Camila Caldeira Nunes Dias[1]
Vanessa Ramos da Silva[2]
Em 2019, a PEC que cria a Polícia Penal no Brasil foi aprovada por unanimidade no Senado. A valorização profissional dos agentes penitenciários, o porte de arma, a presença de facções criminosas e a ‘crise’ do sistema carcerário são as principais justificativas para a aprovação.
Os argumentos utilizados para justificar a criação de uma nova polícia são, na verdade, consequências das decisões políticas e legislativas que configuraram a justiça criminal, as forças policiais e o sistema penitenciário no Brasil. O atual estado de precarização dos presídios, constantemente invocado pelos parlamentares em seus discursos, tem origem na recente história brasileira, mas alguns acontecimentos que contribuíram para o recente processo legislativo que aprovou a nova Emenda Constitucional merecem ser destacados.
Em outubro de 1992, após uma rebelião de presos no Pavilhão 9, a tropa de choque tomou o complexo penitenciário do Carandiru, em São Paulo, com cães e fuzis, em uma ação repressiva que assassinou 111 detentos. Foram 3.500 tiros disparados neste incidente, posteriormente conhecido como o ‘Massacre do Carandiru’. O caso repercutiu internacionalmente, denunciando ao mundo a atuação violenta e autoritária das forças policiais e a realidade do sistema penitenciário brasileiro. Em menos de um ano, em agosto de 1993, nasce no estado paulista uma expressiva facção criminosa do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC). As prisões se transformaram em ambiente propício para o aparecimento das organizações de presos que passaram a reivindicar seus direitos e garantir a continuidade da prática de ilícitos, em uma verdadeira disputa de poder com o Estado.
O PCC conquistou uma hegemonia capaz de controlar a massa carcerária paulista e promover alterações nas dinâmicas dentro dos presídios. A facção expandiu para além dos muros do cárcere e, aos poucos, se consolidou como mais um enorme foco de atuação repressiva do Estado. Tornou-se objeto de discursos políticos e da opinião pública e um dos principais desafios à segurança pública brasileira do último século.
Nesse cenário de mazelas e conflitos, os Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) são intermediários na relação entre o Estado e os custodiados. Responsáveis pelas atividades de vigilância; manutenção da segurança; disciplina; movimentação dos presos entre unidades do sistema prisional e unidades do Poder Judiciário, os ASP possuem atribuições desenvolvidas em um espaço de contradições, entre a lei e a ordem, o crime e a desordem, em que um mesmo instrumento técnico-disciplinar é utilizado para ‘recuperar’ e para ‘punir’.
As condições de trabalho da categoria deram origem a um processo de lutas sindicais, tracionamento de forças políticas e debates legislativos a respeito de melhores condições de trabalho, tendo em vista os efeitos diretos e indiretos da atividade em sua saúde física e mental. Entre as demandas havia, justamente, uma antiga pretensão dos agentes de se tornarem policiais.
Essa reivindicação foi objeto de discussão no Congresso Nacional por mais de quinze anos, já que a primeira proposta de emenda à constituição foi a PEC nº 308, de 2004. Nesse intervalo de tempo, o sistema prisional passou por inúmeras rebeliões com episódios brutais de violência, como práticas de decapitações e violações de corpos, que ganharam repercussão nacional e internacional.
Então, no ano de 2019, o Congresso Nacional aprovou, com unanimidade pelo Senado e ampla margem na Câmara dos Deputados, a PEC nº 372, de 2017, conhecida como “PEC da Polícia Penal”, proposta pelo então senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) com o objetivo expresso de conferir aos agentes penitenciários os direitos próprios da carreira policial.
Especificamente em relação aos debates ocorridos no Senado, é possível classificar os discursos dos senadores em quatro campos principais: (1) atuação, profissionalização e valorização da carreira dos agentes penitenciários; (2) porte de armas; (3) retomada do controle sobre os presídios; (4) ‘crise’ do sistema prisional.
