A relevância das conexões transnacionais entre as polícias na disseminação da “guerra às drogas”
Priscila Villela[1]
Em fevereiro deste ano, foi noticiada a realização de duas operações (TURFE e BRUTIUM) em que a Polícia Federal do Brasil atuou em articulação com a Drug Enforcement Administration (DEA) dos EUA e com a Europol da União Europeia na desarticulação de um grupo criminoso envolvido no trânsito internacional da cocaína produzida na Bolívia, Peru e Colômbia (Brasil, 2022). As investigações já estavam em curso há dois anos, envolveram autoridades dos EUA, França e Espanha e resultaram na apreensão de toneladas de drogas, 86 mandados judiciais, troca de tiros nas ruas do Rio de Janeiro e prisão de mais de 20 pessoas no Brasil (Folha, 2022). Apesar de grandiosa, este tipo de cooperação não se caracteriza como um episódio isolado e muito menos incomum.
Cada vez mais as polícias estão circulando transnacionalmente, ampliando o alcance de suas operações e estabelecendo conexões com seus pares estrangeiros na busca por compartilhamento de inteligência, mas também de recursos, saberes e práticas. Tais burocracias estatais, ainda que geograficamente distantes umas das outras, compartilham entre si interesses e funções muito similares, o que lhes permite estabelecer uma rede de relações com lógicas próprias em nível transnacional. Inspirada no conceito de “campo” estabelecido pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1971), defino como campo transnacional de policiamento um subsistema relativamente autônomo de relações entre profissionais públicos e privados de diversas partes do mundo, dedicados à segurança e ao controle do crime, e que compartilham das mesmas funções, missões, saberes e visões de mundo.
A “guerra às drogas”, anunciada por autoridades estadunidenses, tem sido a mais relevante força motora desses esforços, mobilizando recursos políticos e financeiros, bem como ferramentas jurídicas para que as polícias possam operar para além das fronteiras nacionais. Como parte desse empreendimento, o governo estadunidense buscou influenciar o controle de drogas de outros países relevantes e, como parte desse projeto, forneceram às agências estrangeiras assistência e treinamento para esse fim. Para isso, foi criada a DEA em 1973, agência destinada exclusivamente ao controle de drogas dentro e fora dos EUA. Progressivamente, a presença da DEA na repressão às drogas no mundo se expandiu, tornando-a a mais poderosa e capilarizada agência antidrogas do mundo.
O Brasil, reconhecido como rota do tráfico internacional da cocaína produzida na América Latina, tornou-se um dos importantes alvos desses esforços. Em articulação com a Polícia Federal (PF), a DEA estabeleceu laços de proximidade significativos, tema abordado no artigo “Transnational Policing field: the relations between the Drug Enforcement Administration and the Brazilian Federal Police”, publicado no Dossiê “Segurança em Mutação: concepções, práticas e experiências no século XXI” da Revista Lua Nova, nº 114 (2022).
Investigar essas conexões a partir da perspectiva das organizações e indivíduos dos escalões intermediários e inferiores das burocracias do Estado, como as polícias e os policiais, nos permitiu compreender as decisões diárias e a transformação dos planos de governo na realidade do seu cotidiano de trabalho. Por esta razão escolhemos operar com a escala de análise do transnacional, apoiada por estudiosos da análise de campo nas Relações Internacionais, como Didier Bigo (2016) e Anne Leander (2008; 2011), para citar dois dos mais relevantes.
Com o intuito de fortalecer as relações com a PF, a DEA promove programas de assistência e treinamento no Brasil desde sua criação, fornecendo recursos, equipamentos, treinamentos e apoio financeiro na condução de importantes operações conjuntas. O objetivo é melhorar a capacidade da polícia brasileira em reprimir o cultivo, o processamento, o tráfico, o consumo e a exportação de drogas aos EUA.
