João Roberto Martins Filho[1]
O senhor traz a necessária renovação e a liberação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar, embotaram o discernimento e induziram a um pensamento único.
(General Eduardo Vilas Bôas, referindo-se ao presidente Bolsonaro, 11-1-2019)
Os militares não querem envolvimento com política partidária, nem aspiram a substituir os civis no poder. Eles têm preocupações legítimas de brasileiros patriotas com a situação geral do país. Os valores do amor ao país, à memória, à história, da disciplina, hierarquia, você encontra nas Forças Armadas.
(Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, BBC Brasil, 14-5-2018)
Quinhentos dias depois da posse de Jair Bolsonaro, a pergunta acima passou de preocupação de um restrito círculo de estudiosos a uma espécie de obsessão geral. Nós, os especialistas, depois de constatar que a vitória do ex-capitão teve como um de seus principais esteios uma operação de guerra de apoio a sua candidatura, logo compreendemos que tudo começara com modificações, de início imperceptíveis, no modo como a caserna reagiu à crise política pós-2103, no campo das ideias e das visões de mundo.
Desta vez, a “volta” dos militares à política não foi anunciada pela publicação de manifestos ou memoriais, como outrora. Ficou mais difícil, assim, saber o que se passava pela cabeça dos novos generais políticos, ávidos por mostrar que os fardados saberiam fazer com mais competência o que os civis vinham fazendo mal depois de 1985: governar o país. Logo se viu que se tratava de uma geração, em geral, avessa a livros e à escrita, marcada, sobretudo, pela experiência de comando na Minustah, a força de paz da ONU no Haiti. No começo, uma densa névoa parecia atrapalhar a visão de um panorama mais claro. No máximo, havia declarações esparsas, vindas de generais rebeldes (como Heleno e Mourão), ou do próprio Villas Bôas, comandante do Exército. Ou manifestações nas redes sociais, nem sempre acessíveis fora de grupos castrenses.
Com o passar do tempo, alguns lineamentos foram se distinguindo no campo das concepções sobre política externa: postura pragmática com relação aos Estados Unidos, no contexto da bipolaridade com a China, adesão a concepções neoliberais e nacionalismo, sobretudo territorial, infenso a outras formas de ameaça à independência nacional. Mas e quanto à política doméstica? É esse o tema que proponho analisar aqui, chamando a atenção para duas manifestações específicas de altos oficiais do Exército, uma de outubro de 2018 e outra de começo de maio deste ano. A primeira é um vídeo, gravado entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais, por um dos force commanders, aquela série de generais brasileiros que comandaram tropas de 19 países no Haiti, sob o patrocínio da ONU no âmbito da Minustah. A outra, a entrevista radiofônica concedida pelo recriador e ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência Temer, o único militar da ativa a se manifestar abertamente contra o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Ajax Porto Pinheiro, como ele mesmo destacou no início de sua fala, ainda como coronel comandou as tropas brasileiras no Haiti e já general a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO), autointitulada “a escola do capitão” e a Diretoria de Educação Superior Militar, antes de ser force commander. Com essa trajetória militar e com sua “experiência de vida”, o general se apresentou para transmitir a ex-comandados, amigos, militares em geral e suas famílias algumas ideias sobre o que estaria em jogo no dia 28 de outubro, quando os brasileiros iriam às urnas pela segunda vez para decidir quem seria o presidente da República.
Depois de se apresentar, o general foi logo ao ponto: não se tratava de um pleito comum. “São duas ideologias distintas que vão entrar em choque. Por isso é diferente”, explicou. O adversário de Bolsonaro não era somente Haddad, cujo nome sequer foi mencionado, mas o PT. E o eleitor poderia perguntar: qual era o risco se este já ocupara o poder por 13 anos? Sim, respondia o general eleitoral, mas esse foi o partido que levou o país “à maior recessão de sua história e ao maior escândalo de corrupção do planeta”. Em consequência, os petistas foram “escorraçados” do poder. “Agora, eles voltam numa situação diferente, e tenho certeza de que eles voltam com sede de vingança. Se eleitos, nós do Exército seremos as principais vítimas”, continuava. Afinal como diretor de Educação Militar podia testemunhar que “eles tentaram influenciar nossos currículos; não conseguiram”. E vaticinar: “não tenham dúvida, se voltarem ao poder eles tentarão fazer o que sua ideologia fez em outros países como a Venezuela”.