Atuação, profissionalização e valorização dos agentes
Dentre as justificativas mais utilizadas pelos senadores, destaca-se a necessidade da valorização dos agentes penitenciários no exercício de suas funções, a igualdade de direitos em relação às demais categorias policiais e a conveniência de exercício de novas tarefas, como a escolta de presos. Algumas dessas funções, como a própria escolta, todavia, já são desempenhadas há muitos anos pelos ASP de estados como São Paulo e Minas Gerais.
Na visão de alguns parlamentares, o trabalho dos agentes penitenciários não é socialmente valorizado. Assinalam, também, o aspecto da capacitação, pois a proposta garantiria a profissionalização, o adestramento e a instrumentalização das polícias do ponto de vista de armamento e de preparação técnica, dando-lhes condições efetivas de exercer um trabalho de administração de conflito interno, de maneira equivalente à atuação dos grupos criminosos existentes nos presídios brasileiros.
A questão específica da valorização profissional deita raízes, em realidade, em históricas reivindicações dos próprios funcionários do sistema prisional por aumento salarial e melhoria das condições de trabalho, inclusive em razão do caráter nocivo à saúde e à integridade biopsicológica, potencializado pela situação insalubre de diversos estabelecimentos prisionais.
A pauta da criação de uma nova polícia foi ganhando importância no debate nacional com atos nas ruas e a ocupação de espaços no Congresso, diante de uma realidade em que a quantidade de agentes é reduzida e até decrescente frente a uma população carcerária cada vez mais numerosa e organizada. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) considerou como um estado de coisas inconstitucional o atual sistema prisional brasileiro, diante de uma superpopulação carcerária, de condições desumanas de custódia, da violação massiva de direitos fundamentais e de falhas estruturais.
É interessante observar que os discursos parlamentares não só defendem a criação de uma nova polícia em uma lógica punitivista, mas também para atender os interesses particulares de uma determinada classe de agentes públicos, inclusive na forma de lobby por entidades sindicais. Ao mesmo tempo, não discutem a fundo as consequências sociais que essa transformação pode engendrar na prática desses profissionais.
Porte de armas
Compondo o debate relacionado à profissionalização dos agentes penitenciários, os senadores apontaram uma suposta necessidade de conceder o porte de armas de fogo aos representantes da categoria, o que viabilizaria tanto o adequado exercício de suas atribuições no âmbito das instituições quanto a defesa pessoal fora delas.
Ocorre que, desde a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, o porte de armas já foi concedido a todos os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais e da escolta de presos, desde que satisfeitos os requisitos de dedicação exclusiva, formação funcional e subordinação a mecanismos de fiscalização e controle interno. Aparentemente, contudo, os senadores ignoraram por completo o teor desse estatuto.
Retomar o controle dos presídios
A discussão acerca da equiparação dos ASP às demais polícias, bem como o armamento desses profissionais, está em sintonia com um debate mais amplo de retomada do controle dos presídios pelo Estado brasileiro frente à atuação dos grupos organizados por presos.
A política de encarceramento em massa, a superlotação dos estabelecimentos prisionais e o aprofundamento das violências, violações e degradações dos espaços carcerários produziram, como um de seus efeitos colaterais, as chamadas facções prisionais, que seriam o resultado mais recente de escolhas políticas centralizadas na prisão. Nesse sentido, a prisão tanto configura um local perverso e precário de privação da liberdade de pessoas quanto propicia condições para que os presos aprofundem vínculos e relações com a criminalidade.
Os parlamentares que utilizaram a retomada do controle dos presídios como justificativa para o voto favorável à aprovação da PEC ressaltaram a criminalidade organizada dentro das prisões e destacaram o aspecto do sentimento de “medo” como consequência da atuação das facções e a necessidade de restabelecimento de uma questão da ordem pública em face do poder dos grupos criminosos organizados dentro dos ambientes prisionais.