Para citar um exemplo marcante, a prisão do famoso traficante, Fernandinho Beira-Mar, também contou com o auxílio da DEA e das polícias colombiana e paraguaia. Em 2002, autoridades estadunidenses chegaram a pedir sua extradição, mas ela foi negada. Posteriormente, em 2007, a Unidade Especial de Investigação da Polícia Federal (DPU), no Rio de Janeiro, conduziu uma investigação apelidada de Operação Fênix, que visou desmantelar a organização criminosa liderada por Fernandinho Beira-Mar de dentro da Presídio Federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. A operação contou com auxílio financeiro da Sessão de Assuntos de Narcóticos (NAS) da Embaixada dos EUA e da DEA (Wikileaks, 2007).
Uma auditoria realizada pelo Departamento de Justiça dos EUA revela existir pouca transparência e controle democrático sobre as atividades realizadas pela DEA e outras agências policiais nos países estrangeiros. No Brasil, uma investigação conduzida por uma CPI confirmou que parte dos recursos financeiros da DEA foram disponibilizados à PF por meio de depósitos em contas nominais, sem o conhecimento do TCU. Segundo um dos policiais envolvidos, Getúlio Bezerra, os EUA preferem essa forma de transferência, pois “dava mais flexibilidade, mais empenho, rapidez […] é muito mais prático dessa maneira, do que esse dinheiro entrar em orçamento, em contas e passar por mil prateleiras” (Fernandes, 2002). Exemplos como estes e outros desenvolvidos no artigo revelam que as relações entre a PF e a DEA nem sempre são promovidas e sustentadas pelas instâncias governamentais. Nem sempre há capacidade ou até interesse dos governos em gerir as atividades rotineiras destas agências.
Nesse processo, a DEA exerceu uma enorme influência sobre as políticas de drogas e sobre as estruturas dos corpos burocráticos antidrogas da América Latina, incluindo o Brasil (Ricart, 2018). Uma vez acumulado prestígio e reconhecimento internacional, a própria PF passa a demandar e reproduzir essas práticas tidas como avançadas, eficientes e moralmente superiores, como mecanismos miméticos ou de emulação. O acesso a treinamentos e recursos da DEA torna-se uma credencial importante dentro da PF e na relação desta com outras instâncias estatais.
Para a realização da Copa do Mundo FIFA de 2014 no Brasil, foi oferecida uma série de cursos às polícias brasileiras. Tirando proveito da disponibilidade de recursos e do interesse de atores estadunidenses em promover a agenda antiterrorismo, o governo estadual do Rio de Janeiro acordou a abertura de um terceiro escritório da DEA na capital em 2015, justificada em nome do combate ao tráfico de armas. Segundo o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame:
O DEA é uma marca, tem uma chancela que consegue informações em vários lugares do mundo. Não precisa ser necessariamente contra a droga ou a armas. Mas nós vamos ter aqui no Rio de Janeiro um grupo especializado que já está junto conosco nessa luta” (G1, 2015, p. 1).
Isso não significa que não haja resistência e conflitos dentro desse campo. A presença da DEA é considerada intrusiva por algumas autoridades de países onde ela atua (Ricart, 2020), inclusive no Brasil. Na ocasião da realização dos Jogos Pan- Americanos de 2007, a DEA ofereceu seminários a policiais e autoridades de segurança pública. De acordo com o delegado Andrei Augusto Passos Rodrigues, “nós não pedimos, não propusemos, não indicamos nenhum curso específico. A organização, a dinâmica, os instrutores, o custeio, o local, é tudo a cargo do governo norte-americano” (Viana, 2014), o que nos leva a crer que a capacidade de oferecer recursos se traduz, igualmente, no potencial de pautar a agenda das polícias brasileiras. Com isso, o artigo pretende também promover a reflexão sobre possíveis implicações para a responsabilização democrática sobre a política de segurança pública.
O poder exercido pela DEA é baseado em diferentes estratégias, em ações coercitivas, mas, principalmente, a partir da construção de consensos. A organização de seminários e treinamentos é uma das mais importantes estratégias por meio da qual a DEA cria um ambiente de socialização entre polícias de diferentes partes do mundo, bem como promove a disseminação de uma gama de conhecimentos por ela definida.