Estabelecido o polo inimigo, o comandante esclareceu que a perspectiva da esquerda não deu certo em nenhum lugar e que “há coisas que só existem no Brasil. São jabuticabas” (aqui, ele citava o general Mourão). Uma delas seria o próprio PT, “um partido cujo candidato à Presidência é controlado, dominado por um ‘presidiário’”. Somente no Brasil era possível a sobrevivência de “um ser que está extinto no mundo evoluído que é o comunista”. “O comunista (…) é o irmão siamês do fascista”, continuava o oficial. Para que o comunismo não vencesse as eleições, era preciso se precaver contra o que já ocorrera no primeiro turno da eleição: “uma tentativa de mudar o voto do eleitor de forma subliminar”, manipulando as pesquisas eleitorais.
Outra forma de jogar sujo contra a candidatura Bolsonaro, na visão do general, foi “aquele movimento do ‘Ele não’, orquestrado para influenciar as eleições, era para se transformar num movimento como o de 2013. Aquilo foi um balão de ensaio”, felizmente frustrado pela adesão popular, no dia seguinte, ao movimento pró-Bolsonaro. Diante disso, Ajax conclamava:
agora, até o dia 28, seja um ativista do país. Não ache que a eleição está ganha. Não está ganha. Está quase ganha, mas se você convencer um amigo, um indeciso, a votar no lado que tem ideal, que tem fé, que eu acredito que dará um destino melhor para o país, você decide as eleições. O voto decide as eleições. Participe de passeatas, carreatas, caminhadas, adesive seu carro, fale com seu vizinho, entre nos sites e discuta, mas discuta com argumentos, com lógica, não com fake news. Eles vão dizer que você está usando de fake news.
Mas, para matar a cobra, faltava a última paulada. Esta veio no molde de um alerta contra um fantasma antigo e bem conhecido:
o comunista é especialista em acusar o seu adversário do que ele é. Ele chama o adversário de fascista, quando o fascista é ele. Mentiroso, quando mentiroso é ele. Isso é uma técnica comunista usada há muitos anos. Ele não diz que é comunista, ele diz que é socialista. E o socialista é um comunista envergonhado. E o comunista é irmão siamês do fascista.
Como se vê, o mundo do inimigo era povoado de irmãos siameses. E a justificativa para voltar em Bolsonaro era bipolar. O eleitor só tinha que escolher o polo bom e repudiar o polo comunista. Tratava-se de uma polarização instrumental. Surpreendentemente, pouco mais de um mês depois de divulgar o vídeo, Ajax foi nomeado assessor do presidente do STF, Dias Toffoli, substituindo o general Fernando Azevedo, atual ministro da Defesa.
A segunda manifestação veio do general Sergio Etchegoyen. Ex-comandante da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) e ex-chefe do Estado Maior daquela força, foi o recriador do GSI, depois do afastamento de Dilma e seu primeiro chefe. Dizem que foi um dos fiadores da eleição do capitão.
A longa entrevista (30 minutos) foi transmitida ao vivo pela Rádio Gaúcha, na segunda-feira, 4 de maio de 2020. O entrevistado teve tempo para expor suas considerações sem atropelos. Houve troca de amabilidades e, no estúdio, à distância, não faltaram risadas. No dia anterior, o presidente Bolsonaro tinha comparecido, de inopino, pela segunda vez, a uma “manifestação pública antidemocrática e anticonstitucional”, como anunciou o Jornal Nacional. A primeira vez foi em frente ao quartel-general do Exército, esta última, diante do Palácio do Planalto. Nas duas, o mandatário se dirigiu aos manifestantes. Na segunda, um repórter fotográfico do Estado de S.Paulo e seu auxiliar tinham sido agredidos a socos e pontapés. O general via o fato com preocupação? – começou a entrevista. Ouviu-se um suspiro e o ex-chefe do GSI não respondeu nem sim, nem não. Explicou que não acompanhara os episódios do domingo, porque passara o fim de semana escrevendo um artigo. Ainda assim, explicou:
A agressão ao repórter é um episódio a mais dessa lógica de confrontação até física que nós estamos vivendo. (…) o repórter representou naquele momento um objetivo, um elemento de insatisfação das pessoas e (as pessoas) acharam que valia a pena a violência. No momento em que a disputa política permitir a violência é a barbárie.
