processo que normalmente é arquivado sob a alegação de ser “resistência seguida de morte” pode transformar-se em júri popular por homicídio. Por outro lado, os familiares e a comunidade, desse e de outros casos, ao se organizarem para atuar junto ao CAAF ou a outras instituições de defesa da vida, mudam de patamar político e elaboram um pensamento crítico de matriz não intelectual, mas nascido da experiência da luta.

Dessa forma, quando se obriga uma instituição da necropolítica a utilizar câmera em seu uniforme (com queda de 62,7 % no número de mortes provocadas pela intervenção policial, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2024), são vidas negras e periféricas que deixaram de morrer e podem ter a chance, ainda que pequena, de fazer com que suas vidas ganhem outro rumo.

Para o CAAF, o paradoxo dos direitos humanos, cuja universalidade discursiva e teórica se confronta com algumas práticas políticas identitárias e de sobrevivência, é um campo de disputa política e científica no qual temos posição e ação.

6) Boletim Lua Nova-Cedec:

Como analisam o papel do sistema judiciário (juízes, Ministério Público, Defensoria, tribunais) na questão das vítimas do Estado e da polícia militar? São efetivamente a voz da sociedade civil e da população dentro do sistema de justiça ou isso é algo formal?

R. Diante de nossa experiência, podemos dizer com muita tranquilidade que as instituições do sistema de justiça não são a “voz da sociedade civil”. Ao contrário, se pensarmos as práticas sociais em termos de sociedade e Estado, essas são, como se pode supor por sua organicidade não autônoma, instituições representantes do Estado. É o mesmo Estado que viola direitos e, década após década, incrementa a política de morte contra as populações periféricas nos seus vários sentidos.

Segundo o “Mapa da (In)justiça”, produzido pelo Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da Fundação Getúlio Vargas, 859 mortes por intervenção policial no estado de São Paulo, entre 2018 e 2024, geraram  procedimentos no Ministério Público do Estado (MP); destes, 90% foram arquivados sob a alegação de legítima defesa. Além disso, em 100% dos casos, o próprio MP pediu ou assentiu com o arquivamento. Entre as vítimas, apenas 9% eram indivíduos brancos.

Assim, quando um movimento de direitos humanos ou um coletivo de familiares de vítimas denuncia a violência de Estado, esse grupo não está denunciando somente a polícia ou o policial envolvido. Denuncia-se todo esse sistema, do policial que apertou o gatilho ao juiz ou procurador que utilizou a caneta para silenciar qualquer ato de justiça.

É claro que há exceções e que órgãos como a Defensoria Pública tendem a ter outro tipo de atuação. Mas, se por um lado essas exceções possam oferecer alguma proteção às vítimas, elas também se configuram como meio de legitimar a violência de Estado, sob a alegação de que se está tentando produzir justiça e que o sistema possui seus reguladores.

7) Boletim Lua Nova-Cedec:

Como estão acompanhando a violência da polícia militar de São Paulo contra negros e pobres no último período? Existe alguma especificidade nessa circunstância? Se sim qual ou quais? O CAAF tem algum tipo de intervenção para isso?

R. No momento, temos participado apenas de debates e consultas sobre a recente onda de violência policial. Trata-se de um evento relacionado à ascensão da extrema-direita, tanto em São Paulo quanto no país de modo geral, o que tem feito com que a política de militarização da segurança pública e do cotidiano das práticas sociais atinja um nível absurdo. Com isso queremos dizer, como podemos aferir em nossas pesquisas sobre os crimes da ditadura e sua repercussão na  democracia, que a militarização da segurança pública foi o modelo lançado pelo estado ditatorial e que não foi desmontado na transição à democracia. Ao contrário, sob o discurso de humanização de presídios e de sofisticação das polícias, inclusive com a introdução formal do discurso dos direitos humanos nessas instituições, o que se viu foi a ampliação gradual desse modelo.

Pode-se dizer, com base em dados, que nas últimas duas décadas ocorreram três  momentos de explosão da violência policial, seguidos de recuos relacionados a certa resistência social e à reação de setores dentro do Estado de Direito. Em 2006, ocorreu o massacre de maio, no qual mais de 500 pessoas foram assassinadas em 8 dias. Em 2012, com um aumento expressivo de intervenção policial seguida de morte, justificadas, em sua maioria, com a narrativa de ação de legítima defesa de policiais. Por fim, entre 2023 e 2024, destacam-se a Operação Escudo e a Operação Verão na Baixada Santista, posteriormente disseminadas pelo Estado sob a batuta de Derrite, ex-policial da ROTA, batalhão historicamente associado aos maiores índices de letalidade.

8) Boletim Lua Nova-Cedec:

Quais os próximos projetos ou iniciativas do centro?

R. Em um cenário mais próximo, temos dois grandes projetos. O primeiro é o de organizar os milhares de documentos e as várias bases de dados que nossas pesquisas já produziram. Trata-se de criar um grande acervo de pesquisa sobre violações de direitos humanos e violência de Estado, que potencialize as próprias pesquisas do CAAF, mas que também possa colaborar com outras instituições e outros pesquisadores que trabalham com o tema.

O segundo, mais imediato, consiste em rever o que foi a ditadura sob um ponto de vista de certo modo inédito, em diálogo com o presente e com a democracia. É um projeto sobre a ditadura e a questão racial, a partir de nossa expertise sobre o período e o tema da produção de mortes e desaparecimentos, utilizando os protocolos da antropologia forense. Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar sobre como os desaparecidos considerados “não políticos” eram produzidos na ditadura, como o Estado registrava o caminho desses corpos, quem eram essas pessoas  e como faleceram, tornando-se, na época, o que se chamava de “indigentes”.

A partir de um olhar estratégico e de mais fôlego, estamos nos organizando para qualificar o CAAF como uma unidade acadêmica da universidade, com produção científica e financiamento por parte das agências de fomento à pesquisa. Isso inclui o incremento na formação de pessoal, com programas específicos de abertura de novos focos de pesquisa e com a inserção do CAAF em redes internacionais de produção de evidências e de conhecimentos sobre pesquisa forense em casos de violações de direitos e de violência de Estado.

A equipe do Boletim Lua Nova agradece aos integrantes do CAAF pela entrevista.

* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova! 


[1] Pós-Doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP e Pesquisador do Cedec. Membro do Comitê Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária Editora.

[2] Professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

[3] Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

[4] Professora de antropologia na Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF/Unifesp). Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ).

Revista Lua Nova nº 120 - 2023

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