O objetivo, segundo a agência, é desenvolver relações de trabalho duradouras entre as polícias e construir infraestrutura institucional dentro das agências estrangeiras de aplicação da lei e dos sistemas judiciais (DOJ, 2007). Como parte dos objetivos, os treinamentos também criam as bases para a harmonização das políticas e leis de drogas. Em entrevista, um agente da DEA afirma que a estratégia era “concentrar o treinamento a policiais cujas possibilidades de crescimento em seu próprio sistema fossem promissoras” (Ricart, 2018, p. 37), de maneira que pudessem reproduzir o conhecimento adquirido em suas próprias corporações. O resultado, como previamente identificado por analistas, é que as políticas de drogas brasileiras, bem como o trabalho policial voltado a combatê-las, passaram a refletir as diretrizes que foram construídas e aplicadas nos EUA (Rodrigues, 2012).
Ou seja, os saberes são compartilhados e transferidos transnacionalmente entre burocracias estatais por meio do trânsito desses profissionais, atendendo a treinamentos, seminários e conferências em outros países; também pela circulação de materiais científicos e pedagógicos, como manuais, revistas e artigos especializados no tema; mas também por meio do desenvolvimento da indústria da segurança que gera tecnologia compartilhada e comercializada transnacionalmente, criando as condições para que esses saberes sejam aplicados.
A socialização que o campo transnacional do policiamento ofereceu à DEA e à PF permitiu que se desenvolvesse um sentimento de solidariedade entre elas, definido em torno de missões, valores, práticas e conhecimento compartilhados. Os policiais de ambas as agências se tornaram parte de uma comunidade específica em escala transnacional, por meio qual criam laços de lealdade e confiança. A partir desse campo, a DEA construiu um hub pelo qual pôde influenciar o trabalho da PF e a própria política nacional voltada ao controle de drogas.
De uma perspectiva normativa, o trabalho busca levantar questões sobre os limites da accountability democrática. A esse respeito, Sheptycki (2002, p. 336) argumenta que a responsabilidade dos estudiosos é “acessar, transitar e responsabilizar a grande variedade de tipos de policiamento”, garantindo um policiamento democrático ao mesmo tempo em que enfrenta os desafios colocados pela era transnacional – exatamente o que este trabalho procurou alcançar.
Referências Bibliográficas
BIGO, Didier. 2016. Sociology of Transnational Guilds. International Political Sociology. Oxford, v. 10, n. 4, pp. 398416. DOI: 10.1093/ips/olw022
BOURDIEU, Pierre. 1971 [1966]. Intellectual Field and Creative Project. In: BOURDIEU, Pierre. Knowledge and Control: New Directions for the Sociology of Education. London: Macmillan.
BRASIL. 2022. PF deflagra operações TURFE e BRUTIUM contra o tráfico internacional de drogas no Rio de Janeiro. Portal do Governo – Polícia Federal. São Paulo, 15 fev. Disponível em: https://bit.ly/3Mhpa9J . Acesso em: 2 mar. 2022.
DEPARTMENT OF JUSTICE – DOJ. 2007. The Drug Enforcement Administration’s International Operations: U.S. Department Of Justice Office Of The Inspector General Audit Division. Washington.
FERNANDES, B. 2002. “Uma Parte do Dinheiro da DEA é para Pagar Diárias…” Carta Capital:30-31.
FOLHA DE S. PAULO. PF faz operações em 5 estados contra tráfico internacional de drogas. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 fev. Disponível em: https://bit.ly/3KcvOMw. Acesso em: 2 mar. 2022.
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LEANDER, Anna. 2008. Thinking Tools. In: KLOTZ, Audie; PRAKASH, Deepa. Qualitative Methods in International Relations. New York: Palgrave McMillan. pp. 1127.
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WIKILEAKS. 2007. NAS Brazil Activity Report, November 2007. Disponível em: https://bit.ly/3yZZAQp. Acesso em: 27 dez. 2021.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS).
Fonte Imagética: Comunicação Social da Política Federal do Rio de Janeiro, 15 fev 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2022/02/pf-deflagra-operacoes-turfe-e-brutium-contra-o-trafico-internacional-no-rio-de-janeiro>. Acesso em 03 mar 2022.