Em seguida, explicou o que tinha sido o protesto do domingo, aquele que não pudera acompanhar, sem mencionar que este violava as mais básicas recomendações sanitárias, em plena crise da Covid-19:
Eu entendi que foi uma manifestação de apoio ao Presidente e, ao mesmo tempo, de repúdio a outras autoridades. Manifestações de apoio, manifestações de repúdio são legítimas (…), mas tem alguns limites que não podem ser ultrapassados. (…) (Um deles), que constitui um crime na minha opinião, é a turma que vai lá para apoiar um eventual ato de exceção, o AI-5, de intervenção militar. Mas em última análise as pessoas têm o direito de se manifestar. (…)É uma manifestação disparatada, descabida, anacrônica, mas tem muita coisa anacrônica no país também, não?
Vale dizer, um lado pedia a cabeça de ministros o STF e chefes do Legislativo e isso era condenável, mas, insinuou o entrevistado, havia também outro lado.
Os entrevistadores pediram então que ele opinasse sobre uma frase de Bolsonaro do dia anterior. Na versão deles: “Eu rezo para que esta semana seja uma semana mais calma porque eu já estou no limite. Eu conto com o apoio do povo, dos militares”. Etchegoyen achava a manifestação preocupante?
Desta vez, a resposta foi não. Para ele, o chefe de Estado tinha “uma retórica em que ele é um especialista em andar no fio da navalha (…): o presidente não disse que as Forças Armadas estavam ao lado dele, ele disse que elas estavam ao lado da lei, o que é uma obviedade (…). O resto era um “esgrimismo de palavras e expressões” que podiam ser interpretadas de várias formas. Mas “daí, as pessoas acharem (…) que as Forças Armadas estariam envolvidas numa aventura para preservar um mandato presidencial, ou para desapoiar ou apoiar alguém a cometer um crime (…) a distância é enorme” (referia-se à sugestão do mandatário de que não cumpriria a uma decisão de um ministro do Supremo, que mencionaremos a seguir).
Quanto ao resto, não havia com que se preocupar. O país passara por crises muitos mais graves que essa durante as últimas quatro décadas. Mas o importante era perceber que “as FFAA jamais foram, nesses 40 anos, uma fonte de inquietude, de instabilidade ou de questionamento das decisões políticas (ou) judiciais. (…) Não tem por que ser agora (…). De 2014 para cá (…) vivemos um rosário de crises intermináveis, graves, amplas e profundas (…) E ultrapassamos todas elas como país (…), sem nenhum solavanco no plano institucional, sem nenhum momento em que as FFAA tenham tido um comportamento minimamente afastado dos limites constitucionais e legais do seu papel”. E arrematou: “por que isso aconteceria agora?”.
Ato seguinte, mudou de assunto e passou a falar de um outro ator, paisano. Citando “bons articulistas, bons pensadores, bons teóricos, que se manifestaram neste fim de semana”, disse que o STF fizera no passado o que chamou de “coisas muito questionáveis do ponto de vista da institucionalidade, (…) do ponto de vista dos limites de competência de cada poder”. O problema não eram os militares. O que o entristecia era como, no Brasil, havia pouca confiança na força da democracia: “As cabeças estão grudadas no século XX e não têm um apreço efetivo pela democracia. Se tivessem, essas coisas estavam sendo perfeitamente entendidas e explicadas”.