O senador José Medeiros, do Podemos (PODE-MT), por exemplo, defendeu que, a partir da constituição de uma nova polícia, o Estado brasileiro passaria a ter quem manda dentro dos presídios, pois hoje quem mandam, segundo ele, são as facções. A partir dessa ponderação é possível observar a utilização dessa categoria como forma de ‘populismo penal’, pautado pelo aumento do rigor das punições ao longo da história legislativa brasileira, disseminado por representações sociais e opiniões públicas sensacionalistas estimuladas pela mídia brasileira.
Assim, a aprovação da PEC atenderia a um ‘clamor’ da população brasileira por segurança pública, já que a narrativa explorada por pretendentes a cargos políticos mobiliza a opinião pública com finalidade eleitoral na conhecida perspectiva de direito penal populista e punitivista, com efeitos apenas simbólicos. A criação de uma nova polícia dentro e fora dos presídios seria, na visão dos parlamentares, suficiente e necessária para resolver os problemas estruturais observados hoje nas prisões, como a existência das facções, sem, contudo, fornecer condições mínimas aos presos, como as tratadas em convenções internacionais.
Na contramão das recomendações de entidades de direitos humanos, das regras internacionais e normativas nacionais sobre condições mínimas de tratamento das pessoas privadas de liberdade, as condições precárias dos estabelecimentos prisionais brasileiros, somadas à ausência de políticas públicas assistenciais na área, resultam em permanentes rebeliões e revoltas dentro do sistema, implicando o fortalecimento e a expansão dos grupos organizados por presos. Não parece nítido, assim, como a transformação do ASP em policial penal pode alterar esse quadro.
“Crise” do sistema prisional
De maneira geral, os argumentos já apresentados representam os desdobramentos de um objetivo ainda maior: dar respostas à “crise” do sistema penitenciário e aos supostos anseios da maioria dos cidadãos “de bem” por segurança. A solução proposta para esse problema angustiante da sociedade fomenta a ilusão de que algo está sendo feito de maneira efetiva e rápida. Desse modo, o parlamentar não tem como intuito final saber se a medida funciona ou não de fato, como é o caso da PEC da Polícia Penal, mas garantir o apoio popular. Paradoxalmente, esses mesmos políticos contribuem para o agravamento da crise a que pretendem combater.
Apesar disso, alguns dos parlamentares sustentam falas baseadas em senso comum e ignoram a correlação entre o funcionamento do sistema legislativo/justiça criminal e os problemas estruturais inerentes aos cárceres, inclusive no que se refere às facções criminosas. É evidente, portanto, que esses discursos não conectam o diagnóstico – a crise, as facções – com a suposta solução apresentada – a transformação do agente penitenciário em policial penal.
Assim, não há qualquer argumento que ao menos pretenda sustentar uma relação de causa e efeito formulada, e sequer foi abordado na discussão um referencial teórico que seja, uma proposta de política criminal metodologicamente validável. Ao contrário, o debate fica na superficialidade do simbólico e alheio às contribuições das ciências sociais no diagnóstico dos problemas prisionais e nas discussões para a proposição de caminhos políticos que poderiam incidir sobre problemas específicos. Enquanto isso, o discurso que reivindica mudanças continua a produzir efeitos concretos, práticos e diários, sobre as mais de 820 mil vidas recolhidas nos estabelecimentos prisionais brasileiros.
Considerações finais
O olhar para os trabalhadores do sistema penitenciário é fundamental e pode ajudar a compreender as relações de poder estabelecidas dentro do cárcere. A reflexão sobre as falas dos parlamentares defensores da aprovação da nova polícia penal, neste estudo, foi pautada pela perspectiva dos novos contornos assumidos pelo discurso político no decorrer das últimas décadas, ao lado do fenômeno do encarceramento em massa e da expansão das facções dentro do sistema carcerário brasileiro. Esses elementos se articulam em torno da produção de um novo significado cultural, social e político para a punição, nutrido por uma lógica de um Estado de polícia, e que sustenta as justificativas para a transformação da carreira do agente penitenciário.