Voltando à suprema corte, passou a se referir à decisão, tomada alguns dias antes pelo ministro Alexandre de Moraes (cujo nome não citou), que suspendeu a nomeação do delegado Ramagem para diretor da PF. “Quando a gente vê (…) decisões pessoais da Justiça ou do Congresso avançarem sobre competências presidenciais (…) a decisão do presidente foi política, ele tem todos os elementos políticos para escolher. (…) A decisão dele é política e é legítima, do ponto de vista de quem foi eleito e está lá para isso”. Isso constituía “ativismo judicial”, “ao arrepio da lei, da Constituição”, recebido “com aplauso, ou pelo menos com a omissão do Congresso”. “Por que a gente não discute isso, que é fato real, que é concreto? (…) por que a sociedade não denuncia isso?”. O que adiantava o Executivo, o presidente, as Forças Armadas se manterem leais à Constituição, “enquanto essas restrições ao seu papel, que doutrinadores do Direito, teóricos do Direito, muito conhecidos e muito respeitados, acham ilegítimas” e configuram ingerência de outro poder? Isso tudo iria contra a Constituição, onde a harmonia e a independência dos poderes, nessa ordem, estavam bem estabelecidas.
Os jornalistas esboçaram uma reação, insistindo em outras coisas concretas e reais, como os recentes atos contra a democracia. O general saberia explicar por que as pessoas iam para a frente de um quartel? Por que criticavam o STF? Por que queriam uma ditadura apoiada pelas FFAA? “A gente tem um limite um pouquinho tênue entre a liberdade de expressão e a expressão de ataque à democracia”, respondeu Etchegoyen. As pessoas iam à frente do quartel porque achavam “que as FFAA não entenderam, não evoluíram politicamente com a Nação e ainda que seria possível a participação das FFAA como uma força moderadora, como um elemento capaz de salvar a pátria num momento desse e não funciona assim”.
Depois de fazer nova incursão histórica, onde mencionou 1964, 1992 e 2016 e explicou as diferenças nas atitudes das FFAA nas duas primeiras datas, defendeu que, na última o quadro foi mais grave e mais dramático, porque “foi um processo de impeachment contra uma presidente que pertencia um partido forte, o mais forte. Um partido que nasceu e chegou ao governo com uma mensagem bonita de solidariedade, de combate à corrupção, de tudo”. E mesmo assim tudo foi resolvido dentro da lei: “nenhum general foi lá levantar o braço para dizer que isso tinha que acontecer”. Dito isso, mais uma vez, mudou de tema: “o Brasil tem Partido Comunista do Brasil (repetea frase). Se a gente olhar para a história, os exemplos de democracia, de regime são pavorosos. (…) Então, os anacronismos políticos estão presentes em muitas sociedades, infelizmente na nossa um pouco mais”. E concluía: “ainda nos falta romper algumas ignorâncias, alguns desconhecimentos. Daí a achar que as sereias vão cantar, as vivandeiras, como diria o Castelo Branco, vão cantar, na frente do quartel e atrair. Isso é bobagem”.
Como se vê, os temas centrais foram a polarização, os anacronismos e, agora, a intromissão na área do Executivo. No momento em que concluíamos este artigo, o vice Hamilton Mourão publicou um artigo assinado no Estado de S.Paulo (14-5-2020). Nele, culpava “um estrago institucional” pela crise “que está levando o país ao caos”. O estrago era resumido em quatro pontos. O primeiro era a polarização. O segundo e o terceiro se referiam a conflitos de poderes. Apenas o último é novo: “o prejuízo à imagem do Brasil no exterior”, que ele atribuía à declaração de oito ex-chanceleres contra a política exterior do governo.
Mas voltemos a Porto Alegre. Os entrevistadores agradeceram ao general porque ele os deixou mais tranquilos. Talvez seja o caso de concordar com eles. Se os dois outros poderes deixarem o presidente governar, se a imprensa não mais falar em golpe militar, se o país superar suas descrenças e seus anacronismos, se a política evitar os dois polos, Bolsonaro vai, finalmente, conseguir governar. Enquanto isso não ocorre, os militares continuarão com ele, à espera, apesar de tudo. Parodiando um dito espanhol da esquerda dos anos 1930: “é um governo mal-cheiroso, mas é o nosso governo”.
Para os vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=-wDgPhJeM5g&feature=youtu.be
[1] Professor Titular Sênior de Ciência Política da UFSCar