Nessa ordem de ideias, a criação da polícia penal, isoladamente, não inaugura reconfigurações sociais, políticas e culturais em termos de gestão da justiça criminal pelo Estado, detentor do monopólio do uso legítimo da força. Em vez disso, trata-se de um ponto de chegada importante de processos que se desenvolveram nas últimas décadas e que culminaram no deslocamento da prisão e do sentido do trabalho do profissional que ali atua.
No plano analítico, a verificação dos discursos parlamentares permite a percepção de que preponderam debates não qualificados ou minimamente sustentados por pesquisas acadêmicas, dados estatísticos, ou mesmo informações confiáveis, de relatórios de organismos internacionais e nacionais a respeito da realidade do sistema penitenciário nacional. Irremediavelmente, os discursos dos parlamentares se apoiam na perspectiva de um ‘populismo penal’ e na ideia de que militarizar a ação dos ASP seria suficiente e necessário para resolver os problemas observados nas prisões, como é o caso da existência das facções.
Assim, as consequências da transformação da carreira dos agentes penitenciários em policiais penais serão percebidas com o decurso do tempo, mas é possível prever alguns impactos, como ampliação de práticas autoritárias.
É necessário destacar que os princípios constitucionais e normativos relacionados à ressocialização/reintegração dos presos, apesar de serem também bases fundamentais de nosso ordenamento jurídico, em nenhum momento foram citados pelos parlamentares durante as sessões de votação. Ademais, preocupações com a situação precária das prisões e as recorrentes, regulares e reiteradas violações dos direitos dos presos – por meio de práticas de tortura, castigos físicos ilegais, ausência de assistência médica, entre outros – sequer foram levantadas na discussão que ocorreu no âmbito do Senado Federal.
Por esse motivo, a criação da polícia penal tem sido alvo de críticas desde a sua proposta, pois a criação de uma nova polícia não será capaz de sanar as deficiências de todo um sistema penitenciário, repleto de problemas estruturais, mesmo quanto aos conflitos ali existentes.
Por fim, as mudanças na carreira de agente penitenciário passam pela eliminação inequívoca e concreta das ambiguidades presentes no paradoxo da prisão: o binômio punição versus recuperação. A criação da polícia penal, segundo os senadores, aparentemente representa a face não ambígua da instituição carcerária, que se afasta perspectiva de recuperação – por meio de processos denominados reinserção e ressocialização ou reintegração social –, voltando seu foco para o discurso de incremento da repressão nos cárceres, mediante recursos humanos e logísticos de toda ordem. Isso seria coerente em relação à instituição prisional, que se concretiza de maneira evidente pela punição e pela segregação social, assumindo os contornos não ambíguos de uma fábrica de criminosos e, dessa forma, contraditoriamente fortalecendo as facções prisionais e sendo por elas fortalecida em sua dinâmica produtiva do ciclo crime-punição-segregação. Portanto, compreender os discursos que justificam a PEC que transforma a carreira do agente penitenciário em uma nova polícia envolve refletir sobre as contradições e os paradoxos que fundamentam a existência e o funcionamento das prisões no Brasil nas últimas décadas.
Nesse sentido, a criação da polícia penal, abordada em recente artigo de nossa autoria na Revista Lua Nova, por meio de um recorte específico, qual seja, os argumentos de senadores em sessão de votação no Congresso, propicia (re)situar os novos contornos da reconfiguração do lugar da prisão no Brasil, atualizando, assim, a reflexão teórica e empírica desse campo do conhecimento e, ainda, possibilitando expandir as atuais discussões que perpassam os estudos sobre as polícias, a militarização e as demais formas de controle do crime e da punição no Brasil.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
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[1] Professora adjunta na Universidade Federal do ABC, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: camila.dias00@gmail.com.
[2] Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: vanessaramosufabc@gmail.com.
Fonte Imagética: Proposta de Raquel Lessa tramitará por quatro comissões antes de seguir para votação / Foto: Departamento de Polícia Penal/Paraná. Disponível em <https://www.al.es.gov.br/Noticia/2022/05/43025/pl-preve-gratuidade-para-policial-penal-em-onibus.html>. Acesso em 05 out 2022.